quarta-feira, 30 de setembro de 2009

MONÓLOGO PÓSTUMO, de Ubaldo Luiz de Oliveira (*)







Quantas flores!

Quanto roxo, Dona Antônia!

Quantos castiçais a queimarem velas
Que parecem traiçoeiras como as procelas.

Mas, Maria José, pra que tanto roxo?
Se pudesse, ai! daria um muxoxo.

E a pompa da tia Tonica
Que na minha lapela

Colocou uma sempre viva.

E crucifixo?
Que lindo!
Perder o Cristo
E ficará só a cruz
Sem o meu Jesus.

Mas não é nada
Diria minha prima Sebastiana.
O coitado a essa hora
Já não sabe de nada, nadinha.

Ó Minha prima!
Como ficaria a sua espinha,
Se ouvisse o som daquela voz minha.

Mas tudo é ilusão!

Arrumaram tanto o meu caixão,
De rosas puseram até um botão.

Quanta amabilidade!
Quanta falsidade!
Para um homem de tanta idade

Que nem chegou à maturidade.




(Ubaldo Luiz de Oliveira - O Camelo Ancorado - São Paulo/ 1988)


(*) Com uma lágrima, uma lágrima sentida, em sua memória.


(Ilustração: Cézane)





A DECLARAÇÃO DE DIREITOS, de Carl Sagan









A Declaração de Direitos desatrelou a religião do Estado, em parte porque muitas religiões estavam impregnadas de um espírito absolutista – cada uma convencida de que só ela tinha o monopólio da verdade e, assim, ansiosa para que o Estado impusesse essa verdade aos outros. Muitas vezes, os líderes e os praticantes das religiões absolutistas eram incapazes de perceber qualquer meio termo ou de reconhecer que a verdade poderia se apoiar em doutrinas aparentemente contraditórias e abraçá-las.




Os idealizadores da Declaração de Direitos tinham diante dos olhos o exemplo da Inglaterra, onde o crime eclesiástico da heresia e o crime secular da traição haviam se tornado quase indistinguíveis. Muitos dos primeiros colonos vieram para os Estados Unidos fugindo da perseguição religiosa, embora alguns deles ficassem bastante contentes em perseguir outras pessoas por causa de suas crenças. Os fundadores de nossa nação reconheceram que uma relação estreita entre o governo e qualquer uma das religiões conflitantes seria fatal para a liberdade – e prejudicial à religião. O juiz Black (na decisão da Suprema Corte Engel versus Vitale, 1962) descreveu a cláusula da Igreja oficial na primeira emenda da seguinte maneira: “O seu objetivo primeiro e mais imediato se baseava na crença de que a união do governo e da religião tende a destruir o governo e a degradar a religião”. Além do mais, a separação dos poderes também funciona nesse ponto. Cada seita e culto, como observou certa vez Walter Savage Landor, é um controle moral exercido sobre os outros: “A competição é tão saudável na religião como no comércio”. Mas o preço é elevado: essa competição é um obstáculo a que grupos religiosos, agindo em harmonia, tratem do bem comum.




Rossiter conclui:




as doutrinas gêmeas da separação entre a Igreja e o estado e da liberdade de consciência individual são a essência da nossa democracia, se não realmente a contribuição mais importante dos Estados Unidos para a libertação do homem ocidental.




Ora, não adianta ter esses direitos, se não os usamos – o direito à liberdade de expressão quando ninguém contradiz o governo, à liberdade da imprensa quando ninguém está disposto a fazer as perguntas difíceis, o direito de reunião quando não há protestos, o sufrágio universal quando menos da metade do eleitorado vota, a separação da Igreja e do Estado quando o muro entre eles não passa por uma manutenção regular. Pelo desuso, eles podem se tornar nada mais que objetos votivos, palavreado patriótico. Direitos e liberdades: use-os ou perca-os.




Devido à previsão dos idealizadores da Declaração de Direitos – e ainda mais a todos aqueles que, com risco pessoal considerável, insistiram em exercer esses direitos – é difícil agora prender a liberdade de expressão numa garrafa. Os comitês das bibliotecas escolares, o serviço de imigração, a polícia, o FBI – ou o político ambicioso à cata de votos – podem tentar reprimi-la de tempos em tempos, porém mais cedo ou mais tarde a rolha explode. A Constituição é afinal a lei da nação, os funcionários públicos juraram preservá-la, e os ativistas e os tribunais de vem em quando impedem o fogo...




Entretanto, devido a padrões educacionais mais baixos, competência intelectual em declínio, gosto diminuído pelo debate substantivo e sanções sociais contra o ceticismo, as nossas liberdades podem sofrer um processo lento de erosão e os nossos direitos podem ser subvertidos. Os fundadores compreenderam tudo isso muito bem: “O momento de estabelecer legalmente todos os direitos essenciais é quando os nossos governantes são honestos e nós mesmos estamos unidos”, disse Thomas Jefferson.




A partir da conclusão dessa guerra [revolucionária], começaremos a descer ladeira abaixo. Então já não será necessário recorrer ao apoio do povo a todo momento. Então será esquecido, e seus direitos desconsiderados. Só se lembrará de si mesmo pela sua faculdade de fazer dinheiro, e jamais pensará em se unir para conseguir o devido respeito pelos seus direitos. Assim, os grilhões, que não serão arrancados ao fim dessa guerra, continuarão conosco por muito tempo, e se tornarão cada vez mais pesados, até que nossos direitos se reanimem ou expirem numa convulsão.




Conhecer o valor da liberdade de expressão e das outras liberdades garantidas pela Declaração de Direitos, saber o que acontece quando não temos esses direitos e aprender a exercê-los e protegê-los deveria ser um pré-requisito essencial para ser cidadão norte-americano – ou, na verdade, cidadão de qualquer nação, ainda mais se esses direitos continuam desprotegidos. Se não podemos pensar por nós mesmos, se não estamos dispostos a questionar a autoridade, somos apenas massa de manobra nas mãos daqueles que detêm o poder. Mas, se os cidadãos são educados e formam as suas próprias opiniões, aqueles que detêm o poder trabalham para nós. Em todo país, deveríamos ensinar às crianças o método científico e as razões para uma Declaração de Direitos. No mundo assombrado por demônios que habitamos em virtudes de sermos humanos, talvez seja apenas isso o que se interpõe entre nós e a escuridão circundante.









(O Mundo Assombrado pelos Demônios – A Ciência Vista como uma Vela no Escuro, tradução de Rosaura Eichemberg)




(Ilustração: Andre Muller)




segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A VERDADE E O ERRO, de Vergílio Ferreira










(VERDADE INDIFERENTE, VERDADE EXISTENCIAL) A verdade e o erro do que nos põe em causa o destino são o saldo indistinto de uma indistinta procura do nosso equilíbrio interior. As razões que os justificam são como a desculpa de quem é apanhado em flagrante: as suas raízes mergulham onde já as não sabemos. Só serão “objetivas”, meu amigo, as verdades indiferentes, essas em que nada de nós está comprometido. Mas quantas são as verdades que nos não comprometem? Que a verdade de Copérnico seja o erro de Ptolomeu, que a terra gire em torno do sol e não o sol em torno da terra, pode pagar-se ao preço máximo que é o preço de u ma vida. Um problema de verdade-e-erro só é nosso quando o sangue o reconhece.



E no entanto – ou por isso, porque nos afetam a vida – são essas verdades sem estalão visível para aferi-las, as que mais profundamente nos afirmam ou mais radicalmente recusamos: tais verdades não se aferem por um estatuto, mas são antes a nossa própria carne, a tessitura do que somos, a indizível realidade do nosso ser – e nada há mais evidente que a nossa própria pessoa.



(A MORTE DE DEUS) Ora de todas as evidências que nos habitaram, ei que a mais necessária se nos nublou e desfez. Que Deus tenha morrido, meu amigo, é uma surpresa tão extraordinária, que poucos de nós se deram ainda conta disso. Sim, sim, muitos sabem-no já, mas por ouvirem dizer, como é por ouvirem dizer que muitos outros acreditam que Deus está vivo para sempre. Que admira? Só sabemos, normalmente, que alguém nos morreu quando o sabemos de cor... Recuperar a vertigem da iniciação é um raro milagre de raros instantes apenas. Porque o que importa não é saber: o que importa é ver. A história das religiões é a história das formas aparentes de uma mesma certeza: os deuses tomam o aspecto dos desejos dos homens, corporizam os modos da sua pacificação – pelo terror, pela alegria, pela prosternação ou pela fraternidade. A cada irredutível e novo modo de se ser humano, os deuses respondiam com um novo modo de governo. (OS DEUSES E O APELO HUMANO) O regime mudava, mas não o soberano, e as lutas religiosas eram assem pequenas lutas partidárias com um sonho pequeno de emendas à Constituição... Deus mudava de palácio, dos sinais do seu poder, mas não dos seus sinais de divindade. Quando os homens o expulsavam de seus domínios, era para o transferirem para outros. De vez em quando, pequenos grupos clamavam pela anarquia; mas sempre que o fizeram sentiram-se ainda obscuramente apoiados na certeza que negavam, como um pobre soldado que na vida civil gasta a farda que lhe deram... Além de que, meu amigo, eles podiam sustentar-se dessa força que no vem de toda a nova experiência e do prazer e do ardor de negar. Ora nestas emendas à Constituição, Deus acabou por submeter-se às exigências de uma democracia total. Não porém à maneira dos gregos, porque então a democracia divina confraternizava apenas com o homem diurno, o das linhas solares, esse para que a noite é só repouso e não a angústia da insônia. A democracia divina, conquistada de novo, palmo a palmo, exigia-se agora disponível para todas as horas da ameaça e da miséria. (CRISTO E A CONDIÇÃO HUMANA) Mas o deus cristão, depois de se submeter às exigências do sacrifício, da condição humana, retoma logo os poderes terroristas de uma soberania absoluta. Nós porém tinhamo-lo conhecido entre os escarros e o sangue, e impusemos-lhe os termos do primeiro estatuto. Mil anos de esforços obrigaram-no a regressar – e ele foi enfim de novo um homem entre os homens. Uma vez mais nasceu de uma mulher, foi carne perecível, suou sangue e desolação através das gerações dos homens supliciados. Imprevistamente, porém, à medida que ele existia como homem, deixava de existir como deus. Para a lepra de um destino não basta o reconforto de um destino semelhante. Deus revelou-se na sua debilidade e tratamo-lo por “tu” e confundimo-lo com a multidão chagada e ululante. Mas porque a voz escrava se não cala no homem, porque suportar a liberdade exige um esforço descomunal, superior às forças humanas, Cristo foi reinventado em crueldade e soberania. Mas o que havia agora de novo e que ele próprio, Cristo, não aceitava o novo cargo... Foram os seus delegados que lhe reinstauraram o poder como a um pobre rei moribundo; mas só os mais miseráveis dos homens o não souberam. (DEUS E OS SEUS SUCEDÂNEOS) Porque para os outros, Cristo ficou definitivamente um filho de uma mulher e de um carpinteiro, sujeito, como eles, ao tempo e à morte. Ora a soberania, meu amigo, um poder transcendente a que possamos acolher a nossa pobre miséria, é um valor de que até mesmo os mais fortes não desistem facilmente: revesti-lo dessa força, de uma sólida grandeza, e um mínimo a que têm de aspirar. Assim uma fração deles aceitou, para a sua insônia, essa espécie de deus-síntese, donde dimanaram as contrafações dos homens, as imagens manchadas dos seus dedos impuros. Deus regressava assim à primitiva resposta da interrogação dos homens. Mas a grande maioria não acreditou; e Deus reinventou-se-lhes sob a forma secularizada ou burocrática da Natureza, da História, da Ciência do Chefe. E foi só então, após a vida breve dos seus pobres sucedâneos,que o homem reconheceu definitivamente que Deus tinha morrido. A nossa experiência, meu amigo, é assim única em toda a história da humanidade, porque nem sequer nos resta essa boa surdez de quem nega e combate. Sim: gritar, protestar é bom. (DESTRUIR E CONSTRUIR) Destruir a evidência de um erro é sentir a utilidade das mãos que destroem, é exaltar as forças do espírito na maravilha indizível da descoberta – desde criança o sabemos: por isso os brinquedos que nos davam só eram bem nossos, só nós éramos bem nós em face deles, depois de lhes tentarmos o segredo pela destruição... As pessoas sensatas, essas que sabiam não haver senão morte pra lá da beleza aparente, aconselhavam-nos a sua sensatez. Mas nós tínhamos as nossas mãos desocupadas e a angústia da interrogação. Destruir, negar. As mãos que desmantelam a ordem envelhecida são ainda a nossa própria vida, transmitem-nos a certeza de que há um mundo e nós no meio dele, identificam a inteira verdade do nosso corpo que age e é eficaz; e o rumor dos nossos gritos afoga as vozes obscuras e importunas, a nossa voz derradeira, ilude-nos a resposta à interrogação que nos espera, inventa-nos no NÃO essa ilusão de plenitude que nós buscamos no SIM.



(A SOLIDÃO FINAL) Eis que, porém, depois de todas as negações, depois da falência de todas as formas de uma pacificação, o homem descobre enfim que está só. Todos os brinquedos da nossa infância milenária jazem por terra com as tripas mecânicas de fora, e depois do prazer com os desventramos, olhamos, aterrados, por não termos mais brinquedos para desventrar... As horas do nosso abandono ressoam no céu deserto onde só o silêncio responde ao nosso pobre pavor. (RECRIAÇÃO DO MUNDO) É pois certo que nada mais há do que esta infinitude limitada, do que este céu recurvo onde um anseio, que projetemos, a si regressa num círculo, como um raio de luz. É pois certo que o nosso reino se descobriu enfim nos limites de um náufrago de mãos vazias e um tugúrio por construir desde o nada. Na terra desabitada, no universo desabitado, o último sol de ocaso prolonga a nossa sombra de estátuas finais que meditam. Um ciclo novo de vida se inicia agora desde o nada absoluto, onde, do mundo antigo, permanece apenas o rasto do espanto, do alarme que não finda. Porque se há uma continuidade na conquista, se os muros que sonhamos erguer para a nossa nova morada não são feitos com as pedras enegrecidas pela pobre candeia que outrora nos iluminou, se às ilusões seculares as reconhecermos como tais e esperamos que, a virem outras, elas sejam as sombras de um sol novo – é absolutamente certo que a surpresa da morte dos deuses não é o aviso da sua ressurreição, como a dor de um pai que nos morreu não é o sinal do seu regresso... Assim, que ninguém se espante do nosso espanto, nem que ninguém sonho escravizar a nossa melancolia no seu rebanho de escravos: sobre o campo dos mortos, as searas não dão pão para os mortos, mas para os vivos. Sabemos que o céu estava vazio ao terminarmos a sua escalada. (DO MUNDO DOS DEUSES AO MUNDO HUMANO) Sabemo-lo porque vimos não da luz que vem das coisas, mas da força iluminadora que irrompe de nós próprios e define a nossa presença. Que ninguém nos demonstre o nosso erro nem a nossa verdade: mais forte que toda a demonstração é a evidência feita carne e ossos e sangue e nervos, é esta plenitude sem margem de sermos. A luz que iluminou a presença dos outros, dos que nos precederam, eles a consumiram para si próprios, nesse seu modo de saberem que estavam vivos. (VERDADE INTRANSMISSÍVEL) A luz que ilumina o estarmos sendo é intransmissível como o sentirmo-nos a viver. Que ninguém nos demonstre a nossa verdade ou erro: não se demonstra o ser pedra uma pedra, o ser estrela uma estrela. Mas precisamente por isso, que ninguém nos demonstre que é incoerente e sobretudo insincero, reconhecer a evidência da morte dos deuses e estremecer na angústia de um mundo despovoado, de um universo reduzido à incrível escala humana. Como se a irredutível verdade da morte de alguém, que conhecemos, exigisse a coerência de uns olhos enxutos: mais forte que a certeza da inutilidade da dor é a absoluta presença da dor. Na ilha deserta, a aflição do abandono não reconduz o mundo que se perdeu: é o irremediável sinal de um recomeço, é o anúncio da vida de todo o homem para recriar o mundo. A dor por quem nos morre não o pode ressuscitar, mas nem por isso é absurda: é o preço normal de uma nova ordenação, de um novo renascer. A condenação bíblica é valida para todo o recomeço: tudo o que é novo gera-se na amargura. (A SAUDADE DE DEUS, SAUDADE DA INFÂNCIA) A saudade de Deus não é o sonho do seu regresso, como a saudade da infância não é um sonho de infantilismo: é a inexorável verificação da permanência de uma interrogação para qual já não nos basta a resposta que nos deram. Sabemos hoje assim, meu amigo, que um Deus não é um ídolo sonhado a ouro e a incenso, diante do qual nos sintamos redimidos pela renúncia e esquecimento, mas é antes o espelho da interrogação original que nos veio no sangue. (PERMANÊNCIA DA INTERROGAÇÃO) O espelho quebrou-se, a interrogação ficou. Que nos não digam que se temos a certeza de os deuses terem morrido é flagrantemente absurdo pensar em função deles. Ah, sei bem, meu amigo, que o corpo que me sinto é um pobre arranjo de água e barro, sei bem, de uma absoluta evidência, dessa evidência gerada na raiz das vísceras, que o sentir-me uma pessoa, o reconhecer-me vivo é um ponto de chegada desde as eras de bilhões, desde a força que se multiplicou a partir do que quiseres, da eterna laboração do universo que se cumpre. Sei-o, sei-o. Mas a interrogação que me angustia é mais forte do que sabê-lo. Rasto de uma plenitude perdida, ela é o estigma e o anúncio de uma procura nova, de um arranque para o sonho lá de outra plenitude que tu conheces talvez nos limites definidos da tua condição e eu ignoro ainda, como o cego que não deixa de fixar os olhos sobre tudo o que o rodeia, como se o ter olhos, mesmo vãos, exigisse a sua utilidade – porque o sonho de ainda ver é mais forte do que a certeza de que os olhos são inúteis. (OS DEUSES NÃO SÃO DIVINOS) À medida que um deus existe, ele deixa de ser divino. Divino é só o alarme, a evidência do que somos, do sinal obscuro de tudo o que nos rodeia. Que a evidência para nós seja agora a da sombra, a da condenação – não é decerto nossa culpa. Se o dom da evidência é bem nosso nos instantes do milagre, o mundo que se nos revela está aí, à nossa frente, diante da nossa inocência. Conquistar as terras, os mares desconhecidos, os astros da eternidade – nós o podemos realizar; mas anular o que se no dá em vertigem, em flagrante aparição, não é isso da nossa força, como o não é o não ver quando os olhos se nos abrem para a luz. Ah, negar é fácil, sobretudo quando se nega o que é da superfície, e se guarda uma pequena e clandestina certeza (disso mesmo que se nega) para uma necessidade... Mas nós aceitamos a negação profunda e por isso não temos um protesto para os que ainda acreditam: a sua evidência (ou a face disso) é para nós uma saudade; não nos rimos das crianças por terem um mundo de crianças. (ILUSÃO E PLENITUDE) E depois, para muitos de nós, que vale a certeza de uma terra desabitada em face da ilusão de uma terra povoada de fantasmas? Se há uma vida a cumprir em unidade, se cada qual, dentro do seu mundo, é uma positividade sem margens – toda a vida está certa, para aquele que a vive, dentro da ilusão ou do erro. (COMUNIDADE HUMANA) Por isso nós conhecemos, fora do que nos oprime ou deseja oprimir, uma certa tolerância fatigada ou fraterna. Irmãos de uma só comunidade, esta que se limita no nascer, no morrer, na angústia de uma redenção qualquer, é bom que nos reconheçamos sob o mesmo império de uma mesma lei – é bom que um olhar de concórdia nos dê o que puder de reconforto e de encorajamento.



A chuva, que voltou, abranda agora na rua e na minha memora. Calma, cai agora sem a vergasta do vento, como o eco de uma resignação. Ouço-a num recanto de mim, onde um instante se revela o indício de uma paz final, não decerto a que imagino dentro da tua evidência, meu amigo, mas essa outra que emerge de um profundo cansaço – a única talvez que a vida tem para dar-nos a quantos de nós? Se ela nos traz porém os sinais da aceitação dos limites da nossa condição, não é inteiramente inútil, nem a forma, decerto, de uma resignação vencida.





(Carta ao Futuro)


Ilustração: Jean Leon Gerôme - Verité)


domingo, 27 de setembro de 2009

SURDINA, de Cecília Meireles








Quem toca piano sob a chuva,
na tarde turva e despovoada?
De que antiga, límpida música
recebo a lembrança apagada?

Minha vida, numa poltrona
jaz, diante da janela aberta.
Vejo árvores, nuvens, - e a longa
rota do tempo, descoberta.

Entre os meus olhos descansados
e os meus descansados ouvidos,
alguém colhe com dedos calmos
ramos de som, descoloridos.

A chuva interfere na música.
Tocam tão longe! O turvo dia
mistura piano, árvore, nuvens,
séculos de melancolia...



(Mar Absoluto e Outros Poemas / Os Dias Felizes)


(Ilustração: Aaron Coberly)




sábado, 26 de setembro de 2009

... E ELES FICAM TOCANDO BACH, de Jonathan Littell




Avançávamos à noite; de dia, nos escondíamos nos bosques; então eu dormia ou lia Flaubert, falando pouco com meus companheiros. Uma raiva impotente crescia em mim, eu não compreendia por que saíra da casa perto de Alt Draheim, odiava-me por me haver deixado arrastar para zanzar como um selvagem pelas florestas, em vez de ter ficado tranquilo. A barba corroia nossos rostos, a lama ressecada endurecia os uniformes e, sob o tecido áspero, as cãibras fustigavam nossas pernas. Comíamos mal, apenas o que conseguíamos encontrar nas fazendas abandonadas ou restos deixados por comboios de refugiados; eu não me queixava, mas achava imundo o toucinho cru, a gordura ficava grudada na boca, nunca havendo pão para torná-lo tolerável. Continuávamos com frio e não fazíamos fogo. Ainda assim deleitava-me com aquele agreste severo e sereno, o silêncio amigo dos bosques de bétulas ou das matas, o céu nublado agitado levemente pelo vento, o rangido aveludado das últimas neves do ano. Mas era um agreste morto, deserto: vazias as lavouras, vazias as fazendas. Todos os lugarejos de certas dimensões, que contornávamos à distância durante a noite, estavam ocupados pelos russos; em seus arrabaldes, no escuro, ouvíamos os soldados bêbados cantando e disparando rajadas para cima. Às vezes sobravam uns alemães nessas aldeias, discerníamos suas vozes amedrontadas mas pacientes em meio a exclamações e palavrões russos, os gritos tampouco eram raros, sobretudo gritos de mulher. Mas aquilo ainda era melhor que as aldeias incendiadas aonde a fome nos levava: o gado morto infectava as ruas, as casas exalavam, misturado ao cheiro de queimado, um odor de carniça, e, como tínhamos que entrar para encontrar o que comer, não podíamos deixar de ver os cadáveres contorcidos de mulheres, frequentemente nuas, até mesmo velhas ou meninas de dez anos, com sangue entre as pernas. Mas permanecer nos bosques não ajudava a escapar dos mortos: nas encruzilhadas, os galhos imensos de carvalhos centenários estavam carregados de cachos de enforcados, em geral Volkssturm, tristes idiotas vítimas de Feldgendarmes zelosos; os corpos espalhavam-se pelas clareiras, como aquele rapaz nu, deitado na neve com uma perna dobrada, tão sereno quanto o enforcado da décima segunda carta do Tarô, pavorosamente estranho; e, mais adiante, nas florestas, cadáveres poluíam os lagos turvos que contornávamos amargurando nossa sede. Nesses bosques e florestas, encontrávamos também vivos, civis aterrorizados, incapazes de nos fornecer a menor informação, soldados desgarrados ou pequenos grupos que, como nós tentavam burlar as linhas russas. Waffen-SS ou Wehrmacht, não queriam nunca nos acompanhar; deviam temer, em caso de captura, ser encontrados com altas patentes SS. Isso fez Thomas refletir e ele me obrigou a destruir minha caderneta de soldo e meus documentos e a arrancar minhas insígnias, para ocaso de cairmos nas mãos dos russos; porém, com medo dos Feldgendarmes, decidiu, bastante irracionalmente, que conservaríamos nossos belos uniformes pretos, um pouco descabidos para aquele programa campestre. Todas essas decisões, era ele quem as tomava; eu aceitava sem refletir e lhes obedecia, fechado a tudo exceto ao que me caía diante dos olhos no lento desenrolar da marcha.

Quando alguma coisa suscitava uma reação de minha parte, era pior ainda. Na segunda noite depois de Körlin, durante a madrugada, entramos em uma aldeola, algumas chácaras em torno de um solar. Um pouco ao lado deste erguia-se uma igreja de tijolos, encostada num campanário pontiagudo e coroado por um telhado de ardósia cinza; a porta estava aberta, por ela ressoava uma música de órgão; Piontek já partira para vasculhar as cozinhas; seguido por Thomas, entrei na igreja. Um velho, perto do altar, tocava A arte da fuga, o terceiro contraponto, creio, com aquele belo rolamento do baixo que no órgão é reproduzido no pedal. Aproximei-me, sentei-me num banco e escutei. O velho terminou a passagem e se voltou para mim: usava um monóculo e um bigodinho branco bem cortado e vestia um uniforme de Oberstleutnant da outra guerra, com uma cruz no pescoço. “Eles podem destruir tudo”, ele me disse tranquilamente, “mas não isto. É impossível, isto permanecerá para sempre; resistirá mesmo quando eu parar de tocar.” Eu não disse nada e ele atacou o contraponto seguinte. Thomas continuava de pé. Levantei-me também. Escutei. A música era magnífica, o órgão não tinha grande potência mas ressoava naquela igrejinha familiar, as linhas do contraponto cruzavam-se, brincavam, dançavam uma com a outra. Ora, em vez de me apaziguar, aquela música não fazia senão atiçar minha fúria, estava quase insuportável. Eu não pensava em nada, minha cabeça estava vazia de tudo exceto daquela música e da pressão soturna da minha fúria. Eu queria gritar para ele parar, deixei que terminasse a fuga, mas o velho encetou imediatamente a seguinte, a quinta. Seus longos dedos aristocráticos voavam pelas teclas do teclado, puxavam ou empurravam os registros. Quando rematou com um golpe seco no final da fuga, saquei minha pistola e disparei uma bala na cabeça dele. Ele desabou para frente sobre as teclas, abrindo a metade dos tubos num mugido desolado e dissonante. Guardei a pistola, me aproximei e o puxei para trás pela gola; o som cessou para deixar apenas o do sangue gotejando de sua cabeça sobre as lajes. “Você enlouqueceu completamente!”, sibilou Thomas. “Que deu em você!?” Olhei para ele friamente, estava pálido, mas minha voz, entrecortada, não tremia: “É por causa desses fidalgotes corrompidos que a Alemanha está perdendo a guerra. O nacional-socialismo desmorona e eles ficam tocando Bach. Isso deveria ser proibido.” Thomas me estudava, não sabia o que dizer. Depois deu de ombros: “No fim das contas, você tem razão. Mas que isso não se repita. Vamos embora.” Piontek, no grande terreiro, estava preocupado com o disparo e apontava sua submetralhadora. Sugeri dormirmos no solar, numa cama de verdade, com lençóis; mas acho que Thomas estava com raiva de mim, decidiu que dormiríamos de novo nos bosques, para me atormentar, creio. Mas eu não queria enraivecê-lo, e, depois, era meu amigo; obedeci e o segui sem protestar.



(As Benevolentes, tradução de André Telles)



(Ilustração: Felix Nussbaum - jew at the window)





sexta-feira, 25 de setembro de 2009

THE RAVEN/ O CORVO, de Edgard Allan Poe







Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore -
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
" 'Tis some visitor, " I muttered, "tapping at my chamber door -
Only this and nothing more."


Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore -
Nameless here for evermore.


And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before:
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating.
" 'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door -
That it is and nothing more."


Presently my soul grew stronger: hesitating then no longer,
"Sir, " said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore:
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you" - here I opened wide the door –
Darkness there and nothing more.


Deep into the darkness peering, long I stood there wondering fearing.
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before:
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore?"
This I whispered, and an echo murmured back the word "Lenore!" -
Merely this and nothing more.


Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattice;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore –
Let my heart be still a moment and this mystery explore -
'T is the wind an nothing more!"


Open here i flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just a bove my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.


Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."


Much I marveled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human beeing
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast upon the sculplured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."


But the Raven sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpoor.
Nothing further then he uttered, not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more then muttered, "Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before."
Then the bird said, "Nevermore."


Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utteres is it only stock and store
Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his Hope the melancholy burden bore
Of 'Never - nevermore.'"


But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door,
Then upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking, "Nevermore."


This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er
But whose velvet-violet lining with lamp-light gloating o'er
She shall press, ah, nevermore!


Then methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God has lent thee - by these angels he hath sent
thee Respite - respite the nephente from thy memories of Lenore!
Quaff, oh, quaff this kind nephente and forget this lost Lenore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."


"Prophet!" said I, "thing of evil! - prophet still, if bird of devil!
Whether Tempter sent, or whatever tempest tossed thee ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by Horror haunted - tell me truly,
I implore - Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!"
Quoth the Raven, "Nevermore."


"Prophet!" said I, "thing of evil! - prophet still, if bird of devil!
By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell his soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
Quoth the Raven, "Nevermore."


"Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting -
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!
Quoth the Raven, "Nevermore."


And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor,
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!


Tradução de Fernando Pessoa: 


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até; que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave; ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!



Tradução de Machado de Assis:



Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."


Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.


E o rumor triste, vago, brando,
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto e: "Com efeito
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."


Minhalma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora -
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais .


Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta:
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.


Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais tarde; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos.
Ela, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso.
do vento e nada mais."


Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto
Movendo no ar as suas negras alas.
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.


Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."


Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta,
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é o seu nome: "Nunca mais."


No entanto, o Corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."


Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais."


Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais."


Assim, posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava,
Conjecturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto,
Onde os raios da lâmpada caiam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.


Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso.
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."


"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: "Existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."


"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais.
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."


"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o Corvo disse: "Nunca mais."


E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!



(Ilustração: Goya - monstros)





quinta-feira, 24 de setembro de 2009

AOS 16 ANOS MATEI MEU PROFESSOR DE LÓGICA, de Campos de Carvalho








Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.

Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estelas e as lâmpadas do cais adormecido, dizia-me coisas numa língua que eu não conheci. Paguei-lhe à vista, se subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, de pois morrei tranquilamente dentro da noite calma.

Quando despertei, já um gari me estendia o último jornal da tarde, e pude ler então que uma grande hecatombe havia acontecido sobre a cidade de Melbourne, na Austrália,justamente enquanto eu dormia. Lavei meu rosto com o pranto, entreguei o jornal a um menino cego e saí correndo pela primeira rua que encontrei pela frente, até deparar com a estátua do marechal Joffre montado a cavalo.

No dia seguinte, como a guerra houvesse rebentado, apresentei-me a um general de divisão que encontrei espairecendo pelo Bois de Boulogne, e ele foi muito gentil para comigo, dando-me uma corneta e cinco mil francos para comprar um uniforme. Com a corneta toquei o Danúbio azul, mas em surdina, e com os cinco mil francos fui a uma sessão de cinema (um filme de Clara Bow, se não me engano) e dei o resto a um mendigo que me pareceu mais honesto do que os outros – ou do que eu, pelo menos. À margem do Sena pus-me a pensar sobre as incertezas da vida e o absurdo da guerra recém-deflagrada entre o Japão e a China, até que o sono me jogasse de novo de encontro às pedras, as mãos espalmadas como as de um cadáver.

Tudo isso do meu passado eu conto para que se possa ter uma ideia exata da minha situação presente, depois que me deram por excêntrico e me jogaram neste hotel de luxo onde os garçons, o gerente e o subgerente andam todos de branco, e têm também os dentes brancos e não vermelhos ou amarelos como toda gente. Conto, também, porque o dia aqui para mim tem 72 horas, e às vezes mais até, e eu necessito ocupar-me com qualquer coisa que não sejam os mosquitos da sala ou a minha coleção de palitos de fósforo, de há muito superada e já vendida a um nababo hindu que mora no quarto ao lado. Descobri que, escrevendo a história da minha vida, antes que a escrevam os outros ou que a não escreva ninguém, estarei prestando um serviço enorme não só à cultura, por isso que - - -

(Fui obrigado a interromper estas lucubrações para tomar um prato de sopa que me trouxe a gentil senhora do gerente ou do subgerente do hotel – de qualquer forma uma senhora respeitável e vesga, que às vezes me toma a temperatura pelo simples prazer de me ser agradável. Mas a sopa estava bastante amarga, ou assim me pareceu pelo menos.)

Mas eu dizia, se não e estou equivocado, que, finda a guerra sino-filandesa, fui preso como espião moscovita por causa de minhas barbas patriarcais e malcheirosas, e fui submetido a um conselho de guerra composto de 15 mil generais, todos eles fardados, que me absolveram unanimemente e me repatriaram ao meu país de origem. Qual esse país fosse, nem eles nem eu sabíamos, de forma que voltei tranquilamente a dormir sob as pontes de diversos rios da Europa, os quais eu já conhecia de vista através das aulas de geografia que me dava o meu professor de ginásio, ao tempo em que eu ainda teimava em aprender as coisas. Dniester, Reno, Vístula, Guadalquivir, Elba, Nitra, Ródano etc. etc. são nomes que se tronaram familiares aos meus ouvidos de tanto eu ouvi-los murmurar eles mesmos, e não pobres mestres escolas diante de ensebados mapas grudados à parede; a sua cantilena por muito tempo substituiu o doce acalanto de minha mãe na pátria desconhecida, que de resto nunca cheguei a conhecer, pois nunca fui criança.

Foi por essa época que aprendi a tocar berimbau com um professor do Conservatório de Varsóvia, herr Hepsteimm, e quando também resolvi fazer a minha primeira comunhão, por absoluto estado de fome. Desse aprendizado resultou-me a oportunidade de vir a ser mais tarde nomeado conselheiro musical na corte de Luís II da Baviera, o mesmo que tinha vários castelos assombrados e era dado a práticas de ocultismo, às quais aliás eu não era de todo alheio.

(Mas confesso que o lápis já me pesa na mão como se fora o mastro de um circo ou o próprio eixo da terra, o que me leva a parar de súbito essas reminiscências tão históricas e para mim tão caras, que um dia mostrarei aos meus companheiros de hotel para eles vejam até onde chega a fabulosa aventura humana, desde que - - -




(A Lua Vem da Ásia)




(Ilustração: Sergey Reznichenko)





quarta-feira, 23 de setembro de 2009

I DIED FOR BEAUTY/ PELA BELEZA, MORRI, de Emily Dickinson







I died for beauty, but was scarce

Adjusted in the tomb,

When one who died for truth was lain

In an adjoining room.


He questioned softly why I failed?

“For beauty”, I replied.

“And I for truth, - the two are one;

We brethren are, “ he said.


And so, as kinsmen met at night,

We talked between the rooms,

Until the moss had reached our lips,

And covered up our names.




Tradução de Isaias Edson Sidney:




Pela beleza morri, e estava ainda

Há tão pouco na tumba, quando

Alguém que pela verdade morrera

No túmulo vizinho se deitou.


Suavemente perguntou o motivo

De minha morte. “Pela beleza”, respondi.

“Pela verdade, eu – as duas são uma;

“Irmanados estamos”, ele disse.


E então, irmãos reunidos pela noite,

Ficamos a conversar entre os túmulos,

Até que o musgo fechou nossos lábios

E cobriu para sempre nossos nomes.




Tradução de Manuel Bandeira:



Morri pela beleza, mas apenas estava

Acomodada em meu túmulo,

Alguém que morrera pela verdade

Era depositado no carneiro contíguo.




Perguntou-me baixinho o que me matara:

--A beleza, respondi.

--A mim, a verdade -- é a mesma coisa,

Somos irmãos.




E assim, como parentes que uma noite se encontram,

Conversamos de jazigo a jazigo,

Até que o musgo alcançou os nossos lábios

E cobriu os nossos nomes.





Tradução de Jorge de Sena:



Morri pela Beleza – mas mal eu

Na tumba me acomodara,

Um que pela Verdade então morrera

A meu lado se deitava.



De manso perguntou por quem tombara…

– Pela Beleza – disse eu.

– A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa.

Somos Irmãos – respondeu.


E quais na Noite os que se encontram falam –

De Quarto a Quarto a gente conversou –

Até que o Musgo veio aos nossos lábios –

E os nossos nomes – tapou.




(Poemas)



(Ilustração: Adrian Gottlieb - truth corrupted by vanity)


terça-feira, 22 de setembro de 2009

CECÍLIA ENTRE OS LEÕES, de Osman Lins










Hermelinda e Hermenilda trespassam-se entre si. Observo-as, todo princípio de mês, ante os balcões de pedra da Delegacia Fiscal. Usam dentaduras postiças, sendo uma guarnecida com caninos de ouro. Tanto metem na boca uma peça como a outra. Vivendo sempre juntas, perderam, distraídas, o controle que exercemos sobre o corpo. Ambas deixam-se invadir e invadem a irmã. Venha uma de brincos ou, em dias mais frios, com um fichu em torno do pescoço. Basta que se cruzem no saguão, uma através da outra – já os brincos mudam de orelhas e o abrigo de espáduas. Não só os brincos, nem só o abrigo, ou os anéis baratos. As orelhas que elas trazem em maio aparecem em junho nas cabeças opostas; trocam de língua, de voz; seus quatro olhos mudam sempre de órbitas; uma transmigração se cumpre, uma troca perpétua, entre esses corpos mirrados mas ainda eretos. Arrisco-me a supor que os pesadelos de uma assustam a outra.



Hermenilda? Hermelinda?... Constato, ao travarmos relações, que se interpelam usando livremente aqueles nomes. Acabo não sabendo com qual das duas falo. Apesar do que ambas revelam de pouco habitual, e por mais que deseje estudá-las na intimidade, observo-as ao largo. São elas (“Qual? As duas?”) que me abordam, afáveis, junto à Caixa, dão-me o endereço e instam para que as visite, não em conseqüência de algum incidente – favor meu, gentilezas – que as lisonjeasse, mas por lhes caber uma função: a de me desviarem – a mim, sobrevivente da cisterna – de caminhos afastados de Cecília, pondo-me, para alegria nossa, meu luto e perdição dela, aqui, onde a sua existência ser-me-á anunciada e onde ela mesma, afinal, surgirá, abrirá o portão, ingressará no alpendre com seu andar de lavandeira.



Prossegue a música de Hermelinda, a que os pássaros respondem. Levanto-me da rede. Olho de uma em uma as gaiolas de junco, fabricadas pelas velhas, algumas de formato original, com suas aves cantantes (corto e cruzo nomes de pássaros: papa-campinas, xeúnas, os, galos-de-capins, rios, curinás, caxéus, sagrabiás); rodeio a mesa na sala de jantar, entro na oficina: gaiolas não terminadas, o rústico instrumental, o perfume silvestre de verniz e de madeira lixada; em toda parte a evocadora valsa de Hermelinda, em toda parte as gargantas ativas dos pássaros; aventuro-me à peça onde ficam o guarda-roupa, a grande cama de casal, a cômoda: em cima, o santuário, frascos de remédio, um mealheiro; o soalho da casa, de ladrilhos vermelhos, deve ter sido lavado nas primeiras horas da manhã; evitando, ociosamente, pisar entre um ladrilho e outro, torno à sala de jantar e vejo sobre a mesa, vejo, no centro de um pano redondo de filé, um álbum de fotografias. Não o percebera? Com decisão e rápido, como se no alpendre e nos quartos andasse à caça do álbum, apanho-o. Volto para a rede, examino-o.



Obras do tempo em que os fotógrafos, não captando o artifício existente na impossível naturalidade dos modelos e ambicionando dar uma impressão de vida aos seus trabalhos, fixam atitudes e gestos só aceitáveis longe da objetiva. O amarelamento das imagens e os danos das traças contestam a dolorosa aparência de ação.



- De quem são esses retratos?



- Pessoas. A maioria, aí, já conheceu a dextra. Teve o beneplácito.



- Sempre se recebe o beneplácito?



- Depende dos malfairos e da contrição.



Dois meninos de joelhos, sérios, no dia da Primeira Comunhão. Homens de c   péu e bengal  , lado a lado, uma pe na estendida e o har distante, como se a câmara os surpreendesse num escasso silêncio entre diálogos profundos; mulheres sentadas, otovel apoiado numa esa de és etorcidos; fechando graciosamente um leq entres as aos; moças de meias n gras e longos vesti claros, grande ç branco nos cabelos, sustendo um livro com uma frol entre as páginas e os o os voltados para mim; outras em meio a pedras e almeiras reais refletidas no telão ao fundo; ao lado de cães; famí s reunidas, cada qual olhando numa direção: no centro do grupo, um casal de crianças com chapéus de al vestidos de mar , segurando um ar ... Em meio a essa galeria composta e descorada, onde já inclusive se dissolve a identidade dos modelos, salta-me de súbito entre as mãos uma foto pouco hábil, datada de um mês, tirada em algum espetáculo circense: uma jovem sorrindo para a câmara, tendo nos braços um leão ainda novo, amordaçado. No verso, em letras achatadas e vagamente pretensiosas, esta inscrição: Cercília não tem medo de leões. 15, Junho, 1962. Cortado, porém, o R do nome.



Ouço (na estrada?) sons precipitados, cruzados, rodas e eixos, uma estrutura pesada desmembrando-se. O álbum estremece em minhas mãos. Movimento algum na estrada: a mesma paz. Mas Cecília, a que não tem medo de leões – as grades e a sombra vertical das grades barrando seu vestido amarelo –, abre o portão. Inicia, abrindo-o, uma frase metálica: o tilintar da pulseira no antebraço frágil, com pequenos astros e moedinhas de ouro, o ranger do ferro nos gonzos não lubrificados, o badalo de bronze na campainha de cobre, suspensa de um arco flexível de aço. Cai a aldrava no encaixe, pesada. O mesmo ruído, o mesmo, de uma jaula cerrando-se. Cecília, a Madona dos leões?



(...)



O leve e ritmado som dos sapatos de Cecília, com saltos de latão, percute no piso do alpendre. Passos rápidos, de quem necessita andar muito e vive com uma certa urgência. O homem, no outro lado da rua, baixa o braço e some com os meninos. Desce a mão de Hermelinda, firme, sobre as cordas do instrumento. O gato, na porta, pousa a pata no chão, os pássaros soltam o canto. Hermelinda vara o círculo de leões que ameaça Cecília e beija-a no rosto. Também o canto dos pássaros soa, nítido, metálico. Cecília, com um sorriso, faz os leões subirem nos telhados balançando a cauda. O que conversam, Hemenilda e Cecília, não escuto. A língua de Cecília: leão lascivo. Hermenilda faz um gesto em minha direção e indica-a: “Chama-se Cecília. Trabalha no Hospital Pedro II. Serviço Social.” Ela inclina a cabeça, fita-me um instante e desvia o olhar. Volta a fitar-me rápida (abelhas solitárias, esses olhos, riscando as superfícies.) “Abel é homem das letras e dos livros. Filósofo. Conhece o outro lado da Terra.” Zumbem leões negros e velozes nos olhos de Cecília. Cecília senta-se no banco de vinhático ao lado de Hermenilda e cruza as pernas delgadas. Visível a ossatura dos joelhos. O silêncio de Cecília é atravessado por leões.





(Avalovara)


(Nota: as falhas datilográficas em um dos parágrafos do texto seguem indicação exata do autor).

(Ilustração: Aaron Coberly)