quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A DECLARAÇÃO DE DIREITOS, de Carl Sagan









A Declaração de Direitos desatrelou a religião do Estado, em parte porque muitas religiões estavam impregnadas de um espírito absolutista – cada uma convencida de que só ela tinha o monopólio da verdade e, assim, ansiosa para que o Estado impusesse essa verdade aos outros. Muitas vezes, os líderes e os praticantes das religiões absolutistas eram incapazes de perceber qualquer meio termo ou de reconhecer que a verdade poderia se apoiar em doutrinas aparentemente contraditórias e abraçá-las.




Os idealizadores da Declaração de Direitos tinham diante dos olhos o exemplo da Inglaterra, onde o crime eclesiástico da heresia e o crime secular da traição haviam se tornado quase indistinguíveis. Muitos dos primeiros colonos vieram para os Estados Unidos fugindo da perseguição religiosa, embora alguns deles ficassem bastante contentes em perseguir outras pessoas por causa de suas crenças. Os fundadores de nossa nação reconheceram que uma relação estreita entre o governo e qualquer uma das religiões conflitantes seria fatal para a liberdade – e prejudicial à religião. O juiz Black (na decisão da Suprema Corte Engel versus Vitale, 1962) descreveu a cláusula da Igreja oficial na primeira emenda da seguinte maneira: “O seu objetivo primeiro e mais imediato se baseava na crença de que a união do governo e da religião tende a destruir o governo e a degradar a religião”. Além do mais, a separação dos poderes também funciona nesse ponto. Cada seita e culto, como observou certa vez Walter Savage Landor, é um controle moral exercido sobre os outros: “A competição é tão saudável na religião como no comércio”. Mas o preço é elevado: essa competição é um obstáculo a que grupos religiosos, agindo em harmonia, tratem do bem comum.




Rossiter conclui:




as doutrinas gêmeas da separação entre a Igreja e o estado e da liberdade de consciência individual são a essência da nossa democracia, se não realmente a contribuição mais importante dos Estados Unidos para a libertação do homem ocidental.




Ora, não adianta ter esses direitos, se não os usamos – o direito à liberdade de expressão quando ninguém contradiz o governo, à liberdade da imprensa quando ninguém está disposto a fazer as perguntas difíceis, o direito de reunião quando não há protestos, o sufrágio universal quando menos da metade do eleitorado vota, a separação da Igreja e do Estado quando o muro entre eles não passa por uma manutenção regular. Pelo desuso, eles podem se tornar nada mais que objetos votivos, palavreado patriótico. Direitos e liberdades: use-os ou perca-os.




Devido à previsão dos idealizadores da Declaração de Direitos – e ainda mais a todos aqueles que, com risco pessoal considerável, insistiram em exercer esses direitos – é difícil agora prender a liberdade de expressão numa garrafa. Os comitês das bibliotecas escolares, o serviço de imigração, a polícia, o FBI – ou o político ambicioso à cata de votos – podem tentar reprimi-la de tempos em tempos, porém mais cedo ou mais tarde a rolha explode. A Constituição é afinal a lei da nação, os funcionários públicos juraram preservá-la, e os ativistas e os tribunais de vem em quando impedem o fogo...




Entretanto, devido a padrões educacionais mais baixos, competência intelectual em declínio, gosto diminuído pelo debate substantivo e sanções sociais contra o ceticismo, as nossas liberdades podem sofrer um processo lento de erosão e os nossos direitos podem ser subvertidos. Os fundadores compreenderam tudo isso muito bem: “O momento de estabelecer legalmente todos os direitos essenciais é quando os nossos governantes são honestos e nós mesmos estamos unidos”, disse Thomas Jefferson.




A partir da conclusão dessa guerra [revolucionária], começaremos a descer ladeira abaixo. Então já não será necessário recorrer ao apoio do povo a todo momento. Então será esquecido, e seus direitos desconsiderados. Só se lembrará de si mesmo pela sua faculdade de fazer dinheiro, e jamais pensará em se unir para conseguir o devido respeito pelos seus direitos. Assim, os grilhões, que não serão arrancados ao fim dessa guerra, continuarão conosco por muito tempo, e se tornarão cada vez mais pesados, até que nossos direitos se reanimem ou expirem numa convulsão.




Conhecer o valor da liberdade de expressão e das outras liberdades garantidas pela Declaração de Direitos, saber o que acontece quando não temos esses direitos e aprender a exercê-los e protegê-los deveria ser um pré-requisito essencial para ser cidadão norte-americano – ou, na verdade, cidadão de qualquer nação, ainda mais se esses direitos continuam desprotegidos. Se não podemos pensar por nós mesmos, se não estamos dispostos a questionar a autoridade, somos apenas massa de manobra nas mãos daqueles que detêm o poder. Mas, se os cidadãos são educados e formam as suas próprias opiniões, aqueles que detêm o poder trabalham para nós. Em todo país, deveríamos ensinar às crianças o método científico e as razões para uma Declaração de Direitos. No mundo assombrado por demônios que habitamos em virtudes de sermos humanos, talvez seja apenas isso o que se interpõe entre nós e a escuridão circundante.









(O Mundo Assombrado pelos Demônios – A Ciência Vista como uma Vela no Escuro, tradução de Rosaura Eichemberg)




(Ilustração: Andre Muller)




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