quinta-feira, 30 de setembro de 2021
A VIDA SEXUAL DE CATHERINE M., de Mario Vargas Llosa
Diz a lenda que, em sua noite de núpcias, o jovem Victor Hugo fez amor oito vezes com sua esposa, a casta Adèle Foucher, que, em consequência desse recorde para o sexo varonil estabelecido pelo fogoso autor de Os Miseráveis, ficou vacinada para sempre contra esse tipo de atividades. (Sua tortuosa aventura de adúltera com o feio Saint Beuve não teve nada que ver com o prazer, mas com o despeito e a vingança.) O sábio Jean Rostand ria daquele recorde huguesco, comparando-o com as proezas que no domínio da fornicação outros espécimes realizam.
Que são, por exemplo, aquelas oito efusões consecutivas do vate romântico, comparadas com os 40 dias e 40 noites em que o sapo copula com a sapa sem se dar um só momento de pausa? Pois bem, graças a uma aguerrida francesa, a senhora Catherine Millet, os anfíbios anuros, os coelhos e outros grandes fornicadores do reino animal encontraram, na medíocre espécie humana, uma competidora capaz de se medir com eles de igual para igual, e até de derrotá-los em inúmeras cópulas.
Quem é a senhora Catherine Millet? Uma distinta crítica de arte, de 53 anos, que chefia a redação da ArtPress, em Paris, e autora de monografias sobre arte conceitual, o pintor Ives Klein, o desenhista Roger Tallon, a arte contemporânea e a crítica de vanguarda. Em 1989, foi a representante da seção francesa da Bienal de São Paulo e, em 1995, representante do Pavilhão francês da Bienal de Veneza. Sua fama no entanto é mais recente. Resulta de um ensaio sexual autobiográfico recém-publicado pela Seuil, La Vie Sexuelle de Catherine M., que tem causado notável furor e encabeça há várias semanas a lista de livros mais vendidos na França.
Direi de imediato que o ensaio da senhora Millet vale muito mais que o ridículo alvoroço que o tem promovido e, também, quem se precipite a lê-lo atraído pela auréola erótica ou pornográfica que o enfeita vai ter uma decepção. O livro não é um estimulante sexual nem uma sofisticada descrição de rituais a partir da experiência erótica, mas uma reflexão inteligente, crua, insolitamente franca, que adota às vezes o aspecto de um relatório clínico.
A autora se debruça sobre sua própria vida sexual com o rigor glacial e obsessivo desses miniaturistas que constroem barcos dentro de garrafas ou pintam paisagens na cabeça de um alfinete. Direi também que esse livro, embora interessante e corajoso, não é propriamente agradável de ler, pois a visão do sexo que ele deixa no leitor é quase tão fatigante e deprimente quanto a que deixaram em madame Victor Hugo as oito investidas maritais de sua noite nupcial.
Catherine Millet começou sua vida sexual bem tarde – aos 17 anos – para uma moça de sua geração, a da grande revolução dos costumes que maio de 1968 representou.
Mas, de imediato, começou a recuperar o tempo perdido, fazendo amor a torto e a direito, e com todos os lugares possíveis de seu corpo, a um ritmo verdadeiramente enlouquecedor, até chegar a uns números que, calculo, devem ter superado com folga aquele milhar de mulheres que, em sua autobiografia, se gabava de haver levado para a cama o concupiscente polígrafo Georges Simenon.
Insisto no valor quantitativo porque ela o faz, na extensa primeira parte de seu livro, intitulada exatamente O número, onde documenta sua predileção pelos partouzes, o sexo promíscuo, os entreveros coletivos. Nos anos 70 e 80, antes que a liberdade perdesse impulso e, graças à aids, deixasse de estar em moda em toda a Europa, a senhora Millet – que se descreve como uma mulher tímida, disciplinada, tendendo mais para o dócil, que nas relações sexuais encontrou uma forma de comunicação com seus congêneres que não lhe ocorre facilmente em outros aspectos da vida – fez amor em clubes privados, no Bois de Boulogne, à beira de rodovias, vestíbulos de prédios, bancos públicos, além de casas particulares e, alguma vez, na parte traseira de uma caminhonete na qual, com ajuda de seu amigo Eric, que organizava a fila, deu conta de dezenas de solicitantes em umas tantas horas.
Digo solicitantes porque não sei como chamar a esses companheiros de aventura da autora, fugazes e anônimos. Não clientes, claro, porque Catherine Millet, embora tenha prodigalizado seus favores com generosidade sem limites, nunca cobrou por fazê-lo. Nela o sexo tem sido sempre inclinação, esporte, rotina, prazer, mas nunca profissão ou negócio. Apesar da incontinência com que o pratica, diz que nunca foi vítima de brutalidades nem se sentiu em perigo; que, inclusive em situações que podiam chamar-se limítrofes da violência, bastou-lhe uma simples reação negativa para que os outros respeitassem sua decisão. Tem tido amantes e agora tem um marido – um escritor e fotógrafo, que acaba de publicar um álbum de nus de sua mulher -, mas um amante é alguém com quem se supõe existir uma relação um tanto estável, ao passo que a maioria dos companheiros sexuais de Catherine Millet aparece como silhuetas transitórias, tomadas e abandonadas com negligência, quase sem que mediasse um diálogo entre eles. Indivíduos sem nome, sem cara, sem história, os homens que desfilam por esse livro são, como aquelas vulvas furtivas dos livros libertinos, nada mais que umas vergas ambulantes.
Até agora, na literatura confessional, só os varões libertinos faziam assim o amor, em sequências cegas e no atacado, sem se preocupar sequer em saber com quem. Esse livro mostra – e talvez seja o que há de verdadeiramente escandaloso nele – que se enganam os que acreditavam que o sexo em cadeia, transformado em simples ginástica carnal, dissociado por completo do sentimento e da emoção, era privativo de quem usa calças compridas.
Convém destacar que Catherine Millet não faz nessas páginas o menor alarde de feminista. Não exibe sua riquíssima experiência sexual como uma bandeira reivindicatória ou uma acusação aos preconceitos e discriminações de que sofrem as mulheres no âmbito sexual. Seu testemunho está despojado de arengas e não aparece nele a menor pretensão de querer ilustrar, com o que conta, alguma verdade geral, ética, política ou social. Não, ao contrário, seu individualismo é extremado, e muito visível em seu escrúpulo de não querer tirar, de sua experiência pessoal, conclusões válidas para todo mundo, sem dúvida por não acreditar que elas existam. Então por que tornou pública, mediante uma auto autópsia sexual sem precedentes, essa intimidade que a imensa maioria de fêmeas e varões esconde sob sete chaves? Pareceria que é para ver se desta forma se entende melhor, se chega a ter a perspectiva suficiente para transformar em conhecimento, em ideias claras e coerentes, esse poço escuro de iniciativas, arrebatamentos, audácias, excessos e também confusão que, apesar da liberdade com que o assumiu, o sexo ainda é para ela.
O que mais desconcerta nessas memórias é a frieza com que estão escritas. A prosa é eficiente, empenhada em ser lúcida, com frequência abstrata. Mas a frieza não só impregna a expressão e o raciocínio. É também a matéria, o sexo, o que exala um hálito gelado, enregelante, e em muitas páginas deprimente. A senhora Millet nos garante que muitos de seus parceiros a satisfazem, a ajudam a materializar seus fantasmas, que passou bons momentos com eles. Mas de fato a saciam, a fazem gozar? A verdade é que seus orgasmos parecem com frequência mecânicos, resignados e até tristes. Ela própria o dá a entender, de modo bastante inequívoco, nas últimas páginas de seu livro, quando assinala que, apesar da diversidade das pessoas com as quais faz amor, nunca se sentiu tão realizada sexualmente quanto ao praticar (“com a pontualidade de um funcionário”) a masturbação. Não é, portanto, sempre correta aquela generalizada crença machista (agora esta adjetivação é discutível) de que, em matéria de sexo, só na variação se encontra o prazer. Que o diga a senhora Millet: nenhum de seus incontáveis parceiros de carne e osso conseguiu destronar seu fantasma invertebrado.
Esse livro confirma o que toda literatura limitada ao sexual mostra à saciedade: que o sexo, dissociado das demais atividades e funções que constituem a existência, é extremamente monótono, de um horizonte tão limitado que no fim das contas se torna desumanizante. Uma vida imantada pelo sexo, e só por ele, rebaixa essa função a uma atividade orgânica primária, não mais nobre nem agradável do que o engolir por engolir, ou o defecar. Só quando a cultura o civiliza e o carrega de emoção e paixão e o reveste de cerimônias e rituais, o sexo enriquece extraordinariamente a vida humana, e seus efeitos benfazejos se projetam por todos os aspectos da existência.
Para que esta sublimação ocorra é imprescindível, como o explicou George Bataille, que se preservem certos tabus e regras que enquadrem e freiem o sexo, de modo que o amor físico possa ser vivido – gozado – como uma transgressão. A liberdade irrestrita e a renúncia a toda teatralidade e formalismo em seu exercício, que é apresentada como uma conquista em certos enclaves do mundo ocidental, não contribuíram para enriquecer o prazer e a felicidade dos seres humanos graças ao sexo. Antes, contribuíram para banalizar e cegar, transformando físico em mera ginástica e rotina o amor, uma das fontes mais férteis e misteriosas do fenômeno humano.
Além do mais, convém não esquecer que essa liberdade sexual que se exibe com tanta eloquência no ensaio de Catherine Millet é privilégio de pequenas minorias. Ao mesmo tempo em que eu lia seu livro, aparecia na imprensa, aqui em Paris, a notícia do apedrejamento, numa província do Irã, de uma mulher que um tribunal de imãs fanáticos declarou culpada de aparecer em filmes pornográficos. Esclareçamos que “pornografia”, numa teocracia fundamentalista islâmica, consiste no fato de uma mulher mostrar seus cabelos. A culpada, de acordo com a lei corâmica, foi enterrada numa praça pública até os seios e apedrejada até a morte.
(Tradução de Magno Dadonas)
(Ilustração: Hans Bellmer)
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