segunda-feira, 26 de agosto de 2024
ALGUMA VEZ VOCÊ OUVIU O QUEIXUME DE UM MORTO?, de Juan Rulfo
— O que está acontecendo, dona Eduviges?
Ela balançou a cabeça como se despertasse de um sonho.
— É o cavalo de Miguel Páramo, galopando pelo caminho da Media Luna.
— Mas então, alguém mora em Media Luna?
— Não, lá não mora ninguém.
— E então?
— É só o cavalo, que vai e que vem. Eles eram inseparáveis. Corre por tudo que é canto, procurando por ele e volta sempre a esta hora. Talvez o coitado não aguente o remorso. Porque até os animais sabem quando cometem um crime, não é?
— Não entendo. Nem ouvi nenhum ruído de nenhum cavalo.
— Não?
— Não.
— Então é coisa do meu sexto sentido. Um dom que Deus me deu; ou talvez uma maldição. Só eu sei o que sofri por causa disso.
Guardou um longo silêncio e depois acrescentou:
— Tudo começou com Miguel Páramo. Só eu soube o que tinha acontecido com ele na noite em que morreu. Estava deitada quando ouvi seu cavalo regressar rumo à Media Luna. Achei estranho porque ele nunca voltava naquela hora. Somente na entrada da madrugada. Ia conversar com sua noiva num povoado chamado Contla, um tanto longe daqui. Saía cedo e demorava a voltar. Mas naquela noite não regressou... Está ouvindo agora? Claro que dá para ouvir. Está de regresso.
— Não ouço nada.
— Então é coisa minha. Bem, como eu estava dizendo, essa história de que ele não regressou é só um jeito de falar. O cavalo mal tinha acabado de passar, quando ouvi que batiam na minha janela. Vá saber se foi ilusão minha. Mas a verdade é que alguma coisa me obrigou a ir ver quem era. E era ele, Miguel Páramo. Não estranhei, pois houve um tempo em que passava a noite na minha casa dormindo comigo, até encontrar essa moça que sorveu seus miolos.
“— O que aconteceu? — perguntei a Miguel Páramo. — Levou um fora?
“— Não. Ela continua gostando de mim — ele me disse. – Acontece que não consegui encontrá-la. Não achei o povoado. Havia muita neblina ou fumaça ou sei lá o quê; mas o que sei é que Contla não existe. Fui além dela, pelos meus cálculos, e não encontrei nada. Vim contar isso a você, porque você me compreende. Se eu contasse aos outros de Comala iam dizer que fiquei louco, do jeito que sempre disseram que sou.
“— Não. Louco não, Miguel. Você deve estar é morto. Lembre-se que disseram a você que esse cavalo ainda iria matá-lo algum dia. Lembre-se, Miguel Páramo. Pode até ser que você tenha desandado a fazer loucuras, mas isso já é uma outra história.
“— Eu só saltei a cerca de pedra que ultimamente meu pai mandou botar. Fiz o Colorado saltar para não dar esse rodeio tão longo que é preciso fazer agora para encontrar o caminho. Sei que pulei e depois continuei correndo; mas, como eu digo, não havia nada além de fumaça e fumaça e fumaça.
“– Amanhã seu pai vai se contorcer de dor — eu disse. — Sinto por ele. Agora vá embora e descanse em paz, Miguel. Agradeço você ter vindo se despedir de mim.
“E fechei a janela.
“Antes que amanhecesse o peão da Media Luna veio me dizer:
“— O patrão dom Pedro suplica. O menino Miguel morreu. Ele suplica pela sua companhia.
“— Já estou sabendo — respondi. — Pediram a você que chorasse?
“— Sim, senhora, dom Fulgor me disse que dissesse isso chorando.
“— Está bem. Diga a dom Pedro que eu vou. Faz muito tempo que trouxeram Miguel?
“— Não faz nem meia hora. Se fosse antes, talvez ele tivesse se salvado. Ainda que, conforme disse o doutor que o apalpou, ele já estivesse frio fazia tempo. Ficamos sabendo porque o Colorado voltou sozinho e ficou tão inquieto que não deixou ninguém dormir. A senhora sabe como ele e o cavalo se gostavam, e estou a ponto de achar que o cavalo sofre mais até do que dom Pedro. Não comeu nem dormiu e só faz correr para lá e para cá. Como se soubesse, a senhora sabe? Como se se sentisse despedaçado e carcomido por dentro.
“— Não se esqueça de fechar a porta quando sair.
“E o moço da Media Luna foi embora.”
— Alguma vez você ouviu o queixume de um morto? — ela me perguntou.
— Não, dona Eduviges.
— Melhor para você.
(Pedro Páramo; tradução de Erik Nepomuceno)
(Ilustração: Diego Rivera - liberation of the peon, 1931)
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