sexta-feira, 14 de novembro de 2025
UMA CARTA DE DANÇAS E CAMÉLIAS BRANCAS, de Rainer Maria Rilke
[...] é a primeira vez, por mais estranho que seja, que narro (e, no fim das contas, apenas para mim mesmo) um acontecimento da minha mais remota infância.
O quanto eu ainda devia ser pequeno naquela época é algo que posso deduzir do fato de me ajoelhar sobre a poltrona para alcançar confortavelmente a mesa sobre a qual desenhava. Era à noitinha, no inverno, se não me engano, na casa da cidade. A mesa estava em meu quarto, entre as janelas, e não havia outra lâmpada no quarto senão aquela que iluminava minhas folhas e o livro de mademoiselle; pois mademoiselle estava sentada ao meu lado, um tanto afastada para trás, e lia. Ela ficava bem distante quando lia, e não sei se estava no livro; podia ler por horas a fio, raramente virava uma folha, e eu tinha a impressão de que abaixo dela as páginas ficavam sempre mais cheias, como se acrescentasse palavras com o seu olhar, palavras determinadas de que precisava e que não estavam lá. Era o que me parecia enquanto desenhava. Eu desenhava devagar, sem propósitos muito determinados, e quando não sabia mais como ir adiante, olhava tudo com a cabeça levemente voltada para a direita; era assim que sempre me ocorria mais depressa aquilo que ainda estava faltando. Eram oficiais a cavalo que cavalgavam para a batalha, ou que já estavam no meio dela, o que era muito mais simples, pois o que havia a fazer então era quase tão-somente a fumaça que tudo envolvia. Mamãe, todavia, sempre afirmava que eu desenhava ilhas; ilhas com árvores grandes, um castelo, uma escadaria e flores na beirada que deveriam se refletir na água. Mas acho que ela inventava isso, ou isso deve ter sido mais tarde.
É certo que naquele dia à noitinha eu desenhava um cavaleiro, um solitário cavaleiro, muito nítido, sobre um cavalo estranhamente ajaezado. Eu alternava os lápis com frequência, e ele ia ficando sempre mais colorido, mas era sobretudo o vermelho que me interessava e que sempre voltava a pegar. Precisava dele outra vez; foi quando ele rolou (ainda o vejo) de viés até a borda da mesa sobre a folha iluminada, caiu antes que eu pudesse impedir e sumiu. Eu precisava dele realmente com urgência, e era bem incômodo ter de me arrastar em sua busca. Desajeitado como eu era, custou-me toda sorte de esforços chegar ao chão; minhas pernas me pareciam longas demais, eu não conseguia tirá-las de baixo do meu corpo; sustentada por tempo demais, a posição de joelhos tinha entorpecido meus membros; eu não sabia mais o que era parte de mim e o que era parte da poltrona. Enfim, porém, um tanto confuso, cheguei ao chão e me encontrei sobre uma pele que se estendia debaixo da mesa chegando quase até a parede. Mas então surgiu uma nova dificuldade. Acomodados à claridade lá em cima e ainda completamente entusiasmados com as cores sobre o papel branco, meus olhos não reconheciam o mínimo que fosse embaixo da mesa, onde o preto me parecia tão fechado que eu tinha medo de esbarrar nele. Confiei, portanto, no meu tato, e, de joelhos e apoiado sobre a mão esquerda, sondei com a outra mão o tapete frio e de fios longos, bem familiar ao toque; apenas não havia sinal do lápis. Eu achava que estava perdendo tempo demais e já queria chamar mademoiselle e lhe pedir que segurasse a lâmpada para mim, quando percebi que a escuridão se tornava pouco a pouco mais transparente para os meus olhos, que se esforçavam involuntariamente. Eu já podia distinguir a parede atrás, rematada por um rodapé claro; orientei-me pelas pernas da mesa; reconheci, sobretudo, a minha própria mão aberta que, completamente sozinha, um pouquinho como um animal aquático, se movia lá embaixo e investigava o fundo. Eu a via, ainda me lembro, quase curioso; era como se pudesse fazer coisas que eu não a tinha ensinado, tal a maneira despótica com que tateava lá embaixo com movimentos que eu nunca a tinha observado fazer. Acompanhei o seu avanço, era algo que me interessava e eu estava preparado para muita coisa. Mas como deveria estar preparado para que, de repente, saída da parede, viesse ao seu encontro uma outra mão, uma mão maior, incomumente magra, como jamais tinha visto semelhante? Ela procurava da mesma maneira a partir do outro lado, e as duas mãos abertas se moviam cegamente uma em direção à outra. Minha curiosidade ainda não havia sido consumida, mas, de súbito, ela tinha acabado, e o que restava era apenas o horror. Senti que uma das mãos me pertencia e que estava se metendo em alguma coisa que não poderia ser remediada. Com todos os direitos que tinha sobre ela, detive-a e puxei-a de volta, aberta e devagar, enquanto não perdia a outra de vista, que continuava procurando. Compreendi que ela não desistiria; não sei dizer como foi que me levantei. Fiquei sentado bem no fundo da poltrona, batia o queixo e tinha tão pouco sangue no rosto que me pareceu que não haveria mais azul em meus olhos. Mademoiselle, quis dizer e não consegui, mas ela se assustou por si mesma, largou seu livro e se ajoelhou ao lado da cadeira chamando meu nome; acho que me sacudiu. Mas eu estava completamente consciente. Engoli em seco algumas vezes, pois queria contar o que tinha acontecido.
Mas como? Eu me concentrei de uma forma indescritível, mas não era algo que se pudesse expressar de modo que alguém compreendesse. Se existiam palavras para esse acontecimento, eu era muito pequeno para encontrá-las. E de repente fui tomado pelo medo de que, passando por cima da minha idade, elas pudessem estar repentinamente aí, essas palavras, e ter de dizê-las me pareceu então mais terrível que tudo. Passar outra vez por aquela coisa real ali embaixo, de outra maneira, modificada, desde o início; ouvir como a admitia – para isso eu não tinha mais forças.
É presunção, obviamente, se afirmo agora que já naquela época eu tinha sentido que naquela ocasião havia entrado algo em minha vida, e entrado diretamente, com o que eu teria de lidar sozinho, sempre e sempre. Vejo-me deitado em minha pequena cama gradeada, sem dormir, antevendo de algum modo impreciso que a vida seria assim: cheia de coisas singulares que são pensadas apenas para um indivíduo e que não se deixam dizer. Certo é que pouco a pouco surgiu em mim um orgulho triste e grave. Eu imaginava como seria andar por aí cheio de coisas interiores, e em silêncio. Senti uma simpatia arrebatada pelos adultos; eu os admirava, e me propus lhes dizer que os admirava. Propus-me dizê-lo a mademoiselle na primeira ocasião. E então veio uma dessas doenças que tinham o propósito de me mostrar que aquela não fora a primeira vivência própria. A febre remexeu em mim e tirou bem lá do fundo experiências, imagens e fatos que eu ignorava; eu jazia ali, sobrecarregado de mim, e esperava pelo momento em que me fosse mandado acomodar todas essas coisas outra vez em mim, ordenadamente, segundo a sua sequência. Comecei a fazê-lo, mas aquilo começou a crescer debaixo de minhas mãos, aquilo resistia, era demais. Então fui tomado pela raiva e amontoei tudo dentro de mim e apertei; mas eu não fechava mais. E aí gritei, meio aberto como estava, gritei e gritei. E quando comecei a olhar para fora de mim, eles estavam parados há tempo em volta da minha cama e me seguravam as mãos, e havia uma vela, e as suas grandes sombras se moviam atrás deles. E meu pai me ordenou que dissesse o que estava acontecendo. Era uma ordem amigável, branda, mas era uma ordem, em todo o caso. E ele ficou impaciente quando não respondi.
Mamãe nunca vinha à noite – quer dizer, uma vez ela veio. Eu tinha gritado e gritado, e mademoiselle tinha vindo, e Sieversen, a governanta, e Georg, o cocheiro; mas isso não adiantou nada. Eles mandaram, por fim, a carruagem buscar meus pais, que estavam em um grande baile, acho que oferecido pelo príncipe herdeiro.
E, de repente, ouvi-a entrar no pátio e fiquei quieto, sentado e olhando para a porta. Houve um pouco de ruído nos outros quartos e mamãe entrou usando o grande vestido da corte, com o qual não teve qualquer cuidado, e quase corria e deixou cair sua peliça branca atrás de si e me tomou nos braços nus. E eu toquei, espantado e encantado como nunca, seu cabelo e seu rosto pequeno e cuidado, as pedras frias em suas orelhas e a seda que orlava seus ombros que cheiravam a flores. E ficamos assim e choramos suavemente e nos beijamos até perceber que o pai estava ali e que tínhamos de nos separar.
– Ele está com febre alta – ouvi mamãe dizer timidamente, e o pai pegou minha mão e tomou meu pulso.
Ele usava o uniforme de monteiro-mor [1] com o galão bonito, largo, aquaticamente azul da Ordem do Elefante.
– Que absurdo nos chamar – ele disse para as paredes, sem me olhar.
Eles tinham prometido voltar para o baile se não fosse nada sério. E não era nada sério. E sobre meu cobertor encontrei a carta de danças[2] de mamãe e camélias brancas, que nunca tinha visto, e que pus sobre meus olhos assim que percebi como eram frias.
Notas:
[1]Monteiro-mor ou couteiro-mor era um oficial da casa real encarregado de governar, superintender e dirigir as coutadas de caça, e dirigir as caçadas reais e as pessoas que nelas participavam.
[2]. Carta de danças: relação das danças a serem executadas durante um baile e dos parceiros escolhidos pela dama para cada uma delas.
(Os cadernos de Malte Laurids Brigge; tradução de Renato Zwick)
(Ilustração: Berthe Morisot - Wiege, 1873)
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