sábado, 26 de setembro de 2009

... E ELES FICAM TOCANDO BACH, de Jonathan Littell




Avançávamos à noite; de dia, nos escondíamos nos bosques; então eu dormia ou lia Flaubert, falando pouco com meus companheiros. Uma raiva impotente crescia em mim, eu não compreendia por que saíra da casa perto de Alt Draheim, odiava-me por me haver deixado arrastar para zanzar como um selvagem pelas florestas, em vez de ter ficado tranquilo. A barba corroia nossos rostos, a lama ressecada endurecia os uniformes e, sob o tecido áspero, as cãibras fustigavam nossas pernas. Comíamos mal, apenas o que conseguíamos encontrar nas fazendas abandonadas ou restos deixados por comboios de refugiados; eu não me queixava, mas achava imundo o toucinho cru, a gordura ficava grudada na boca, nunca havendo pão para torná-lo tolerável. Continuávamos com frio e não fazíamos fogo. Ainda assim deleitava-me com aquele agreste severo e sereno, o silêncio amigo dos bosques de bétulas ou das matas, o céu nublado agitado levemente pelo vento, o rangido aveludado das últimas neves do ano. Mas era um agreste morto, deserto: vazias as lavouras, vazias as fazendas. Todos os lugarejos de certas dimensões, que contornávamos à distância durante a noite, estavam ocupados pelos russos; em seus arrabaldes, no escuro, ouvíamos os soldados bêbados cantando e disparando rajadas para cima. Às vezes sobravam uns alemães nessas aldeias, discerníamos suas vozes amedrontadas mas pacientes em meio a exclamações e palavrões russos, os gritos tampouco eram raros, sobretudo gritos de mulher. Mas aquilo ainda era melhor que as aldeias incendiadas aonde a fome nos levava: o gado morto infectava as ruas, as casas exalavam, misturado ao cheiro de queimado, um odor de carniça, e, como tínhamos que entrar para encontrar o que comer, não podíamos deixar de ver os cadáveres contorcidos de mulheres, frequentemente nuas, até mesmo velhas ou meninas de dez anos, com sangue entre as pernas. Mas permanecer nos bosques não ajudava a escapar dos mortos: nas encruzilhadas, os galhos imensos de carvalhos centenários estavam carregados de cachos de enforcados, em geral Volkssturm, tristes idiotas vítimas de Feldgendarmes zelosos; os corpos espalhavam-se pelas clareiras, como aquele rapaz nu, deitado na neve com uma perna dobrada, tão sereno quanto o enforcado da décima segunda carta do Tarô, pavorosamente estranho; e, mais adiante, nas florestas, cadáveres poluíam os lagos turvos que contornávamos amargurando nossa sede. Nesses bosques e florestas, encontrávamos também vivos, civis aterrorizados, incapazes de nos fornecer a menor informação, soldados desgarrados ou pequenos grupos que, como nós tentavam burlar as linhas russas. Waffen-SS ou Wehrmacht, não queriam nunca nos acompanhar; deviam temer, em caso de captura, ser encontrados com altas patentes SS. Isso fez Thomas refletir e ele me obrigou a destruir minha caderneta de soldo e meus documentos e a arrancar minhas insígnias, para ocaso de cairmos nas mãos dos russos; porém, com medo dos Feldgendarmes, decidiu, bastante irracionalmente, que conservaríamos nossos belos uniformes pretos, um pouco descabidos para aquele programa campestre. Todas essas decisões, era ele quem as tomava; eu aceitava sem refletir e lhes obedecia, fechado a tudo exceto ao que me caía diante dos olhos no lento desenrolar da marcha.

Quando alguma coisa suscitava uma reação de minha parte, era pior ainda. Na segunda noite depois de Körlin, durante a madrugada, entramos em uma aldeola, algumas chácaras em torno de um solar. Um pouco ao lado deste erguia-se uma igreja de tijolos, encostada num campanário pontiagudo e coroado por um telhado de ardósia cinza; a porta estava aberta, por ela ressoava uma música de órgão; Piontek já partira para vasculhar as cozinhas; seguido por Thomas, entrei na igreja. Um velho, perto do altar, tocava A arte da fuga, o terceiro contraponto, creio, com aquele belo rolamento do baixo que no órgão é reproduzido no pedal. Aproximei-me, sentei-me num banco e escutei. O velho terminou a passagem e se voltou para mim: usava um monóculo e um bigodinho branco bem cortado e vestia um uniforme de Oberstleutnant da outra guerra, com uma cruz no pescoço. “Eles podem destruir tudo”, ele me disse tranquilamente, “mas não isto. É impossível, isto permanecerá para sempre; resistirá mesmo quando eu parar de tocar.” Eu não disse nada e ele atacou o contraponto seguinte. Thomas continuava de pé. Levantei-me também. Escutei. A música era magnífica, o órgão não tinha grande potência mas ressoava naquela igrejinha familiar, as linhas do contraponto cruzavam-se, brincavam, dançavam uma com a outra. Ora, em vez de me apaziguar, aquela música não fazia senão atiçar minha fúria, estava quase insuportável. Eu não pensava em nada, minha cabeça estava vazia de tudo exceto daquela música e da pressão soturna da minha fúria. Eu queria gritar para ele parar, deixei que terminasse a fuga, mas o velho encetou imediatamente a seguinte, a quinta. Seus longos dedos aristocráticos voavam pelas teclas do teclado, puxavam ou empurravam os registros. Quando rematou com um golpe seco no final da fuga, saquei minha pistola e disparei uma bala na cabeça dele. Ele desabou para frente sobre as teclas, abrindo a metade dos tubos num mugido desolado e dissonante. Guardei a pistola, me aproximei e o puxei para trás pela gola; o som cessou para deixar apenas o do sangue gotejando de sua cabeça sobre as lajes. “Você enlouqueceu completamente!”, sibilou Thomas. “Que deu em você!?” Olhei para ele friamente, estava pálido, mas minha voz, entrecortada, não tremia: “É por causa desses fidalgotes corrompidos que a Alemanha está perdendo a guerra. O nacional-socialismo desmorona e eles ficam tocando Bach. Isso deveria ser proibido.” Thomas me estudava, não sabia o que dizer. Depois deu de ombros: “No fim das contas, você tem razão. Mas que isso não se repita. Vamos embora.” Piontek, no grande terreiro, estava preocupado com o disparo e apontava sua submetralhadora. Sugeri dormirmos no solar, numa cama de verdade, com lençóis; mas acho que Thomas estava com raiva de mim, decidiu que dormiríamos de novo nos bosques, para me atormentar, creio. Mas eu não queria enraivecê-lo, e, depois, era meu amigo; obedeci e o segui sem protestar.



(As Benevolentes, tradução de André Telles)



(Ilustração: Felix Nussbaum - jew at the window)





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