sábado, 18 de setembro de 2021

UM GATO DE RUA GANHA UM LAR E UM NOME, de Hiro Arikawa

 



Eu sou um gato. Ainda não tenho nome.

Ouvi falar que certo gato muito famoso aqui no Japão disse isso.*

Não sei o que esse gato aí fez de tão importante, mas sei que ganho dele pelo menos nisso. Nome, eu tenho.

Agora, se eu gosto ou não desse nome, aí já são outros quinhentos. O problema fundamental é que o nome que me deram não é compatível com meu gênero.

Faz uns cinco anos que ganhei esse nome, bem na época em que atingi a maioridade. Falando nisso, parece que há várias teorias sobre a melhor maneira de converter a idade dos gatos em idade de humanos, mas todas concordam que o primeiro ano de vida de um gato equivale mais ou menos aos primeiros vinte anos de um humano.

Naquela época, meu lugar preferido para dormir era o capô de uma van prata, no estacionamento de certo prédio residencial.

Naquela van eu tinha tranquilidade para dormir, sem medo de ser enxotado com um humilhante “Xô! Xô!”. O ser humano é uma criatura arrogante demais para quem não passa de um macaco gigante que sabe andar ereto.

Deixam o carro largado, à mercê das intempéries, mas acham um absurdo se um gato sobe nele? Não faz sentido. Até porque, para nós, gatos, todas as coisas deste vasto mundo em que é possível subir são consideradas vias públicas de acesso livre.

E se você se distrai e deixa alguma pegada no capô, então? Eles surtam, te botam para correr.

Enfim, eu gostava muito de dormir no capô daquela van. Era o meu primeiro inverno, e o metal quentinho do capô, aquecido pelo sol, era como uma bolsa térmica. Perfeito para uma soneca.

Finalmente, a primavera chegou, completei minha primeira volta pelas estações. Para um gato, é uma grande sorte nascer na primavera. Nós, gatos, costumamos ter duas temporadas reprodutivas ao ano, uma na primavera e outra no outono, porém os filhotes nascidos no outono raramente sobrevivem ao inverno.

Lá estava eu, instalado confortavelmente no capô quentinho, quando senti um olhar intenso sobre mim. Entreabri os olhos para espiar…

Um homem magricelo e alto me observava dormir, sorridente.

— Você dorme sempre aqui?

Durmo. Algum problema?

— Você é muito bonitinho!

Pois é, ouço bastante isso.

— Posso te fazer um carinho?

Opa! Aí já é demais.

Com um movimento da pata, afastei a mão do homem, que fez um bico, chateado. Ué, você também ficaria incomodado se alguém viesse querendo mexer em você no meio do seu sono, não ficaria?

— De graça não vai rolar, é?

Olha só, até que você é esperto. Isso mesmo, vai ter que me recompensar por você ter interrompido meu descanso.

Levantei a cabeça, interessado. O homem revirou a sacola que segurava.

— Não tenho nada muito bom para um gato…

Qualquer coisa serve! Um gato de rua não pode ser muito exigente. Que tal esse petisquinho de vieira, hein? Acho que seria uma boa. Dei uma fungada no pacote que despontava da sacola, e o homem me deu um tapinha na cabeça, rindo sem jeito. Ei, ainda não autorizei você a encostar em mim!

— Esse aqui não pode, faz mal pra saúde. E é apimentado, ainda por cima.

Faz mal pra saúde? Você acha que um gato vadio como eu, que não sabe nem se verá o dia de amanhã, vai se preocupar com esse tipo de coisa? Minha prioridade máxima é encher a barriga aqui e agora.

Por fim, ele pegou um pedaço de frango empanado de um sanduíche, tirou a casquinha frita e me ofereceu a carne na palma da mão. Ih, tá achando que eu vou comer assim, direto da sua mão, é? Pois saiba que eu não caio nesses truques baratos de quem quer vir para cima de mim cheio de intimidades!

… Se bem que não é todo dia que me aparece uma carne assim tão fresquinha e apetitosa. Acho que posso abrir uma exceção.

Enquanto eu mastigava o frango, uns dedos se esgueiraram por baixo do meu queixo até minha orelha. Era a outra mão do homem. Ele deu uma coçadinha atrás da minha orelha, devagar. Às vezes eu permito que as pessoas me façam um cafuné em troca de comida, e aquele sujeito até que sabia o que estava fazendo…

Se me der mais, deixo você coçar embaixo do meu queixo também, viu?

Foi só roçar a cabeça na mão dele. Fácil, fácil.

— Desse jeito vai me sobrar um sanduíche só de repolho!

Ele deu um sorriso contrariado, mas pegou o último pedaço do frango, novamente tirou a parte frita e me ofereceu a carne. Por mim, podia deixar a casquinha… Tanto melhor.

Permiti que o desconhecido me afagasse um bom tempo, em troca da doação recebida, mas já estava chegando a hora de parar. Justo quando eu ia levantar a pata para afastar a mão dele… — Até mais!

Ele tirou a mão um segundo antes e foi embora, subindo os degraus de entrada do prédio.

Puxa vida, taí um sujeito que sabe a hora certa de parar.

E foi assim que nos conhecemos. Mas ainda levou um tempo até ele me dar meu nome.

Daquele dia em diante, todas as noites eu encontrava debaixo da van prata aquela comida que faz croc-croc. Sempre um punhado, na proporção de uma mão humana, atrás do pneu traseiro. O suficiente para uma refeição de gato.

Era aquele homem que tinha desaparecido dentro do prédio quem me trazia a comida, à noite. Quando ele me encontrava por ali, eu o recompensava deixando que brincasse um pouco comigo, mas, mesmo que eu não estivesse, ele deixava, respeitosamente, sua oferenda.

Às vezes outro gato encontrava a comida antes de mim, ou acontecia de o homem sair para algum lugar, e aí, por mais que eu esperasse, o croc-croc não aparecia. Mesmo assim, passei a ter uma refeição garantida praticamente todos os dias. Só que os humanos são criaturas muito caprichosas, então é melhor nunca depender totalmente deles. Um gato de rua esperto tem seus esquemas e se garante em vários lugares.

E foi assim que começou minha relação com aquele homem — éramos apenas conhecidos, mantendo uma distância segura um do outro. Entretanto, logo quis o destino que essa relação se transformasse completamente.

E esse destino doeu horrores.

Eu estava atravessando a rua, de madrugada, quando o farol de um carro veio em cheio na minha cara. Tentei correr, mas uma buzina gritou nos meus ouvidos. Aí, já era.

Levei um susto com a buzina, o que me fez demorar um segundo a mais para correr. Não fosse por isso, eu teria conseguido escapar fácil, mas a meio passo da calçada o carro me atingiu, com uma força espantosa — BAM!. Depois disso, eu não vi mais nada.

Quando dei por mim, estava caído no meio dos arbustos da calçada. Meu corpo doía de um jeito que eu nunca tinha sentido na vida. Ah, mas eu estava vivo!

Puxa vida, que situação. Tentei ficar em pé… só para despencar, com um grito. Ai, ai, ai, que dor!

Era a minha pata traseira direita que doía absurdamente.

Voltei a me deitar, sem forças, e lá fui eu lamber a ferida. Ah, não! Tinha um osso espetado.

E agora? O que eu faço? Alguém me ajude!!

Onde já se viu, um gato de rua pedir socorro? Não temos ninguém para nos acudir… Mas naquela hora eu me lembrei do homem, o que me dava a comida croc-croc toda noite.

Talvez ele me socorresse. Não sei por que pensei isso, afinal, era só um conhecido que às vezes me levava uns agrados, e de vez em quando eu permitia um cafuné em troca.

Saí andando, arrastando a pata com o osso aparecendo. A cada vez que ela raspava pelo chão, eu sentia a dor vibrar por todo o meu esqueleto. Ao longo do caminho, várias vezes perdi as forças e caí.

Não dá, desisto, não consigo dar nem mais um passo.

Não era uma grande distância até o prédio, mas o céu já estava clareando quando alcancei a van prata.

Não dá, desisto, não consigo dar nem mais um passo… Dessa vez, era verdade. Então, gritei o mais alto que consegui.

Aaaaaaaaiiiiii!!!

Gritei e gritei, sem parar, até minha voz começar a falhar. Nessas horas, juro pra vocês, parece que até os gritos ressoam nos ossos da gente, porque a dor só aumenta.

Quando eu já não conseguia mais gritar, alguém apareceu na entrada do prédio. Olhei para cima:

era o homem.

— Sabia que era você!

Ele se aproximou correndo, transtornado.

— O que aconteceu? Foi atropelado?

Odeio admitir, mas foi só eu vacilar um pouco que… — Está doendo muito? Aposto que sim.

Não faça perguntas idiotas, por favor! Anda logo, me ajuda!

— Você me chamou com um grito tão agoniado que até me acordou! Estava me chamando, não estava?

Estava, chamei até cansar! Você demorou muito, viu?

— Você sabia que podia contar comigo…

Eu ia responder na defensiva, explicar que não tinha alternativa, mas reparei que ele estava fungando.

Eu me machuco e você é que chora?

— Que bom que você se lembrou de mim!

Não choramos como os humanos, mas, não sei por quê… naquela hora, acho que entendi o que é chorar.

Quando pensei que fosse meu fim, eu me lembrei de você. Pensei que, se você viesse, daria um jeito de me salvar.

Você vai me ajudar, né? Está doendo tanto! Não aguento mais.

Dói tanto que estou com medo. O que vai ser de mim?

— Não se preocupe, agora vai ficar tudo bem.

Ele me acomodou em uma caixa de papelão forrada com uma toalha macia e me colocou dentro da van prata.

Fomos a um hospital veterinário. Vou poupá-los dos detalhes do que me aconteceu naquele lugar terrível, fonte eterna dos meus suplícios. Na primeira visita ao veterinário, qualquer animal aprende que nunca mais quer voltar ali, então não tenho por que me alongar no relato dessa experiência.

Depois disso, fiquei hospedado na casa do homem até minha pata sarar. Ele morava sozinho, e o apartamento até que era bem razoável. Ele instalou um banheiro para mim em um canto ao lado do boxe e colocou na cozinha as vasilhas para comida e água.

Pode não parecer, mas sou um gato muito inteligente e de boas maneiras. Aprendi num instante a usar o banheiro e nunca fiz sujeira no apartamento dele. Eu nem afiava as unhas nos lugares que o homem não permitiu. Vi que ele não gostava que eu afiasse nas paredes e nas colunas, então eu usava só os móveis e o tapete. Esses, ele nunca disse diretamente que eram proibidos. (Tudo bem, no começo ele me olhava feio, mas sou um gato muito perspicaz, percebo direitinho se algo é totalmente proibido ou não. Os móveis e os tapetes não eram totalmente proibidos.)

Acho que demorou uns dois meses para meu osso sarar e tirarem os pontos. Nesse tempo, eu aprendi o nome do homem. Era Satoru Miyawaki.

Satoru me chamava como lhe desse na telha: “você”, “gato”, “senhor gato”, e por aí vai. Natural, já que eu não tinha nome.

E mesmo que eu tivesse um nome, não teria como contar a Satoru, já que ele não fala minha língua. Esse negócio de os humanos falarem só a própria língua é muito inconveniente. Não sei se os senhores estão cientes, mas nesse aspecto os animais são muito mais poliglotas.

Sempre que eu pedia para sair um pouco do apartamento, Satoru fazia o mesmo discurso, com uma expressão tensa:

— Se você sair, talvez não volte mais, não é? Espere só mais um pouco, até sua pata sarar de vez.

Senão, vai acabar passando o resto da vida com esses pontos.

Eu não entendia muito bem qual era o problema de ter os tais pontos, pois já conseguia andar normalmente, era só ignorar umas pontadinhas de dor, mas Satoru ficava muito aflito, então aguentei firme e fiquei dois meses sem passear. Além do mais, se eu arranjasse briga com algum rival, manco daquele jeito, não seria legal.

Finalmente, o ferimento cicatrizou por completo.

Fui até a porta, onde sempre era barrado por aquela expressão aflita, e exigi sair. Muito obrigado por tudo, serei eternamente grato por sua dedicação.

A partir de agora vou abrir uma exceção, só para você: pode brincar comigo sempre que me encontrar em cima daquela van, mesmo que não me dê nenhum presente.

Dessa vez, a expressão de Satoru não era de preocupação, mas de tristeza. Era aquela cara de “não é totalmente proibido, mas…”.

— Você realmente gosta mais do mundo lá fora?

Ei, ei, não faz essa cara de choro. Desse jeito eu me sinto mal de ir embora! — Eu estava pensando se você não queria ser o gato aqui de casa…

Para falar a verdade, isso nunca me ocorreu. Sabe, é que eu sou um verdadeiro gato de rua, então a ideia de virar um bichinho de estimação nem me passou pela cabeça.

Meu plano era ficar aqui só até me recuperar. Mentira, não era bem isso. Eu achava que teria que ir embora.

E aí, se era para ir embora de qualquer jeito, melhor ir logo, com elegância, do que esperar me expulsarem. Temos classe, sabe?

Por que não avisou logo que eu podia morar aqui de vez?

Satoru abriu a porta, relutante, e eu me esgueirei para fora. Então parei, me voltei para ele e miei:

Vem!

E Satoru entendeu. Para um humano, ele até que tinha jeito com a língua dos gatos. Hesitou um pouco, mas acabou me acompanhando.

Era uma noite clara de luar. O bairro estava em silêncio total.

Pulei para o capô da van prata, encantado em ter minha agilidade recobrada. Depois saltei de volta para o chão e rolei pra lá e pra cá, até cansar.

Quando um carro passou perto, meu rabo se arrepiou todo. O pavor que senti ao ser lançado pelos ares, a ponto de quebrar um osso, devia ter ficado gravado no meu corpo. Sem perceber, me escondi atrás de Satoru, que ria baixinho, me olhando com ternura.

Demos uma volta pela vizinhança e voltamos para o prédio dele. Parei diante da porta do primeiro apartamento do segundo andar e miei. Abre!

Levantei a cabeça para Satoru, que sorria com os olhos marejados.

— Você voltou, foi?

Aham, voltei. Então abre logo essa porta.

— Vai morar aqui?

Vou. Mas vamos sair para dar uma volta de vez em quando, tá? E foi assim que eu me tornei o gato do Satoru.

— Quando eu era criança, tinha um gato igualzinho a você! Satoru pegou um álbum de fotos do armário e me mostrou.

— Olha só.

Era o álbum inteiro só de fotos do mesmo gato. Ah, já saquei tudo! Os humanos que fazem esse tipo de coisa são os tais “gateiros”.

O gato das fotos realmente se parecia comigo. Tinha o pelo quase todo branco, com exceção de duas manchinhas marrons na testa e o rabo preto e torto. A única diferença era que o rabo dele virava para o outro lado. Até as manchas no rosto eram idênticas.

— Ele se chamava Hachi, “oito”, por causa dessas manchas inclinadas na testa, que parecem o ideograma do número.

Nossa, mas que falta de criatividade! Oito, Nana, como no ideograma 八! Comecei a ficar preocupado com o nome que ele pretendia me dar.

E se ele me chamar de “nove”? Eu seria “Kyu”?

— Que tal Nana, de “sete”?

Opa, uma subtração? Por essa eu não esperava.

— É que seu rabo faz uma curva para o lado oposto do rabo do Hachi, e olhando de cima parece o número 7!

Ah, então a coisa tinha a ver com meu rabo…

Ei, espera aí. Nana não é nome de menina? Eu sou um macho autêntico, viu? Como é que fica isso?

— É um bom nome, hein, Nana? Sete é o número da sorte!

Miei bem alto — Ei, me ouve! —, mas Satoru só afagou meu queixo, sorrindo satisfeito.

— Achou legal também?

Não! Mas… poxa, perguntar enquanto me faz carinho é sacanagem.

Foi só eu me distrair e dar uma ronronadinha que Satoru se animou: — Que bom que você gostou!

Nããão, eu odiei!

Acabei nunca tendo a oportunidade de esclarecer o mal-entendido (o cara não parava com os cafunés!), então esse ficou sendo meu nome.

— Vamos precisar nos mudar …

Naquele prédio eram proibidos animais de estimação, Satoru tinha negociado para eu poder ficar só até minha pata sarar. Fomos morar em um apartamento no mesmo bairro. Mudar de casa por causa de um gato… Sei que eu, por razões óbvias, não deveria dizer isto, mas só um gateiro de carteirinha para fazer uma coisa dessas.

E assim começou nossa vida juntos. Satoru não deixava nada a desejar como roommate de gato, e eu não deixava nada a desejar como roommate de humano.

A gente realmente se entendeu muito bem, durante aqueles cinco anos.





* Refere-se à primeira frase de Eu sou um gato, de Natsume Soseki, uma das obras literárias mais conhecidas no Japão. (N. T.)



(Relatos de um gato viajante; tradução de Rita Kohl)



(Ilustração: Celia Pike - cat paintings)

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