sábado, 17 de agosto de 2024

LINHAGEM, de Adélia Prado

 





Minha árvore ginecológica

me transmitiu fidalguias,

gestos marmorizáveis:

meu pai, no dia do seu próprio casamento,

largou minha mãe sozinha e foi pro baile.

Minha mãe tinha um vestido só, mas

que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!

Meu avô paterno negociava com tomates verdes,

não deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,

até o fim de sua vida, os poros pretos de cinza:

‘Não me enterrem na Jaguara. Na Jaguara, não.’

Meu avô materno teve um pequeno armazém,

uma pedra no rim,

sentiu cólica e frio em demasia,

no cofre de pau guardava queijo e moedas.

Jamais pensaram em escrever um livro.

Todos extremamente pecadores, arrependidos

até a pública confissão de seus pecados

que um deles pronunciou como se fosse todos:

‘Todo homem erra. Não adianta dizer eu

porque eu. Todo homem erra.

Quem não errou vai errar.’

Esta sentença não lapidar, porque eivada

dos soluços próprios da hora em que foi chorada,

permaneceu inédita, até que eu,

cuja mãe e avós morreram cedo,

de parto, sem discursar,

a transmitisse a meus futuros,

enormemente admirada

de uma dor tão alta,

de uma dor tão funda,

de uma dor tão bela,

entre tomates verdes e carvão,

bolor de queijo e cólica.



(O coração disparado)



(Ilustração: Cândido Portinari, 1666)

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