domingo, 12 de setembro de 2021

O LADO ESCURO DO ILUMINISMO, de Jurandir Freire Costa

 



Thomas Laqueur é um historiador de Berkeley, especialista em história social e da medicina. Em 1992, publicou "Inventando o Sexo - Corpo e Gênero dos Gregos a Freud" (ed. Relume-Dumará). Agora faz chegar ao leitor "Solitary Sex - A Cultural History of Masturbation" (Sexo Solitário - Uma História Sexual da Masturbação, ed. Zone Books, 501 págs.). No primeiro livro, Laqueur analisou a invenção cultural da bipolaridade sexual humana. Nem sempre, dizia ele, concebemos os seres humanos divididos em dois sexos com características próprias. Até as últimas décadas do século 18, a medicina só admitia a existência de um sexo, o masculino. O que, atualmente, chamamos de sexo feminino era visto como um sexo masculino "frio" e "invertido". Ou seja, a mulher não possuía o mesmo "calor vital" do homem, e, por isso, seu sexo não se desenvolvia para fora, mas para o interior do corpo: o útero era o escroto, os ovários, os testículos, a vulva, o prepúcio, e a vagina, o pênis.

"Sexo Solitário" segue as linhas mestras desse estudo. O "modelo dos dois sexos", sustentava Laqueur, foi um artifício criado para aproximar a desigualdade real entre homens e mulheres do ideal igualitário das revoluções republicanas. De forma semelhante, o surgimento da "masturbação como problema moral" foi uma tentativa de resolver dilemas políticos, econômicos e sociais existentes no mesmo período histórico. Em 1712, aproximadamente, diz Laqueur, um autor inglês anônimo publicou um livro chamado "Onania". O título aludia a Onã, personagem bíblico do Gênesis 38.8-10, culpado do pecado do coito interrompido. O texto, reeditado várias vezes, circulou por toda a Europa. Em 1762, Tissot, o célebre médico suíço, retomou o tema em "L'Onanisme" e conferiu à masturbação o selo de problema médico, digno de apreciação científica. Desde então, todas as cabeças coroadas da intelectualidade europeia, de Rousseau a Kant, de Kraft-Ebing a Freud, se deram a tarefa de explicar a natureza da peste que punha em risco o equilíbrio da espécie e da sociedade. O "vício solitário", o "auto estupro", a "auto emasculação", o "auto abuso" se tornou a quintessência do Mal e, nos finais do século 19, apavorava adultos e crianças em escolas, conventos, lares burgueses, quartéis e fábricas. A indústria e o comércio, por seu lado, responderam prontamente ao apelo do mercado. Um arsenal de "poções e pílulas antimasturbatórias", "alarmes contra a ereção", "bainha para pênis", "luvas de dormir" etc. foi fabricado para combater o "vício secreto". Esse cenário moral permaneceu mais ou menos intocado até os anos 50-60 do século 20. Daquele momento em diante, a difusão das ideias psicanalíticas e antropológicas, o movimento da contracultura, o feminismo, as políticas de identidade sexual e, por último, as "novas descobertas" médicas terminaram por reverter a tendência dominante. A masturbação deixou de ser "um vício doentio" para se tornar, nas décadas de 70 e 80, quase uma virtude sanitária. Finalmente, nos dias atuais, o relevo moral da masturbação caiu em desuso.

A "desmoralização" da sexualidade na mídia, o fácil acesso aos sites pornográficos na internet e a suposta neutralidade do discurso biológico sobre o sexo jogaram a pá de cal definitiva em um assunto que, durante três séculos, consumiu esforços intelectuais e sofrimentos de milhões de seres humanos.

Feita a descrição, vem a interrogação. Como, pergunta Laqueur, algo tão tolo quanto a masturbação pode ter oprimido a consciência moral de tantos indivíduos por tanto tempo? A resposta sugerida é extremamente interessante. Não há, diz Laqueur, uma "causa" da obsessão ocidental pela masturbação. O que existiu foi uma teia de crenças políticas, práticas econômicas, normas de convívio familiar e perplexidades morais que acabaram por fazer do ato masturbatório o inimigo número um da moral do Ocidente, desde o século 18.

A questão da masturbação foi o efeito colateral imprevisto do choque entre o individualismo possessivo e o bem-estar da sociedade. O ato de se masturbar se tornou o "vicio emblemático" da cisão entre os interesses privados do burguês e os interesses públicos do cidadão. Outros vícios, do mesmo gênero, assombraram a mentalidade da época: o consumismo, o luxo, o egoísmo etc. Em todos eles, o problema central era o controle da "imaginação", da "solidão" e dos "excessos" do individualismo, definido como fundamento natural da nova ordem cultural.

Em outras palavras, os ideólogos oitocentistas e novecentistas perceberam que teriam que frear o que eles próprios haviam insuflado. O aumento do conforto material e do ócio; a expansão do mercado da literatura novelesca e pornográfica; a adesão maciça à leitura em voz baixa; a hipertrofia da intimidade sentimental etc. produziram o gosto cultural pelo "sexo solitário". Donde a necessidade de inibir o mau uso da fantasia, o desregramento do egoísmo sadio e desejável. O excesso sexual era o "lado escuro" da Razão e dos apetites naturais, que devia ser eliminado para que as Luzes da civilização brilhassem sem pontos de sombra. O trabalho de Laqueur, contraposto ao etos atual, se torna ainda mais eloquente. Primeiro, por mostrar que a vontade de arrancar, a marteladas, moral de sexo foi um dos mais desastrosos experimentos culturais do Ocidente; segundo, por revelar a face ética de nossa era. Hoje, estamos abandonando a ideia estapafúrdia de que sexo e ética são irmãos siameses. O lugar moral do sexo foi ocupado pelo corpo ou, como prefiro, pela cultura das sensações corporais. A mudança, contudo, não se limitou a substituir a matéria-prima das práticas de perfeição moral. O substrato da moral mudou - antes era o sexo, agora, o gozo das sensações corporais –, mas também sua finalidade. A moralidade sexual analisada por Laqueur tinha por objetivo a salvaguarda do interesse de todos. O moderno adestramento moral do corpo, ao contrário, começa e termina no circuito das sensações corporais. Outrora, queríamos uma sexualidade "sadia" e "virtuosa" para colocá-la a serviço da família, da raça, da religião ou dos valores da igualdade e da liberdade individuais; no presente, as asceses corporais visam apenas à repetição da sensação prazerosa ou o novo "prazer" prometido pela tecnologia e pela publicidade. Parte-se de si para chegar a si.

O "lado escuro" do individualismo veio, enfim, à luz, sem vergonha ou timidez. A luta contra o sexo perdulário e egoísta resultou em nada. Pior que isso, o individualismo criou resistência aos sermões moralistas e ressurge em uma variedade particularmente virulenta. Na cultura das sensações, o indivíduo começa a se desonerar de toda responsabilidade em relação ao que faz a si e ao outro. Pouco importa se seus desejos e ações venham a resultar em miséria e morte de quem quer que seja, inclusive a sua. Se algo vai mal, é por culpa dos "pais", do "trauma na infância", dos "políticos", dos "capitalistas", dos "comunistas", da "televisão", da "sociedade de consumo" ou da medicina, que ainda não descobriu o "gene" que venha nos curar, sem que tenhamos que fazer esforço, da indolência moral ou mesmo do pífio hábito de -"só de vez em quando"- dar aquela "cheiradinha" escondida em latrinas públicas ou privadas.

O moralismo sexual foi repressivo, intolerante e, muitas vezes, homicida; o da cultura das sensações é obtuso, leviano, medíocre e, cada dia mais, suicida. Um produziu famílias neuróticas, adultos obsessivos, crianças fóbicas e mulheres histéricas; o outro, famílias desagregadas, crianças insolentes e agressivas, homens cínicos e desfibrados e mulheres puerilmente acuadas pelo pânico da velhice e da gordura. Não temos por que nos curvar, como ovelhas dóceis, à estupidez de nenhum dos dois. Laqueur mostra que o que foi imperativo ontem pode ser derrisório amanhã. E, quem sabe, o amanhã pode começar hoje.



(Ilustração: Marcel Garbi)


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