quinta-feira, 29 de agosto de 2024

CANÇÕES, de António Botto

 


1.




Não. Beijemo-nos, apenas,

Nesta agonia da tarde.

Guarda -

Para outro momento.

Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde

E a convivência contigo

Modificou-me - sou outro. . .

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva

Dos teus cabelos, - És lindo!

A morte

Devia ser

Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas

Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,

- Que mais precisamos nós?



2.



Quem é que abraça o meu corpo

Na penumbra do meu leito?

Quem é que beija o meu rosto,

Quem é que morde o meu peito?

Quem é que fala da morte

Docemente ao meu ouvido?

- És tu, senhor dos meus olhos,

E sempre no meu sentido.

3.



Tenho a certeza

De que entre nós tudo acabou.

- Não há bem que sempre dure,

E o meu, bem pouco durou.

Não levantes os teus braços

Para de novo cingir

A minha carne de seda;

- Vou deixar-te, vou partir!

E se um dia te lembrares

Dos meus olhos cor de bronze

E do meu corpo franzino,

Acalma

A tua sensualidade

Bebendo vinho e cantando

Os versos que te mandei

Naquela tarde cinzenta!

Adeus!

Quem fica sofre, bem sei;

Mas sofre mais quem se ausenta!



4.

Pelos que andaram no amor

Amarrados ao desejo

De conquistar a verdade

Nos movimentos de um beijo;

Pelos que arderam na chama

Da ilusão de vencer

E ficaram nas ruínas

Do seu falhado heroísmo

Tentando ainda viver!,

Pela ambição que perturba

E arrasta os homens à Guerra

De resultados fatais!,

Pelas lágrimas serenas

Dos que não podem sorrir

E resignados, suicidam

Seus humaníssimos ais!

Pelo mistério subtil,

Imponderável, divino,

De um silêncio, de uma flor!,

Pela beleza que eu amo

E o meu olhar adivinha,

Por tudo que a vida encerra

E a morte sabe guardar,

- Bendito seja o destino

Que Deus tem para nos dar!



5.





Meu amor na despedida

Nem uma fala me deu;

Deitou os olhos ao chão

Ficou a chorar mais eu.

Demos as mãos na certeza

De que as dávamos amando;

Mas, ai!, aquela tristeza

Que há sempre neste "Até quando?,"

- Numa lágrima surgiu

E pela face correu. . .

Nada pudemos dizer,

Ficou a chorar mais eu.



6.

Se passares pelo adro

No dia do meu enterro,

Dize à terra que não coma

Os anéis do meu cabelo.

Já não digo que viesses

Cobrir de rosas meu rosto,

Ou que num choro dissesses

A qualquer do teu desgosto;

Nem te lembro que beijasses

Meu corpo delgado e belo,



Mas que sempre me guardasses

Os anéis do meu cabelo.

Não me peças mais canções

Porque a cantar vou sofrendo;

Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo.

Se a minha voz conseguisse

Dissuadir essa frieza

E a tua boca sorrisse !

Mas sóbria por natureza

Não a posso renovar

E o brilho vai-se perdendo...

- Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo.




(Ilustração: Paul Cadmus)

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