quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O MEU AMIGO, de Carla Kinzo

 



Costumam virar os olhos quando eu digo que é meu amigo. Talvez eu mesmo vire os olhos quando digo, é meu amigo. É quase involuntário. Talvez soe estranha a frase quando formulada, acho que invariavelmente o volume da minha voz se altera depois do pronome possessivo, meu. Amigo. Ah, a pessoa do outro lado responde, às vezes é um Ah, é?, tentando não demonstrar, no ah, no é, a dúvida, a hesitação, o espanto, ah. Às vezes a confusão continua em frases constrangidas, nossa, mas vocês são tão diferentes, não imaginava, é que você é uma pessoa boa. Não sou. Mas somos mesmo diferentes, ele e eu, e o que temos em comum basta. Faz mais de trinta anos que ele vem. Começou com o tabaco, uma vez por semana. Depois, quando não era mais apenas o tabaco, passou a ser a seda do cigarro, o filtro. Tornou-se hábito o café. Ele se senta lá fora, três vezes por semana há mais de trinta anos, sempre na mesinha encostada à porta de vidro; eu venho, passo o pano sobre a mesa, não preciso mais perguntar, nem ele me pedir. Trago o expresso, a água com gás que ele raramente toma; nunca deixo de trazer, sou justo. Seu estômago não é feito para a água, mas para o café — forte, quente, curto. Também não recebe bem os docinhos, que testei há quinze anos ao lado da xícara, no pires. Voltavam sempre, intactos, às vezes amolecidos pelo calor da porcelana. Desisti, tirei-os de todos os cafés. Seu estômago vem dando a medida exata da tabacaria nesses anos, me conteve da tentação dos excessos depois que milhares de cafés se espalharam pelo bairro com seus cardápios cheios de combinações; os bolinhos, os pãezinhos, os quatro tipos de açúcar. Sou grato a seu estômago. E faz uns vinte anos que começamos a conversar. Deve ter tido algo a ver com o fato das nossas vistas começarem a envelhecer; a minha, cada vez mais míope, acabava se detendo em sua mesa, desistindo da rua; a dele, cada vez mais cansada, tinha que se levantar muitas vezes do papel para olhar em volta. “Pessoas que depressa produzem provas exteriores de amizade entre si querem ser amigos, mas não podem sê-lo logo”, diz aquele filósofo, “é preciso primeiro que se tornem dignos de amizade e se possa reconhecer neles essa mesma dignidade”, acho que é grego, “o desejo de amizade nasce depressa, mas a amizade não.” Não sei se quis ser amigo dele, o fato é que nossas vistas se cruzaram. Foi assim que passei a saber, antes de serem publicadas, das críticas que ele escrevia aos livros recém-lançados, quase sempre violentas; curioso, passei a ler alguns desses livros. Por causa dele, passei a ler mais e sempre. Nem sempre concordava com o que ele escrevia — como a maioria dos meus clientes, aliás, que vêm aqui há quase o mesmo tempo que ele. Alguns deles, são os escritores destes livros. Não posso deixar de admirar a maneira como ele sempre reagiu às provocações daqueles que o reconheciam escrevendo na mesa, os dedos grossos manchados de tabaco, inconfundível, os dentes manchados de café. “Dizem que tentou escrever um romance”, “que não tem as cordas vocais”, “que matou a mulher”, “que tem um cromossomo X a mais” etc., etc., etc. Ouvi de tudo; ele ouviu de tudo. Acho que o teor do que escrevia era mesmo pesado; acho que as pessoas eram até que comedidas quando o viam escrevendo na mesa, “olha aí o vampiro de Dusseldorf”, mas ele era meu amigo. Não podia deixar de admirar o modo como ele apenas levantava a vista dos óculos pendidos sobre o nariz adunco e voltava a escrever. Impassível. Passei a ser assim também, não me deixava afetar. Não sei como você aguenta esse sujeito; é que ele é meu amigo; ah… é? Se a pessoa ficava decepcionada demais, eu dispensava que me pagasse, não sei, o cafezinho. Se tentava disfarçar sua decepção, eu enfiava uma bala de hortelã no troco, dava uma batidinha no dorso de sua mão e, fechando o olho direito, quase que piscando, não precisava nem dizer, “deixa”. Deixa o homem, é um solitário. E era mesmo. Ou devia ser, claro. O homem é meu amigo, mas não falamos as coisas, não é preciso. Ele vem, compra o tabaco, não precisa me dizer a marca, não sorri, se senta, eu lhe sirvo o café, nossos olhares se cruzam, ele fala do livro que anda resenhando, “uma bela porcaria”, me estende o volume, “fica”, tá feita a minha noite. Quando o autor vem comprar tabaco, tomar café, ou espiar meu amigo, digo que li seu livro. Contente, ele volta; tudo isso fez um bem enorme para os negócios. E gostou? Gostei. Eu gostava quase sempre. Ler me faz bem para a cabeça, principalmente depois que fiquei viúvo. Há vinte anos que minha biblioteca aumenta, nunca mais me senti só depois de fechar a tabacaria, voltar para casa. Tão vazia a casa desde que perdi minha mulher, dezoito anos atrás; nem foi preciso dizer isso a meu amigo. Ele entendeu. E começou a me dar os livros de presente. “É uma droga, toma, lê se tem coragem”. Sempre tenho.



(Ilustração: Richard Diebenkorn - still life with book)

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