sábado, 29 de novembro de 2025
JE NE PARLE PAS BIEN, de Luz Ribeiro
excuse moi, pardon
me ...
je ne parle pas bien français
je ne parle pas bien anglais non plus
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
...
eu tenho uma língua solta
que não me deixa esquecer
que cada palavra minha
é resquício da colonização
cada verbo que aprendi conjugar
foi ensinado com a missão
de me afastar de quem veio antes
nossas escolas não nos ensinam
a dar voos, subentendem que nós retintos
ainda temos grilhões nos pés
esse meu português truncado
faz soar em meus ouvidos
o lançar dos chicotes
em costas de couros pretos
nos terreiros de umbanda
evocam liberdade e entidade
com esse idioma que tentou nos prender
cada sílaba separada
me faz relembrar
de como fomos e somos segregados
nos encostaram nas margens
devido a uma falsa abolição
que nos transformou em bordas
me...
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
tiraram de nós o acesso
a ascensão
e eis que na beira da beira, ressurgimos
reinvenção
nossa revolução surge e urge
das nossas bocas
das falas aprendidas
que são ensinadas
e muitas não compreendidas
salve, a cada gíria
je ne parle pas bien
temos funk e blues
de baltimore a heliópolis
com todo respeito edithpiaf
não é você quem toca no meu set list
eu tenho dançado ao som de “coller la petite”
je ne parle pas bien
o que era pra ser arma de colonizador
está virando revide de ex-colonizado
estamos aprendendo as suas línguas
e descolonizando os pensamento
estamos reescrevendo o futuro da história
não me peçam pra falar bem
parce que je ne parle pas bien
je ne parle pas bien
je ne parle pas bien, rien
eu não falo bem de nada
que vocês me ensinaram
(Ilustração: Claudie Baran - La Langue Bien Pendue)
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Luz Ribeiro - Je ne parle pas bien
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Jessé Souza
Os grandes sociólogos da religião, como Max Weber e Pierre Bourdieu, analisam o campo religioso do mesmo modo como analisam outros campos sociais. Como qualquer empresa no mercado econômico, que utiliza estratégias para conquistar o maior número de consumidores, a empresa religiosa usa o que estiver ao seu alcance para angariar o maior número de fiéis. O vertiginoso sucesso da vertente neopentecostal foi causado por uma conjunção de dois fatores: o aproveitamento consequente da ideia da batalha transcendental entre a divindade e o diabo – que já habitava o imaginário popular influenciado pela religiosidade africana – com o uso superficial do vocabulário judaico-cristão de modo a parasitar seu prestígio.
Em geral, o pentecostalismo se baseia no episódio bíblico citado em Atos dos Apóstolos, capítulo 2, em que o Espírito Santo teria se revelado aos cristãos por meio da língua do fogo. Partindo dessa vertente interpretativa, o pentecostalismo defende a presença concreta de Deus no mundo por meio do Espírito Santo, em especial pelo dom da cura e do falar em “línguas estranhas” (como vimos, glossolalia). A glossolalia, no entanto, foi perdendo prestígio por comparação com o dom da cura, a libertação dos demônios e a teologia da prosperidade.
Na segunda onda pentecostal e na terceira onda neopentecostal, ocorre um deslocamento simbólico da relação com as “línguas de fogo” em favor da força das palavras proferidas em nome de Deus. Passa-se a acreditar que a palavra dita em “nome de Jesus”, uma espécie de ordem verbal de Deus, tem o poder de curar. Também no exorcismo de demônios a palavra oral é fundamental. O pastor ordena a saída do demônio e é apoiado pela multidão, que grita: “Sai, sai!” ou “Queima, queima!”. A alusão a “queimar” permite perceber a passagem das línguas de fogo ao poder da palavra dita com fé. O exemplo da força das palavras viria do Deus do Livro de Gênesis, que cria o universo por meio do verbo, ou seja, da palavra.[1] Esse fato abre a possibilidade de vincular a bíblia não mais à escrita e à conversão racional, mas, ao contrário, aproximá-la da tradição oral como agente mágico transformador da realidade.
É a ênfase na tradição da oralidade que permite ao neopentecostalismo se aproximar – como o substituto perfeito – das religiões afro-brasileiras, nas quais a palavra se reveste de poder mágico. No candomblé, a palavra dita é “emanação de axé”, mecanismo de movimentação de forças sagradas, sendo Exu percebido como emanação desse poder que pode ser conferido por meio de oferendas. No neopentecostalismo, o poder da fala reinterpreta e ressignifica o fogo da língua do Espírito Santo no sentido do poder de intervenção mágica de Exu. A força da fala, muito além da mera pregação da palavra escrita divina – típica das versões mais éticas e racionais do cristianismo –, transforma-se, no neopentecostalismo, na emanação mágica de um poder autorreferente e autoconstituído.[2]
O neopentecostalismo, portanto, opera uma “antropofagia” da fé inimiga[3] pela centralidade do “transe religioso”, reintroduzindo a proximidade imediata com o sagrado que havia sido expurgado do campo cristão em nome da conversão racional. A novidade do movimento pentecostal, radicalizada no neopentecostalismo, foi introduzir o êxtase religioso e seu fundo mágico para o centro do cristianismo a partir da figura do Espírito Santo como emanação material da divindade.
O que está por trás desse movimento é, acima de tudo, uma redefinição da noção de “eu” e da personalidade do fiel, ou seja, de seu processo singular de subjetivação. No neopentecostalismo, assim como em várias versões do protestantismo, o corpo é pensado como morada de Deus na sua dualidade de corpo e alma. Daí a legitimidade cristã da guerra contra a possessão do corpo pelo demônio, substituindo-a pela possessão do Espírito Santo.
No candomblé, a pessoa é vista como fragmentada e a ela se agregam várias entidades sob a forma de um “enredo de santo”. Esse enredo varia de acordo com o orixá de frente. Os rituais de iniciação visam, por meio do sacrifício de animais e outros ritos, fixar no Ori da pessoa esse enredo, até que, com o tempo – normalmente sete anos –, não haja mais necessidades dos rituais, significando a imanência do seu orixá na própria pessoa, tornando o transe supérfluo.[4]
Desse modo, a fragmentariedade inicial é fundida em uma unidade à medida que vai compondo seu “enredo de santo”. Os ritos sacrificiais de animais servem, precisamente, para garantir uma continuidade da comunicação entre as divindades e os homens. A morte do animal permite abrir um canal de comunicação para que a graça divina possa fluir até os homens. A possessão indica a eficácia desse canal. Quando a divindade “vem”, como na possessão, o homem “vai” – ou seja, perde a consciência.
Apesar da complementariedade, um não pode se sobrepor ao outro.[5]
O neopentecostalismo, nos seus rituais de exorcismo, utiliza-se dessa linguagem e desse universo simbólico para criar uma nova relação do fiel com o Deus. Se nas religiões afro-brasileiras a pessoa se completa pela incorporação de um panteão sagrado, no neopentecostalismo a sacralidade do eu já é pressuposta – bastando que o indivíduo se liberte das eventuais tentações que vêm “de fora”. Assim, se nas religiões afro-brasileiras o “eu” se forma por “adição” das diversas divindades que o regem, no neopentecostalismo o “eu” se forma pela permanente “subtração”, na expulsão dos demônios que ameaçam a já existente divindade do “eu”.[6]
Para Ronaldo de Almeida,[7] os ritos de expulsão dos demônios no neopentecostalismo são mera inversão simbólica dos ritos africanos. Se nas religiões afro a possessão ocorre como uma festa de sacralidade do ritual, no neopentecostalismo a possessão é o polo negativo do sagrado por significar a irrupção do mal. A inversão, como sabe muito bem a psicanálise, mantém o principal em comum, apenas invertendo os termos da relação. O decisivo, portanto, que é a crença na possessão e na subordinação da lógica profana pela transcendental, se mantém. O que a inversão possibilita ao neopentecostalismo é a criminalização do competidor religioso.
Não por acaso são os Exus e as Pombagiras os representantes do diabo no contexto do neopentecostalismo e suas sessões de “descarrego”. Essa aproximação da simbologia cristã e africana já fazia parte da história secular do sincretismo brasileiro. Nas religiões afro, o sentido dos Exus é dado pelo contexto. Os Exus podem ser “amarrados” pelo orixá para obedecer, podendo ser, portanto, tanto demônio quanto orixá. Essa é a confissão que o pastor neopentecostal exige desses espíritos: não que ele seja o demônio, mas que eles revelem não serem sujeitos à negociação como se imaginava,[8] exigindo a vitória do pastor sobre eles.
Essa é uma estratégia que visa conquistar os adeptos desse tipo de religiosidade. A religiosidade africana, portanto, segue intocada no neopentecostalismo – o que explica o ódio à religiosidade afro exatamente pela proximidade e competição mais próxima –, mas é “recoberta”, superficialmente como uma pátina, com o vocabulário de alto prestígio simbólico – em todo o Ocidente – do cristianismo e do judaísmo.
Em um país racista como o nosso, o neopentecostalismo se alimenta, vicariamente, também dessa tradição nefasta que ajuda a criminalizar o negro e todas as suas práticas, inclusive as religiosas. Portanto, o neopentecostalismo é ideal para quem pretende “embranquecer” – com tudo o que isso significa no Brasil, e que não se refere apenas à cor da pele – pela aceitação da norma moral vigente do dominador branco que implica o estigma do negro (seu vizinho ou irmão) e a sua criminalização.
Notas:
[1].Vagner Gonçalves da Silva, “Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais”,2005.
[2].Ibidem.
[3].Ronaldo Almeida, A Igreja Universal e seus demônios, 2009.
[4].Ibidem.
[5].Ibidem.
[6].Ibidem.
[7].Ibidem.
[8].Ibidem.
(O pobre de direita)
(Ilustração: Jerry D'oxossi - Exus e Bombogiras, entidades trabalhadoras da Umbanda)
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Jessé Souz - Deus e o diabo na terra do sol
domingo, 23 de novembro de 2025
MADRIGAL LÚGUBRE, de Carlos Drummond de Andrade
Ó princesa ! Ó donzela !
Em vossa casa, de onde o sangue escorre,
Quisera eu morar.
Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,
É o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.
Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido com um véu.
O mundo, sob a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso
Que o vosso sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.
Princesa: acordada sois mais bela, princesa.
E já não tendes o ar contrariado dos mortos à traição.
Arrastar-me-ei pelo morro e chegarei até vós.
Tão completo desprezo se transmudará em tanto amor…
Dai-me vossa cama, princesa.
Vosso calor, vosso corpo e suas repartições,
Oh dai-me! que é tempo de guerra,
Tempo de extrema precisão.
Não vos direi dos meninos mortos
(nem todos mortos, é verdade,
Alguns apenas mutilados).
Tampouco vos contarei a história
Algo monótona talvez
Dos mil e oitocentos atropelados
No casamento do rei da Ásia.
Algo monótono… Ásia monótona…
Se bocejardes, minha cabeça
cairá por terra, sem remissão.
Sutil flui o sangue nas escadarias.
Ah, esses cadáveres não deixam
Conciliar o sono, princesa?
Mas o corpo dorme; dorme assim mesmo.
Imensa berceuse sobe dos mares,
Desce dos astros lento acalanto,
Leves narcóticos brotam da sombra,
Doces unguentos, calmos incensos.
Princesa, os mortos! gritam os mortos!
querem sair! querem romper!
Tocai tambores, tocai trombetas,
Imponde silêncio, enquanto fugimos!
…Enquanto fugimos para outros mundos,
Esse que está velho, velha princesa,
Palácio em ruínas, ervas crescendo,
Lagarta mole que escreve
a história,
Escreve sem pressa mais esta história:
o chão está verde de lagartas mortas…
Adeus, princesa, até outra vida.
(Ilustração: Valquíria Cavalcante)
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Carlos Drummond de Andrade - Madrigal lúgubre
quinta-feira, 20 de novembro de 2025
UM AVÔ E SEU NETO, de Roseana Murray
Esta é uma história muito simples. Fala do amor entre um avô e seu neto, que é como a magia que existe entre a noite e a Lua. Os avós sabem de muitas coisas. Os avós guardam a infância deles na memória, com seus rios azuis, suas ruas de barro, chapéus, cavalos, lampiões. Um mundo tão antigo que já quase não cabe mais neste nosso mundo.
Quando um avô morre, esse mundo antigo morre com ele, assim como todos os cavalos, rios azuis, ruas de barro. Por isso eu, particularmente, acho que os avós nunca deviam morrer. Mas, para que as coisas que eles guardam lá no fundo deles – essa poeira encantada de outros tempos – não desapareçam completamente, existem os netos.
E assim como às vezes a gente para para ver uma estrela ou um pássaro, alguns netos param e ouvem essa música secreta que sai de dentro dos avós. Eles viveram uma vida inteira… E quantas malas e armários poderiam encher com suas aventuras?
O avô tinha a barriga grande. O neto achava que havia um Sol lá dentro, ou uma fábrica de alegria. O avô ria tanto! Mas um dia o avô parou de trabalhar. Era como se a barriga tivesse diminuído, ou uma nuvem tivesse escondido o Sol. O neto passava a mão nos cabelos do peito do avô. Os avós são tão lindos com seus cabelos brancos…
Quando o avô estava feliz, contava histórias malucas: de elefantes cantores de ópera, de crocodilos vendedores. Mas, quando se lembrava que não podia mais trabalhar, que se não fizesse bastante barulho ninguém se lembraria mais dele, aí só contava histórias da sua vida (o neto ouvia).
De um país lá longe. Tão longe que se tinha de atravessar o mar. Fazia frio naquele país. Naquela época o avô era criança, era pobre. O pai dele tocava violino. A mãe cozinhava. Um tio morava numa casinha branca no alto de uma colina. O tio fazia panelas de barro.
Um dia, o avô, que naquele país lá longe era criança, foi visitar o tio que morava na colina. Precisava atravessar a cidade inteira. O avô saiu de casa bem cedinho. O tio era esquisito. Gostava de morar afastado, longe das ruas apinhadas de gente.
Durante a noite tinha nevado. As carroças cheias de verdura não podiam passar. (O neto ouvia.) O avô estava indo escondido da mãe. Era muito perigoso. Finalmente o avô atravessou aponte. O rio estava congelado lá embaixo. Parecia que tinha adormecido e já não podia correr para lugar nenhum.
A subida para a casa do tio estava escorregadia. Mas o avô conseguiu chegar. O tio ficou feliz. Ele tinha um forno grande de queimar o barro. Tinha um torno. Parecia mágica. O tio pegava um pedaço de barro e fazia um prato, uma moringa, um bule. O avô dava nome para todas aquelas coisas.
Era como se fossem vivas. (O neto ouvia.) Fazia o bule se casar com a manteigueira. E o dia passou voando na casa desse tio, lá no alto da colina. Quando o avô se lembrou de que era preciso voltar, a noite já estava chegando. Tinha de se apressar.
O tio deu um presente para o avô levar para casa. Era um cavalo de barro. Ia dentro de uma caixa. Agora o avô possuía um cavalo, e se sentia mais rico do que um rei. Levava a caixa com todo o cuidado. Seu cavalo não podia cair de jeito nenhum. (O neto ouvia.)
De repente, embaixo da neve, viu uma coisa brilhando. Era uma moeda de ouro. O avô se esqueceu do presente, se esqueceu de tudo. Ele tentava cavar mas não conseguia. Então teve uma ideia tão boa que nem dava para acreditar: era só fazer xixi em cima da neve que cobria a moeda. O xixi era quente e derretia a neve. Aí o avô piscou o olho e deu uma risada na cara do neto. “É verdade, vô, essa história da moeda?”
“Pode ser que sim, pode ser que não. Nunca se sabe”, respondia o avô. “Mas se nessa época eu tivesse uma moeda de ouro…” E voltava a contar histórias malucas, sem pé nem cabeça, de bichos fantásticos. Sua barriga novamente engolira o Sol.
Contou ao neto que um dia tiveram de partir. Ia haver uma guerra. O avô já tinha catorze anos. As guerras são tão tristes… Deviam ser proibidas em todas as línguas da Terra. Se o avô não tivesse vindo com sua mãe, seu pai e seus irmãos, o neto não existiria.
O neto ouvia assombrado e via o navio se afastando do cais, um navio cheio de gente, com o avô lá dentro. Tantas vezes o avô contou essa história que o neto até sabia de que lado soprava o vento.
O avô gostou muito de chegar num país cheio de sol. Mas às vezes lembrava do tio que morava no alto da colina…
Depois o avô cresceu. Teve uma loja, uma mulher, quatro filhos. Aí os filhos cresceram.
E o avô teve um neto…
(Ilustração: Norman Rockwell)
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Roseana Murray - Um avô e seu neto
segunda-feira, 17 de novembro de 2025
LE SERPENT QUI DANSE /A SERPENTE QUE DANÇA, de Charles Baudelaire
Que j'aime voir, chère indolente,
De ton corps si beau,
Comme une étoffe vacillante,
Miroiter la peau!
Sur ta chevelure profonde
Aux âcres parfums,
Mer odorante et vagabonde
Aux flots bleus et bruns,
Comme un navire qui s'éveille
Au vent du matin,
Mon âme rêveuse appareille
Pour un ciel lointain.
Tes yeux, où rien ne se révèle
De doux ni d'amer,
Sont deux bijoux froids où se mêle
L'or avec le fer.
A te voir marcher en cadence,
Belle d'abandon,
On dirait un serpent qui danse
Au bout d'un bâton.
Sous le fardeau de ta paresse
Ta tête d'enfant
Se balance avec la mollesse
D'un jeune éléphant,
Et ton corps se penche et s'allonge
Comme un fin vaisseau
Qui roule bord sur bord et plonge
Ses vergues dans l'eau.
Comme un flot grossi par la fonte
Des glaciers grondants,
Quand l'eau de ta bouche remonte
Au bord de tes dents,
Je crois boire un vin de Bohême,
Amer et vainqueur,
Un ciel liquide qui parsème
D'étoiles mon cœur!
Tradução de Juremir Machado da Silva:
Babo de ver, gata indolente,
Do teu corpo de modelo,
Como uma lingerie insolente,
Tremeluzir o pelo.
Sobre teu cabelo profundo,
Acres perfumes,
Mar odorante e vagabundo,
Ondas azuis e negrumes,
Como um navio que se espelha
No vento do novo dia,
Minha alma sonhadora aparelha
Para um céu de utopia.
Teus olhos que nada revelam
De doce nem de fatal,
São joias frias que modelam
O ouro com o vil metal.
Quem te vê nesse andar que balança,
Manhosa de exaustão,
Imaginaria uma serpente que dança
Na ponta de um bastão.
Sob o fardo da lascívia
Tua cabeça de infante
Ondeia com a malícia
De um jovem elefante,
E teu corpo se dobra e estira,
Como um barco sem mágoa,
Que costeia a margem e atira
As suas vergas na água.
Como as vagas alimentadas pelas fontes
Das geleiras mordentes,
Quando as águas da tua boca são pontes
Para o fio de teus dentes,
Creio beber da Boêmia um vinho,
Amargo e campeão,
Céu líquido que faz um caminho
De estrelas no meu coração!
(Ilustração: Herman Richir - sueños azules)
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
UMA CARTA DE DANÇAS E CAMÉLIAS BRANCAS, de Rainer Maria Rilke
[...] é a primeira vez, por mais estranho que seja, que narro (e, no fim das contas, apenas para mim mesmo) um acontecimento da minha mais remota infância.
O quanto eu ainda devia ser pequeno naquela época é algo que posso deduzir do fato de me ajoelhar sobre a poltrona para alcançar confortavelmente a mesa sobre a qual desenhava. Era à noitinha, no inverno, se não me engano, na casa da cidade. A mesa estava em meu quarto, entre as janelas, e não havia outra lâmpada no quarto senão aquela que iluminava minhas folhas e o livro de mademoiselle; pois mademoiselle estava sentada ao meu lado, um tanto afastada para trás, e lia. Ela ficava bem distante quando lia, e não sei se estava no livro; podia ler por horas a fio, raramente virava uma folha, e eu tinha a impressão de que abaixo dela as páginas ficavam sempre mais cheias, como se acrescentasse palavras com o seu olhar, palavras determinadas de que precisava e que não estavam lá. Era o que me parecia enquanto desenhava. Eu desenhava devagar, sem propósitos muito determinados, e quando não sabia mais como ir adiante, olhava tudo com a cabeça levemente voltada para a direita; era assim que sempre me ocorria mais depressa aquilo que ainda estava faltando. Eram oficiais a cavalo que cavalgavam para a batalha, ou que já estavam no meio dela, o que era muito mais simples, pois o que havia a fazer então era quase tão-somente a fumaça que tudo envolvia. Mamãe, todavia, sempre afirmava que eu desenhava ilhas; ilhas com árvores grandes, um castelo, uma escadaria e flores na beirada que deveriam se refletir na água. Mas acho que ela inventava isso, ou isso deve ter sido mais tarde.
É certo que naquele dia à noitinha eu desenhava um cavaleiro, um solitário cavaleiro, muito nítido, sobre um cavalo estranhamente ajaezado. Eu alternava os lápis com frequência, e ele ia ficando sempre mais colorido, mas era sobretudo o vermelho que me interessava e que sempre voltava a pegar. Precisava dele outra vez; foi quando ele rolou (ainda o vejo) de viés até a borda da mesa sobre a folha iluminada, caiu antes que eu pudesse impedir e sumiu. Eu precisava dele realmente com urgência, e era bem incômodo ter de me arrastar em sua busca. Desajeitado como eu era, custou-me toda sorte de esforços chegar ao chão; minhas pernas me pareciam longas demais, eu não conseguia tirá-las de baixo do meu corpo; sustentada por tempo demais, a posição de joelhos tinha entorpecido meus membros; eu não sabia mais o que era parte de mim e o que era parte da poltrona. Enfim, porém, um tanto confuso, cheguei ao chão e me encontrei sobre uma pele que se estendia debaixo da mesa chegando quase até a parede. Mas então surgiu uma nova dificuldade. Acomodados à claridade lá em cima e ainda completamente entusiasmados com as cores sobre o papel branco, meus olhos não reconheciam o mínimo que fosse embaixo da mesa, onde o preto me parecia tão fechado que eu tinha medo de esbarrar nele. Confiei, portanto, no meu tato, e, de joelhos e apoiado sobre a mão esquerda, sondei com a outra mão o tapete frio e de fios longos, bem familiar ao toque; apenas não havia sinal do lápis. Eu achava que estava perdendo tempo demais e já queria chamar mademoiselle e lhe pedir que segurasse a lâmpada para mim, quando percebi que a escuridão se tornava pouco a pouco mais transparente para os meus olhos, que se esforçavam involuntariamente. Eu já podia distinguir a parede atrás, rematada por um rodapé claro; orientei-me pelas pernas da mesa; reconheci, sobretudo, a minha própria mão aberta que, completamente sozinha, um pouquinho como um animal aquático, se movia lá embaixo e investigava o fundo. Eu a via, ainda me lembro, quase curioso; era como se pudesse fazer coisas que eu não a tinha ensinado, tal a maneira despótica com que tateava lá embaixo com movimentos que eu nunca a tinha observado fazer. Acompanhei o seu avanço, era algo que me interessava e eu estava preparado para muita coisa. Mas como deveria estar preparado para que, de repente, saída da parede, viesse ao seu encontro uma outra mão, uma mão maior, incomumente magra, como jamais tinha visto semelhante? Ela procurava da mesma maneira a partir do outro lado, e as duas mãos abertas se moviam cegamente uma em direção à outra. Minha curiosidade ainda não havia sido consumida, mas, de súbito, ela tinha acabado, e o que restava era apenas o horror. Senti que uma das mãos me pertencia e que estava se metendo em alguma coisa que não poderia ser remediada. Com todos os direitos que tinha sobre ela, detive-a e puxei-a de volta, aberta e devagar, enquanto não perdia a outra de vista, que continuava procurando. Compreendi que ela não desistiria; não sei dizer como foi que me levantei. Fiquei sentado bem no fundo da poltrona, batia o queixo e tinha tão pouco sangue no rosto que me pareceu que não haveria mais azul em meus olhos. Mademoiselle, quis dizer e não consegui, mas ela se assustou por si mesma, largou seu livro e se ajoelhou ao lado da cadeira chamando meu nome; acho que me sacudiu. Mas eu estava completamente consciente. Engoli em seco algumas vezes, pois queria contar o que tinha acontecido.
Mas como? Eu me concentrei de uma forma indescritível, mas não era algo que se pudesse expressar de modo que alguém compreendesse. Se existiam palavras para esse acontecimento, eu era muito pequeno para encontrá-las. E de repente fui tomado pelo medo de que, passando por cima da minha idade, elas pudessem estar repentinamente aí, essas palavras, e ter de dizê-las me pareceu então mais terrível que tudo. Passar outra vez por aquela coisa real ali embaixo, de outra maneira, modificada, desde o início; ouvir como a admitia – para isso eu não tinha mais forças.
É presunção, obviamente, se afirmo agora que já naquela época eu tinha sentido que naquela ocasião havia entrado algo em minha vida, e entrado diretamente, com o que eu teria de lidar sozinho, sempre e sempre. Vejo-me deitado em minha pequena cama gradeada, sem dormir, antevendo de algum modo impreciso que a vida seria assim: cheia de coisas singulares que são pensadas apenas para um indivíduo e que não se deixam dizer. Certo é que pouco a pouco surgiu em mim um orgulho triste e grave. Eu imaginava como seria andar por aí cheio de coisas interiores, e em silêncio. Senti uma simpatia arrebatada pelos adultos; eu os admirava, e me propus lhes dizer que os admirava. Propus-me dizê-lo a mademoiselle na primeira ocasião. E então veio uma dessas doenças que tinham o propósito de me mostrar que aquela não fora a primeira vivência própria. A febre remexeu em mim e tirou bem lá do fundo experiências, imagens e fatos que eu ignorava; eu jazia ali, sobrecarregado de mim, e esperava pelo momento em que me fosse mandado acomodar todas essas coisas outra vez em mim, ordenadamente, segundo a sua sequência. Comecei a fazê-lo, mas aquilo começou a crescer debaixo de minhas mãos, aquilo resistia, era demais. Então fui tomado pela raiva e amontoei tudo dentro de mim e apertei; mas eu não fechava mais. E aí gritei, meio aberto como estava, gritei e gritei. E quando comecei a olhar para fora de mim, eles estavam parados há tempo em volta da minha cama e me seguravam as mãos, e havia uma vela, e as suas grandes sombras se moviam atrás deles. E meu pai me ordenou que dissesse o que estava acontecendo. Era uma ordem amigável, branda, mas era uma ordem, em todo o caso. E ele ficou impaciente quando não respondi.
Mamãe nunca vinha à noite – quer dizer, uma vez ela veio. Eu tinha gritado e gritado, e mademoiselle tinha vindo, e Sieversen, a governanta, e Georg, o cocheiro; mas isso não adiantou nada. Eles mandaram, por fim, a carruagem buscar meus pais, que estavam em um grande baile, acho que oferecido pelo príncipe herdeiro.
E, de repente, ouvi-a entrar no pátio e fiquei quieto, sentado e olhando para a porta. Houve um pouco de ruído nos outros quartos e mamãe entrou usando o grande vestido da corte, com o qual não teve qualquer cuidado, e quase corria e deixou cair sua peliça branca atrás de si e me tomou nos braços nus. E eu toquei, espantado e encantado como nunca, seu cabelo e seu rosto pequeno e cuidado, as pedras frias em suas orelhas e a seda que orlava seus ombros que cheiravam a flores. E ficamos assim e choramos suavemente e nos beijamos até perceber que o pai estava ali e que tínhamos de nos separar.
– Ele está com febre alta – ouvi mamãe dizer timidamente, e o pai pegou minha mão e tomou meu pulso.
Ele usava o uniforme de monteiro-mor [1] com o galão bonito, largo, aquaticamente azul da Ordem do Elefante.
– Que absurdo nos chamar – ele disse para as paredes, sem me olhar.
Eles tinham prometido voltar para o baile se não fosse nada sério. E não era nada sério. E sobre meu cobertor encontrei a carta de danças[2] de mamãe e camélias brancas, que nunca tinha visto, e que pus sobre meus olhos assim que percebi como eram frias.
Notas:
[1]Monteiro-mor ou couteiro-mor era um oficial da casa real encarregado de governar, superintender e dirigir as coutadas de caça, e dirigir as caçadas reais e as pessoas que nelas participavam.
[2]. Carta de danças: relação das danças a serem executadas durante um baile e dos parceiros escolhidos pela dama para cada uma delas.
(Os cadernos de Malte Laurids Brigge; tradução de Renato Zwick)
(Ilustração: Berthe Morisot - Wiege, 1873)
terça-feira, 11 de novembro de 2025
ESFINGE, de Ana Cecília de Sousa Bastos
Não sei do poema, de seu doce amargo.
De suas palavras cindindo o meu coração,
me fazendo refém de emoções.
Nostálgica do fluxo que molda palavras e brinca com elas,
na imprecisão vertiginosa do texto,
qualquer que seja.
...pois esqueço que escrever é dor; ato visceral do qual a marca no papel ou na tela é mero reflexo. Não sei em que espaços me disfarço tanto, disfarço essa tanta consciência de coisas e gestos e sentimento, escolho essa inércia que me faz morta.
Sonho a delicadeza (utopia) enquanto em mim a poesia é presença: o ofego, o suspiro, o entrecortado afeto. Lente que distorce a superfície do dia e faz o viver
fluido total, ferida aberta. É tão visceral que sonho a delicadeza, as puras imagens, o imagético delírio, a geometria das palavras. Um descompromisso? Uma fuga, sim.
fluido total, ferida aberta. É tão visceral que sonho a delicadeza, as puras imagens, o imagético delírio, a geometria das palavras. Um descompromisso? Uma fuga, sim.
Na estrutura de meus poemas vejo a estrutura do meu modo de estar na vida, de pressentir de longe sua fatia mais densa, apetitosa e verdadeira.
Enquanto isso as palavras fogem e sou esfinge.
(A Impossível Transcrição)
(Ilustração: Ish Gordon - a mysterious Woman)
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Ana Cecília de Sousa Bastos - Esfinge
sábado, 8 de novembro de 2025
POSSIBILIDADES DO POEMA EM PROSA, de Laura Erber
Quimera ou capricho? Será que existe mesmo algo que a gente possa definir como poema em prosa? Além da prosa dos poetas, da poetização ornamental ou musical da prosa, além do proema e da proesia, a ideia e a prática do poema em prosa persiste, e talvez continue a ser não apenas inspiradora, mas também pertinente.
Um rápido olhar histórico revela uma quase certeza: o poema em prosa surge no século 19, como desdobramento surpreendente das experiências literárias dos chamados “petits romantiques”, ou romantiquinhos franceses. Este grupo de poetas e escritores das décadas de 1830 e 1840 – que inclui Gérard de Nerval, Théophile Gautier, Pétrus Borel, Philothée O’Neddy e Aloysius Bertrand – tinham em comum o gosto pelo macabro e pelo fantástico, pela boemia literária e mantinha uma posição de relativa marginalidade face ao Romantismo oficial de Victor Hugo e Lamartine.
Baudelaire, que indicou ter sido inspirado por Aloysius Bertrand e o seu Gaspard de la Nuit (1842), – talvez num gesto mais tático do que verdadeiro – herdou algo do espírito transgressor do grupo, mas transcendeu-o enormemente. Foi ele quem inaugurou verdadeiramente o poema em prosa, reunindo sob o título O Spleen de Paris — também chamado Pequenos poemas em prosa — vinte textos que apresentavam uma nova sensibilidade e uma nova forma de atenção, fruto do contato intensificado com o turbilhão da vida na grande cidade.
Publicada postumamente em 1869, a coletânea nasceu de um longo processo de composição. Baudelaire na verdade tinha ambição de escrever cem poemas em prosa, escreveu apenas cinquenta, e publicou em vida apenas vinte. Alguns desses textos haviam aparecido isoladamente em jornais parisienses, mas a ideia de reuni-los num livro surgiu do desejo de criar uma “prosa poética, musical, sem ritmo nem rima, suficientemente flexível e contrastada para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência”.
Libertar-se do verso e da rima significava também perder o suporte formal ou a rede de segurança que organizava o impulso lírico. O poema em prosa exige um novo tipo de disciplina: é uma espécie de música interna que precisa ser ao mesmo tempo encontrada e inventada a cada texto. O pensamento e as visões da cidade convulsiva contam muito, orientando o ritmo, a cadência e a intensidade da frase.
O poema em prosa é também uma espécie de descida – não aos infernos exatamente, mas ao spleen da grande cidade, com a experiência do anonimato, dos encontros fugazes e das desigualdades de classe estridentes. O poema em prosa propõe, assim, uma política da literatura – no sentido de repensar o lugar do poema na cultura e na sociedade. Abdica da proteção das formas fixas, ou da eloquência romântica, para se misturar à prosa do mundo, valendo-se de sua antena musical e de sua capacidade crítica, mas também de seus devaneios, da sua aspiração moderna e do seu desânimo, do seu imenso cansaço - o spleen -, tudo isso entremeado.
Agnès Spiquel, estudiosa da literatura francesa do século 19, defende que o poema em prosa se define tanto pelo que recusa quanto pelo que propõe. É um “anti-género”, segundo ela, que existe na tensão entre dois polos e se caracteriza pela autonomia textual de cada peça. Cada poema deve funcionar como uma unidade completa, embora possa integrar uma coletânea maior. A brevidade não é apenas questão de tamanho, mas de intensidade concentrada, trabalhando com economia de meios.
O Spleen de Paris pode ser lido como um laboratório da modernidade. Baudelaire transforma o cotidiano urbano em matéria poética: ruas, crianças pobres, ricas, velhos, jovens doentes, cafés, sorrisos, cães e vitrines tornam-se tema e motivo de reflexão crítica e lírica. E a crítica que desenvolve volta-se igualmente para o poema, não deixando escapar seu autor ou autora, criando alguns interessantes laços entre lirismo e sarcasmo. Não é um olhar distante que condena o mundo decadente, mas uma experiência que reflete e sente essa decadência, enquanto se deixa consumir e até se seduzir por ela. A poesia deixa de ser o espaço do sublime para se tornar o lugar do instável e das oscilações entre emoções e percepções contraditórias.
Essa busca por pequenas formas de grande intensidade encontra uma nova energia em vozes do século 20, sobretudo de mulheres escritoras. Em Adília Lopes, o poema em prosa reaparece como território de passagem, entre poesia, crônica, diário. Seus textos recusam a solenidade lírica e assumem o tom do quotidiano, do doméstico, do ridículo, por vezes incluindo uma sombra trágica. Adília trabalha o chamado “modo menor” explorando listas, recados, citações transcritas de memória ou trechos de rezas, falas de santos, e programas de televisão. O resultado é um arquivo ou constelação afetiva, com algo de paródico, em todo caso um espaço em que o poema em prosa se alonga e assume sua vertente colecionista. Se Baudelaire usou o poema em prosa para capturar cenas e camadas de experiência da cidade, Adília o usa para registrar o murmúrio da casa, dos livros lidos, e da cultura de massa.
Nos livros de outra autora, bem diferente de Adília, Rosmarie Waldrop, a liberdade do poema em prosa assume outro propósito: o da reflexão compacta e do pensamento condensado, rente à experiência da língua e do dizer. Poeta e tradutora associada ao Language Poetry, Waldrop utiliza o bloco de prosa como espaço para meditação e experimentação linguística. Em livros como A Key into the Language of America e Reluctant Gravities, cada parágrafo funciona como uma miniatura teórica, mas rente ao que se vive, colocando no centro de seus interesses o fato de sermos seres falantes, sempre na iminência de nos desentendermos.
Já na obra da argentina Alejandra Pizarnik, o poema em prosa pode ser quase um epitáfio. Nos textos curtos de El infierno musical a brevidade da forma serve para suspender o tempo, fixando a ausência e a morte em frases de uma musicalidade quase hipnótica. Cada poema é uma inscrição mínima. Aí a concisão é uma estratégia mais de intensidade que de reflexão: concentra, em poucas linhas, toda a fragilidade, terror e melancolia que assombram a voz lírica, mas também exibem a força de suas imagens.
Embora chamados de “pequenos”, os poemas em prosa de Baudelaire, como os das autoras aqui mencionadas, são um modo menor com altíssimas ambições. Cada uma dessas autoras reelabora a seu modo a lição baudelairiana de que a poesia pode habitar a prosa do mundo, seja ela uma falação interna, dentro de nossas cabeças, seja ela uma conexão com a vida nas cidades e seus transeuntes sem nome.
O poema em prosa é um espaço de liberdade custosa, que desafia o verso e a prosa, e a expectativa de quem lê. Mas não se promove como gênero transgressor, mas sim como uma oficina rara, com possibilidades textuais em constante reinvenção, algo que resiste tanto às formas rígidas quanto ultrapassa os discursos de militância literária de vanguarda.
(Escrevedeira centro cultural)
(Ilustração: Gustave Courbet - retrato de Charles Baudelaire)
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Laura Erber - Possibilidades do poema em prosa
quinta-feira, 6 de novembro de 2025
ONDINE / ONDINA, de Aloysius Bertrand
. . . . . . . . Je croyais entendre
Une vague harmonie enchanter mon sommeil,
Et près de moi s’épandre un murmure pareil
Aux chants entrecoupés d’une voix triste et tendre.
Ch. Brugnot. — Les deux Génies.
— « Écoute ! — Écoute ! — C’est moi, c’est Ondine qui frôle de ces gouttes d’eau les losanges sonores de ta fenêtre illuminée par les mornes rayons de la lune ; et voici, en robe de moire, la dame châtelaine qui contemple à son balcon la belle nuit étoilée et le beau lac endormi.
» Chaque flot est un ondin qui nage dans le courant, chaque courant est un sentier qui serpente vers mon palais, et mon palais est bâti fluide, au fond du lac, dans le triangle du feu, de la terre et de l’air.
» Écoute ! — Écoute ! — Mon père bat l’eau coassante d’une branche d’aulne verte, et mes sœurs caressent de leurs bras d’écume les fraîches îles d’herbes, de nénuphars et de glaïeuls, ou se moquent du saule caduc et barbu qui pêche à la ligne. »
*
Sa chanson murmurée, elle me supplia de recevoir son anneau à mon doigt, pour être l’époux d’une Ondine, et de visiter avec elle son palais, pour être le roi des lacs.
Et comme je lui répondais que j’aimais une mortelle, boudeuse et dépitée, elle pleura quelques larmes, poussa un éclat de rire, et s’évanouit en giboulées qui ruisselèrent blanches le long de mes vitraux bleus.
Tradução de José Jeronymo Rivera :
…………………Eu pensava escutar
Uma vaga harmonia encantando meu sono,
E, junto a mim ouvia um murmurar igual
Ao canto singular de uma voz triste e terna
Ch. Brugnot: Os Dois Gênios
Escuta! Escuta! Sou eu, Ondina, que roço com gotas de água os losangos sonoros de tua janela iluminada pelos tristes raios da lua; e também, em vestes de tecido ondulado, a castelã, que contempla de sua varanda a bela noite estrelada e o belo lago adormecido.
– Cada onda é um ondino nadando na corrente, cada corrente é um caminho serpenteando rumo ao meu palácio, e meu palácio foi erguido fluido, no fundo do lago, no triângulo do fogo, da terra e do ar.
– Escuta! Escuta! Meu pai bate a água murmurante com uma vara de álamo verde, e minhas irmãs acariciam com seus braços de espuma as frescas ilhas de ervas, de nenúfares e de gladíolos, ou zombam do salgueiro caduco e barbudo que pesca com sua linha.
*
Sua canção murmurada, suplicou-me que recebesse em meu dedo seu anel, para tornar-me esposo de uma Ondina, e que visitasse com ela seu palácio, para tornar-me o rei dos lagos.
E como eu lhe respondesse que amava uma mortal, ela, amuada e com ciúmes, derramou algumas lágrimas, deu uma gargalhada e dissolveu-se entre jorros de água, que escorreram brancos ao longo de meus vitrais azuis.
(Gaspard de la Nuit: Fantasies à la manière de Rembrandt et de Callot; poemas de Aloysius Bertrand)
(Ilustração : museum artes xfig John William Waterhouse - Undine sea nymph who married Knight Adami Turns us to Adami)
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