sábado, 8 de novembro de 2025

POSSIBILIDADES DO POEMA EM PROSA, de Laura Erber

 


Quimera ou capricho? Será que existe mesmo algo que a gente possa definir como poema em prosa? Além da prosa dos poetas, da poetização ornamental ou musical da prosa, além do proema e da proesia, a ideia e a prática do poema em prosa persiste, e talvez continue a ser não apenas inspiradora, mas também pertinente.

Um rápido olhar histórico revela uma quase certeza: o poema em prosa surge no século 19, como desdobramento surpreendente das experiências literárias dos chamados “petits romantiques”, ou romantiquinhos franceses. Este grupo de poetas e escritores das décadas de 1830 e 1840 – que inclui Gérard de Nerval, Théophile Gautier, Pétrus Borel, Philothée O’Neddy e Aloysius Bertrand – tinham em comum o gosto pelo macabro e pelo fantástico, pela boemia literária e mantinha uma posição de relativa marginalidade face ao Romantismo oficial de Victor Hugo e Lamartine.

Baudelaire, que indicou ter sido inspirado por Aloysius Bertrand e o seu Gaspard de la Nuit (1842), – talvez num gesto mais tático do que verdadeiro – herdou algo do espírito transgressor do grupo, mas transcendeu-o enormemente. Foi ele quem inaugurou verdadeiramente o poema em prosa, reunindo sob o título O Spleen de Paris — também chamado Pequenos poemas em prosa — vinte textos que apresentavam uma nova sensibilidade e uma nova forma de atenção, fruto do contato intensificado com o turbilhão da vida na grande cidade.

Publicada postumamente em 1869, a coletânea nasceu de um longo processo de composição. Baudelaire na verdade tinha ambição de escrever cem poemas em prosa, escreveu apenas cinquenta, e publicou em vida apenas vinte. Alguns desses textos haviam aparecido isoladamente em jornais parisienses, mas a ideia de reuni-los num livro surgiu do desejo de criar uma “prosa poética, musical, sem ritmo nem rima, suficientemente flexível e contrastada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência”.

Libertar-se do verso e da rima significava também perder o suporte formal ou a rede de segurança que organizava o impulso lírico. O poema em prosa exige um novo tipo de disciplina: é uma espécie de música interna que precisa ser ao mesmo tempo encontrada e inventada a cada texto. O pensamento e as visões da cidade convulsiva contam muito, orientando o ritmo, a cadência e a intensidade da frase.

O poema em prosa é também uma espécie de descida – não aos infernos exatamente, mas ao spleen da grande cidade, com a experiência do anonimato, dos encontros fugazes e das desigualdades de classe estridentes. O poema em prosa propõe, assim, uma política da literatura – no sentido de repensar o lugar do poema na cultura e na sociedade. Abdica da proteção das formas fixas, ou da eloquência romântica, para se misturar à prosa do mundo, valendo-se de sua antena musical e de sua capacidade crítica, mas também de seus devaneios, da sua aspiração moderna e do seu desânimo, do seu imenso cansaço - o spleen -, tudo isso entremeado.

Agnès Spiquel, estudiosa da literatura francesa do século 19, defende que o poema em prosa se define tanto pelo que recusa quanto pelo que propõe. É um “anti-género”, segundo ela, que existe na tensão entre dois polos e se caracteriza pela autonomia textual de cada peça. Cada poema deve funcionar como uma unidade completa, embora possa integrar uma coletânea maior. A brevidade não é apenas questão de tamanho, mas de intensidade concentrada, trabalhando com economia de meios.

O Spleen de Paris pode ser lido como um laboratório da modernidade. Baudelaire transforma o cotidiano urbano em matéria poética: ruas, crianças pobres, ricas, velhos, jovens doentes, cafés, sorrisos, cães e vitrines tornam-se tema e motivo de reflexão crítica e lírica. E a crítica que desenvolve volta-se igualmente para o poema, não deixando escapar seu autor ou autora, criando alguns interessantes laços entre lirismo e sarcasmo. Não é um olhar distante que condena o mundo decadente, mas uma experiência que reflete e sente essa decadência, enquanto se deixa consumir e até se seduzir por ela. A poesia deixa de ser o espaço do sublime para se tornar o lugar do instável e das oscilações entre emoções e percepções contraditórias.

Essa busca por pequenas formas de grande intensidade encontra uma nova energia em vozes do século 20, sobretudo de mulheres escritoras. Em Adília Lopes, o poema em prosa reaparece como território de passagem, entre poesia, crônica, diário. Seus textos recusam a solenidade lírica e assumem o tom do quotidiano, do doméstico, do ridículo, por vezes incluindo uma sombra trágica. Adília trabalha o chamado “modo menor” explorando listas, recados, citações transcritas de memória ou trechos de rezas, falas de santos, e programas de televisão. O resultado é um arquivo ou constelação afetiva, com algo de paródico, em todo caso um espaço em que o poema em prosa se alonga e assume sua vertente colecionista. Se Baudelaire usou o poema em prosa para capturar cenas e camadas de experiência da cidade, Adília o usa para registrar o murmúrio da casa, dos livros lidos, e da cultura de massa.

Nos livros de outra autora, bem diferente de Adília, Rosmarie Waldrop, a liberdade do poema em prosa assume outro propósito: o da reflexão compacta e do pensamento condensado, rente à experiência da língua e do dizer. Poeta e tradutora associada ao Language Poetry, Waldrop utiliza o bloco de prosa como espaço para meditação e experimentação linguística. Em livros como A Key into the Language of America e Reluctant Gravities, cada parágrafo funciona como uma miniatura teórica, mas rente ao que se vive, colocando no centro de seus interesses o fato de sermos seres falantes, sempre na iminência de nos desentendermos.

Já na obra da argentina Alejandra Pizarnik, o poema em prosa pode ser quase um epitáfio. Nos textos curtos de El infierno musical a brevidade da forma serve para suspender o tempo, fixando a ausência e a morte em frases de uma musicalidade quase hipnótica. Cada poema é uma inscrição mínima. Aí a concisão é uma estratégia mais de intensidade que de reflexão: concentra, em poucas linhas, toda a fragilidade, terror e melancolia que assombram a voz lírica, mas também exibem a força de suas imagens.

Embora chamados de “pequenos”, os poemas em prosa de Baudelaire, como os das autoras aqui mencionadas, são um modo menor com altíssimas ambições. Cada uma dessas autoras reelabora a seu modo a lição baudelairiana de que a poesia pode habitar a prosa do mundo, seja ela uma falação interna, dentro de nossas cabeças, seja ela uma conexão com a vida nas cidades e seus transeuntes sem nome.

O poema em prosa é um espaço de liberdade custosa, que desafia o verso e a prosa, e a expectativa de quem lê. Mas não se promove como gênero transgressor, mas sim como uma oficina rara, com possibilidades textuais em constante reinvenção, algo que resiste tanto às formas rígidas quanto ultrapassa os discursos de militância literária de vanguarda.



(Escrevedeira centro cultural)



(Ilustração: Gustave Courbet - retrato de Charles Baudelaire)

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