domingo, 2 de novembro de 2025

POR QUE SOU COMUNISTA – E PORQUE VOCÊ TAMBÉM DEVERIA SER, de Helen Razer

 



No curto preâmbulo de O Manifesto Comunista, um dos textos mais lidos da história, percebe-se que os autores estavam de sacos cheios até as barbas. Karl Marx e Friedrich Engels estavam realmente cansados de explicar que a palavra “comunismo” não era um sinônimo de “mal” ou “ingenuidade”, mas um estágio histórico vital para o florescimento de tudo. Em 1848, eles resolveram dar fim à amedrontada conversa europeia a respeito do "espectro" do comunismo. Mas, passados mais de um século e meio, a tensa especulação sobre o comunismo mantém-se firme e inabalável.

Marx talvez tenha sido um dos mais influentes pensadores do mundo. No entanto, o que ele escreveu é raramente ensinado no Ocidente. Devemos ter escasso conhecimento de suas teorias nos dias atuais, mas acalentamos uma enorme certeza de que suas ideias ruíram, reduzidas a pó, com a queda do Muro de Berlim [1989].

Bem... não ruíram. O muro nunca conteve o comunismo. Mas, droga, o comunismo contém algumas ideias que ainda são bastante atraentes, especialmente em tempos como os de agora, quando a crise econômica é sentida por tantas pessoas.

O comunismo é um sistema de organização social que nunca foi verdadeiramente posto em funcionamento, e, nos dias atuais, nunca foi devidamente explicado. Ainda assim, inspira medo em alguns, zombaria em outros, e uma quase despreocupação quanto ao que ele na verdade tenta comunicar.

Você poderia ler Marx por sua própria iniciativa, claro, e descobrir que o seu comunismo não é feito de monstros tristes, mas, antes, de pensamento complexo rumo a uma evolução social futura. Muitas de suas características podem até mesmo ser aceitas por sua tia conservadora, caso ela o leia também. Mas, considerando-se que a) Marx seja rude, e b) você esteja muito ocupado enquanto gera lucro todo dia para capitalistas, passemos a uma précis[1].

Existiram muitos pensadores socialistas significativos e comunistas, mas o fato de chamarem a si próprios de marxistas é uma dica de que os escritos desse cara – particularmente os três volumes de O Capital – são fundamentais. Mas, você está ocupado demais, e O Capital é muito longo e com certeza vai fazê-lo adormecer em algum momento, ao ler o Volume 2.

Como as pessoas que precisam de Marx têm pouco tempo para ler Marx, faremos isso rapidamente. Tentemos alguns subtítulos, antes de transformarmos o mundo.

Qual a diferença entre comunismo, socialismo e liberalismo?

Primeiro, você terá que suportar uma daquelas passagens tediosas, onde definiremos alguns termos. Aqui vamos: Socialismo e comunismo e liberalismo [2] não são palavras intercambiáveis. Só porque os membros da direita alternativa [3] vomitam expressões extraídas de uma sacola de retalhos insultuosos chamada Torne-a-América-Grande-Novamente (dentre os quais podem ser incluídos "feminazi", "guerreiro da justiça social" e "floco de neve"), eles carregam significados distintos. Embora essa turma possa considerar que ser um "liberal" é o mesmo que ser comunista, essas são categorias diferentes de pensamento.

O liberal, tanto o progressivo quanto o conservador, acredita que os problemas sociais derivam, em grande parte, dos princípios morais dos indivíduos pobres. A candidata presidencial Hillary Clinton, por exemplo, disse que nossa intolerância moral às minorias é o grande problema dos Estados Unidos; o presidente Donald Trump disse que privilegiar moralmente as minorias é o grande problema dos Estados Unidos.

Os comunistas não concordam com nenhuma dessas posições. Os comunistas concordam que a opressão às minorias é um problema real – veementemente real, na verdade – mas não veem a moral duvidosa como origem disso tudo. Ao contrário, a opressão é o resultado do chamado nosso "modo de produção", a maneira como organizamos nossos meios de sobrevivência. Atualmente, esse sistema é o capitalismo. O comunismo é crítica e antídoto ao capitalismo, com todos os seus problemas, inclusive aqueles relacionados à divisão cultural e social.

Um liberal acredita que o capitalismo pode ser humanizado. Faz uso da frase "capitalismo de amigos" para sugerir que o capitalismo é ruim apenas quando pessoas ruins são capitalistas. Um socialista é cético a esse respeito. Um comunista não acredita nem sonha em acreditar nisso. Em outras palavras, os liberais pensam que algumas poucas maçãs podres deterioram a mercadoria. Um comunista pensa que o pacote inteiro está podre.

Um comunista é um socialista, mas um socialista não é necessariamente um comunista. Um comunista acredita que o socialismo é uma fase histórica que antecede o comunismo e se segue ao capitalismo. Socialismo é um sistema onde o Estado é o dono de parte ou de toda propriedade. Um socialista seria feliz apenas movendo algumas peças e, por assim dizer, assegurando-se de que bancos de investimento que se comportam de modo censurável nem sempre são os primeiros beneficiários de políticas governamentais de bem-estar.

Um comunista quer mais. Um comunista busca a abolição da propriedade, pertença ela ao Estado ou empresas privadas e cidadãos; quer que todos nós possuamos tudo equitativamente e sejamos nossos próprios ditadores. Um comunista busca condições para abolir todo o Estado e ter toda a sociedade humana coletivamente gerenciada.

A senda para o comunismo

Para apresentar seus argumentos de que o modo de produção é o ponto de partida para muitas das nossas ideias e experiências de vida, Marx regride no tempo. "A história de toda sociedade até aqui existente é a história das lutas de classe", Marx escreveu o que se tornaria célebre. Ou seja, o trabalho de muitos assegurou o conforto de poucos desde a Revolução Neolítica. Essa é a nossa luta.

Em uma economia de escravidão, muitos de nós somos escravos. Em uma economia feudal, muitos de nós somos servos. Em uma economia capitalista, tornamo-nos os servidores de uma pequena classe de capitalistas.

Em um modo de produção escravocrata, os escravos doam todo o seu trabalho – o que Marx chama de "mais valia" – ao dono dos escravos. Sob o feudalismo, o servo dava aproximadamente 50% de sua "mais valia" ao senhor. Sob o capitalismo atual, nós damos bastante de nossa "mais valia" para nossos patrões. Você pode ganhar seu salário em duas ou três horas, e o restante de seu trabalho é transformado em lucro pela firma para a qual você trabalha. Se um negócio deixa de dar lucro – que deriva da mais valia provida pelo trabalhador – esse negócio não durará muito tempo.

O liberal progressista acredita que se encorajarmos os donos do negócio a serem pessoas melhores, essa exploração não ocorrerá. Mas o comunista acredita que a exploração é inevitável.

Você poderia pensar que a vontade individual é mais poderosa que o modo de produção em que ela exista. A respeito disso, um comunista, particularmente um que esteja mal-humorado, pode contestá-lo com uma foto de uma criança congolesa trabalhando em uma mina de minério raro usado em nossos smartphones. Nenhum treinamento em assertividade vai ajudar aquela criança a ser bem sucedida. O nosso modo de produção exerce um papel muito significativo no seu desenvolvimento: o capitalismo precisa daquele trabalho barato para funcionar. Para um comunista, a verdadeira face do capitalismo é essa criança. Se queremos a virtude, ela absolutamente "não começa" –, segundo a crença liberal, – "comigo". Ela começa com o modo de produção.

O grande segredo é que Marx estava de fato bastante impressionado com o capitalismo, o nosso atual modo de produção nesse estágio da história. Da mesma forma que ele encorajava os trabalhadores do mundo a confiscar o maquinário e reivindicar que os produtos e ferramentas do seu labor eram propriedade coletiva – ele elogiava o capitalismo. Ele viu a abundância que ele podia criar e prognosticou um tempo em que as máquinas fariam a maior parte do trabalho maçante, que a inovação resolveria muitos dos problemas humanos.

O comunista acredita que o capitalismo produz crises regulares, e que com o passar dos anos sobrevirá a tendência de que a taxa de lucro caia. Do ponto de vista marxista, o capitalismo tem seus dias contados, devido ao atual modo de produção. Sendo assim, melhor seria se tivéssemos algum comunismo pronto para entrar em ação. Porque, Deus sabe, por certo dispomos de algumas pobres soluções para períodos de crise do capitalismo.

Qual a aparência do comunismo

Considere isto como seu alarme de alerta para a desilusão: Não há nenhum esquema para o comunismo. Se concordarmos com a visão de Marx sobre a história, que ela é de fato a interação entre o que ele chama de "a base" (o modo de produção) e a "superestrutura" (a lei, a cultura, o aparato do Estado, nossos conceitos morais e, basicamente, tudo o mais que existe na sociedade humana), então não podemos prever com real precisão para onde seremos levados no próximo estágio. Mas podemos falar um pouco sobre como chegaríamos lá.

Nenhuma transição entre o modo de produção jamais foi levada a cabo de modo suave, nem particularmente rápido. Na Europa, a transição do feudalismo para o capitalismo durou mais que a versão do diretor para o filme Titanic. Teve sua própria vanguarda: Intelectuais como John Lock, Adam Smith e David Ricardo proveram instruções aos líderes do estado moderno e seu parceiro, a economia. Vale a pena lembrar que todos esses astros da economia clássica morreram antes mesmo de Marx aprender a ler. Ainda assim, são suas as diretrizes sobre as quais se alicerçam as políticas neoliberais do presente, que funcionam muito mal. Suas são as diretrizes sob as quais muitas vidas são ceifadas prematuramente ou transcorreram em desesperançada servidão.

Tudo isso não quer dizer que a tomada do poder por socialistas ansiosos pelo estágio comunista da história venha a ser um piquenique. As coisas começaram bem no Palácio de Inverno de São Petersburgo, mas não progrediram conforme essa estratégia, sem derramamento de sangue. Uma transferência futura poderia ser pacífica – mesmo o resultado de eleições democráticas – se fosse possível a possibilidade, no Ocidente, de eleições realmente democráticas e livres da intervenção da classe capitalista.

O capitalismo passou por muitos começos falsos, e agora, do ponto de vista de uma comuna como eu, ele está passando por um fim verdadeiramente real. Eleitores estão rejeitando suas prescrições por meio de diferentes ações, expressando suas frustrações ao elegerem governos autoritários que prometeram uma versão fictícia do passado ou, como na Espanha, na Grécia e na Escócia, socialistas e comunistas que aludem a um futuro invisível. Na semana passada, Jean-Luc Melenchon, alguém que conhece as lições de Marx, obteve quase 20% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais na França [*].

Não sabemos com o quê o comunista do futuro se parecerá. Sabemos que nossa era de automação criou a possibilidade do tempo de lazer. Sabemos que, coletivamente, nós criamos os meios de sustentação de todo o planeta. Mas, também sabemos que criamos essa abundância ao preço da devastação ambiental. Tanto a mudança climática quanto o fato irrevogável das armas nucleares reduzem a esperança comunista original para a gerência coletiva de tudo o que existe; essas ameaças totalizantes exigem um certo nível de gerência totalitária. Na minha opinião, um comunista honesto não pode mais dizer que o Estado pode ser destruído inteiramente – essas ameaças reais exigem um bocado de verdadeiros burocratas para gerenciá-las.

No entanto, não há nenhuma necessidade de uma nação-estado para sustentar nossa vida, muito menos de que o lucro seja necessário. Um vida decente, produtiva para todos, demanda um novo modo coletivo de produção. Ou pelo menos um pouco da nossa curiosidade. Se você não mais acredita em economistas que dizem que o "PIB está crescendo!" enquanto nossa renda diminui, talvez você possa dedicar parte do seu tempo de lazer para confrontar o espectro do comunismo.



Notas:

[1] Précis: exposição breve dos elementos essenciais de uma disciplina.

2] Nos Estados Unidos, "liberal" é alguém que se aproxima do pensamento de esquerda, sem ser exatamente de esquerda.

[3] Direita alternativa, nos Estados Unidos, é um conceito que engloba um "conjunto de ideologias, grupos ou indivíduos cuja crença mais arraigada é a de que 'a identidade branca' está sob ataque de forças multiculturais que se utilizam do 'politicamente correto' e 'justiça social' para prejudicar pessoas brancas."



Nota do blog:

[*] Foi candidato às eleições presidenciais francesas de 2012, quando foi o quarto mais votado (11,1%) e às eleições de 2017, chegando à mesma posição do primeiro turno, mas com um melhor resultado (19.58%). Nas eleições presidenciais francesas de 2022, no primeiro turno, ficou em terceiro lugar com 21,95% dos votos. (Apud Wikipedia). Esse texto foi publicado em 2017.



(Tradução: não consegui identificar quem traduziu esse texto).



(Ilustração: Cândido Portinari - Menino retirante segurando bauzinho,1947)

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