segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A VERDADE E O ERRO, de Vergílio Ferreira










(VERDADE INDIFERENTE, VERDADE EXISTENCIAL) A verdade e o erro do que nos põe em causa o destino são o saldo indistinto de uma indistinta procura do nosso equilíbrio interior. As razões que os justificam são como a desculpa de quem é apanhado em flagrante: as suas raízes mergulham onde já as não sabemos. Só serão “objetivas”, meu amigo, as verdades indiferentes, essas em que nada de nós está comprometido. Mas quantas são as verdades que nos não comprometem? Que a verdade de Copérnico seja o erro de Ptolomeu, que a terra gire em torno do sol e não o sol em torno da terra, pode pagar-se ao preço máximo que é o preço de u ma vida. Um problema de verdade-e-erro só é nosso quando o sangue o reconhece.



E no entanto – ou por isso, porque nos afetam a vida – são essas verdades sem estalão visível para aferi-las, as que mais profundamente nos afirmam ou mais radicalmente recusamos: tais verdades não se aferem por um estatuto, mas são antes a nossa própria carne, a tessitura do que somos, a indizível realidade do nosso ser – e nada há mais evidente que a nossa própria pessoa.



(A MORTE DE DEUS) Ora de todas as evidências que nos habitaram, ei que a mais necessária se nos nublou e desfez. Que Deus tenha morrido, meu amigo, é uma surpresa tão extraordinária, que poucos de nós se deram ainda conta disso. Sim, sim, muitos sabem-no já, mas por ouvirem dizer, como é por ouvirem dizer que muitos outros acreditam que Deus está vivo para sempre. Que admira? Só sabemos, normalmente, que alguém nos morreu quando o sabemos de cor... Recuperar a vertigem da iniciação é um raro milagre de raros instantes apenas. Porque o que importa não é saber: o que importa é ver. A história das religiões é a história das formas aparentes de uma mesma certeza: os deuses tomam o aspecto dos desejos dos homens, corporizam os modos da sua pacificação – pelo terror, pela alegria, pela prosternação ou pela fraternidade. A cada irredutível e novo modo de se ser humano, os deuses respondiam com um novo modo de governo. (OS DEUSES E O APELO HUMANO) O regime mudava, mas não o soberano, e as lutas religiosas eram assem pequenas lutas partidárias com um sonho pequeno de emendas à Constituição... Deus mudava de palácio, dos sinais do seu poder, mas não dos seus sinais de divindade. Quando os homens o expulsavam de seus domínios, era para o transferirem para outros. De vez em quando, pequenos grupos clamavam pela anarquia; mas sempre que o fizeram sentiram-se ainda obscuramente apoiados na certeza que negavam, como um pobre soldado que na vida civil gasta a farda que lhe deram... Além de que, meu amigo, eles podiam sustentar-se dessa força que no vem de toda a nova experiência e do prazer e do ardor de negar. Ora nestas emendas à Constituição, Deus acabou por submeter-se às exigências de uma democracia total. Não porém à maneira dos gregos, porque então a democracia divina confraternizava apenas com o homem diurno, o das linhas solares, esse para que a noite é só repouso e não a angústia da insônia. A democracia divina, conquistada de novo, palmo a palmo, exigia-se agora disponível para todas as horas da ameaça e da miséria. (CRISTO E A CONDIÇÃO HUMANA) Mas o deus cristão, depois de se submeter às exigências do sacrifício, da condição humana, retoma logo os poderes terroristas de uma soberania absoluta. Nós porém tinhamo-lo conhecido entre os escarros e o sangue, e impusemos-lhe os termos do primeiro estatuto. Mil anos de esforços obrigaram-no a regressar – e ele foi enfim de novo um homem entre os homens. Uma vez mais nasceu de uma mulher, foi carne perecível, suou sangue e desolação através das gerações dos homens supliciados. Imprevistamente, porém, à medida que ele existia como homem, deixava de existir como deus. Para a lepra de um destino não basta o reconforto de um destino semelhante. Deus revelou-se na sua debilidade e tratamo-lo por “tu” e confundimo-lo com a multidão chagada e ululante. Mas porque a voz escrava se não cala no homem, porque suportar a liberdade exige um esforço descomunal, superior às forças humanas, Cristo foi reinventado em crueldade e soberania. Mas o que havia agora de novo e que ele próprio, Cristo, não aceitava o novo cargo... Foram os seus delegados que lhe reinstauraram o poder como a um pobre rei moribundo; mas só os mais miseráveis dos homens o não souberam. (DEUS E OS SEUS SUCEDÂNEOS) Porque para os outros, Cristo ficou definitivamente um filho de uma mulher e de um carpinteiro, sujeito, como eles, ao tempo e à morte. Ora a soberania, meu amigo, um poder transcendente a que possamos acolher a nossa pobre miséria, é um valor de que até mesmo os mais fortes não desistem facilmente: revesti-lo dessa força, de uma sólida grandeza, e um mínimo a que têm de aspirar. Assim uma fração deles aceitou, para a sua insônia, essa espécie de deus-síntese, donde dimanaram as contrafações dos homens, as imagens manchadas dos seus dedos impuros. Deus regressava assim à primitiva resposta da interrogação dos homens. Mas a grande maioria não acreditou; e Deus reinventou-se-lhes sob a forma secularizada ou burocrática da Natureza, da História, da Ciência do Chefe. E foi só então, após a vida breve dos seus pobres sucedâneos,que o homem reconheceu definitivamente que Deus tinha morrido. A nossa experiência, meu amigo, é assim única em toda a história da humanidade, porque nem sequer nos resta essa boa surdez de quem nega e combate. Sim: gritar, protestar é bom. (DESTRUIR E CONSTRUIR) Destruir a evidência de um erro é sentir a utilidade das mãos que destroem, é exaltar as forças do espírito na maravilha indizível da descoberta – desde criança o sabemos: por isso os brinquedos que nos davam só eram bem nossos, só nós éramos bem nós em face deles, depois de lhes tentarmos o segredo pela destruição... As pessoas sensatas, essas que sabiam não haver senão morte pra lá da beleza aparente, aconselhavam-nos a sua sensatez. Mas nós tínhamos as nossas mãos desocupadas e a angústia da interrogação. Destruir, negar. As mãos que desmantelam a ordem envelhecida são ainda a nossa própria vida, transmitem-nos a certeza de que há um mundo e nós no meio dele, identificam a inteira verdade do nosso corpo que age e é eficaz; e o rumor dos nossos gritos afoga as vozes obscuras e importunas, a nossa voz derradeira, ilude-nos a resposta à interrogação que nos espera, inventa-nos no NÃO essa ilusão de plenitude que nós buscamos no SIM.



(A SOLIDÃO FINAL) Eis que, porém, depois de todas as negações, depois da falência de todas as formas de uma pacificação, o homem descobre enfim que está só. Todos os brinquedos da nossa infância milenária jazem por terra com as tripas mecânicas de fora, e depois do prazer com os desventramos, olhamos, aterrados, por não termos mais brinquedos para desventrar... As horas do nosso abandono ressoam no céu deserto onde só o silêncio responde ao nosso pobre pavor. (RECRIAÇÃO DO MUNDO) É pois certo que nada mais há do que esta infinitude limitada, do que este céu recurvo onde um anseio, que projetemos, a si regressa num círculo, como um raio de luz. É pois certo que o nosso reino se descobriu enfim nos limites de um náufrago de mãos vazias e um tugúrio por construir desde o nada. Na terra desabitada, no universo desabitado, o último sol de ocaso prolonga a nossa sombra de estátuas finais que meditam. Um ciclo novo de vida se inicia agora desde o nada absoluto, onde, do mundo antigo, permanece apenas o rasto do espanto, do alarme que não finda. Porque se há uma continuidade na conquista, se os muros que sonhamos erguer para a nossa nova morada não são feitos com as pedras enegrecidas pela pobre candeia que outrora nos iluminou, se às ilusões seculares as reconhecermos como tais e esperamos que, a virem outras, elas sejam as sombras de um sol novo – é absolutamente certo que a surpresa da morte dos deuses não é o aviso da sua ressurreição, como a dor de um pai que nos morreu não é o sinal do seu regresso... Assim, que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonho escravizar a nossa melancolia no seu rebanho de escravos: sobre o campo dos mortos, as searas não dão pão para os mortos, mas para os vivos. Sabemos que o céu estava vazio ao terminarmos a sua escalada. (DO MUNDO DOS DEUSES AO MUNDO HUMANO) Sabemo-lo porque vimos não da luz que vem das coisas, mas da força iluminadora que irrompe de nós próprios e define a nossa presença. Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. A luz que iluminou a presença dos outros, dos que nos precederam, eles a consumiram para si próprios, nesse seu modo de saberem que estavam vivos. (VERDADE INTRANSMISSÍVEL) A luz que ilumina o estarmos sendo é intransmissível como o sentirmo-nos a viver. Que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro: não se demonstra o ser pedra uma pedra, o ser estrela uma estrela. Mas precisamente por isso, que ninguém nos demonstre que é incoerente e sobretudo insincero, reconhecer a evidência da morte dos deuses e estremecer na angústia de um mundo despovoado, de um universo reduzido à incrível escala humana. Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vida de todo o homem para recriar o mundo. A dor por quem nos morre não o pode ressuscitar, mas nem por isso é absurda: é o preço normal de uma nova ordenação, de um novo renascer. A condenação bíblica é valida para todo o recomeço: tudo o que é novo gera-se na amargura. (A SAUDADE DE DEUS, SAUDADE DA INFÂNCIA) A saudade de Deus não é o sonho do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a inexorável verificação da permanência de uma interrogação para qual já não nos basta a resposta que nos deram. Sabemos hoje assim, meu amigo, que um Deus não é um ídolo sonhado a ouro e a incenso, diante do qual nos sintamos redimidos pela renúncia e esquecimento, mas é antes o espelho da interrogação original que nos veio no sangue. (PERMANÊNCIA DA INTERROGAÇÃO) O espelho quebrou-se, a interrogação ficou. Que nos não digam que se temos a certeza de os deuses terem morrido é flagrantemente absurdo pensar em função deles. Ah, sei bem, meu amigo, que o corpo que me sinto é um pobre arranjo de água e barro, sei bem, de uma absoluta evidência, dessa evidência gerada na raiz das vísceras, que o sentir-me uma pessoa, o reconhecer-me vivo é um ponto de chegada desde as eras de bilhões, desde a força que se multiplicou a partir do que quiseres, da eterna laboração do universo que se cumpre. Sei-o, sei-o. Mas a interrogação que me angustia é mais forte do que sabê-lo. Rasto de uma plenitude perdida, ela é o estigma e o anúncio de uma procura nova, de um arranque para o sonho lá de outra plenitude que tu conheces talvez nos limites definidos da tua condição e eu ignoro ainda, como o cego que não deixa de fixar os olhos sobre tudo o que o rodeia, como se o ter olhos, mesmo vãos, exigisse a sua utilidade – porque o sonho de ainda ver é mais forte do que a certeza de que os olhos são inúteis. (OS DEUSES NÃO SÃO DIVINOS) À medida que um deus existe, ele deixa de ser divino. Divino é só o alarme, a evidência do que somos, do sinal obscuro de tudo o que nos rodeia. Que a evidência para nós seja agora a da sombra, a da condenação – não é decerto nossa culpa. Se o dom da evidência é bem nosso nos instantes do milagre, o mundo que se nos revela está aí, à nossa frente, diante da nossa inocência. Conquistar as terras, os mares desconhecidos, os astros da eternidade – nós o podemos realizar; mas anular o que se no dá em vertigem, em flagrante aparição, não é isso da nossa força, como o não é o não ver quando os olhos se nos abrem para a luz. Ah, negar é fácil, sobretudo quando se nega o que é da superfície, e se guarda uma pequena e clandestina certeza (disso mesmo que se nega) para uma necessidade... Mas nós aceitamos a negação profunda e por isso não temos um protesto para os que ainda acreditam: a sua evidência (ou a face disso) é para nós uma saudade; não nos rimos das crianças por terem um mundo de crianças. (ILUSÃO E PLENITUDE) E depois, para muitos de nós, que vale a certeza de uma terra desabitada em face da ilusão de uma terra povoada de fantasmas? Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens – toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro. (COMUNIDADE HUMANA) Por isso nós conhecemos, fora do que nos oprime ou deseja oprimir, uma certa tolerância fatigada ou fraterna. Irmãos de uma só comunidade, esta que se limita no nascer, no morrer, na angústia de uma redenção qualquer, é bom que nos reconheçamos sob o mesmo império de uma mesma lei – é bom que um olhar de concórdia nos dê o que puder de reconforto e de encorajamento.



A chuva, que voltou, abranda agora na rua e na minha memora. Calma, cai agora sem a vergasta do vento, como o eco de uma resignação. Ouço-a num recanto de mim, onde um instante se revela o indício de uma paz final, não decerto a que imagino dentro da tua evidência, meu amigo, mas essa outra que emerge de um profundo cansaço – a única talvez que a vida tem para dar-nos a quantos de nós? Se ela nos traz porém os sinais da aceitação dos limites da nossa condição, não é inteiramente inútil, nem a forma, decerto, de uma resignação vencida.





(Carta ao Futuro)


Ilustração: Jean Leon Gerôme - Verité)


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