sexta-feira, 23 de novembro de 2018

MULA DE DEUS, de Hilda Hilst






I



Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO

Alta, dourada, me pensei.

Não esta pardacim, o pelo fosco

Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.



Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO

Lavei com a língua os cascos

E as feridas. Sanguinolenta e viva

Esta do dorso

A cada dia se abre carmesim.



Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.

É raro, em sendo mula, ter a chaga

E ao mesmo tempo

Aparência de limpa partitura

E perfume e frescor de terra arada.



II



Há nojosos olhares sobre mim.

Um rei que passa

E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.

Agora é só de dor o flanco trêmulo.

Há nojosos olhares. Rústicos senhores.



Açoites, fardos, vozes, alvoroço.

E há em mim um sentir deleitoso

Um tempo onde fui ave, um outro

Onde fui tenra e haste.



Há alguém que foi luz e escureceu.

E dementado foi humano e cálido.

Há alguém que foi pai. E era meu.



III



Escrituras de pena (diria mais, de pelos)

De infinita tristura, encerrada em si mesma

Quem há de ouvir umas canções de mula?



Até das pedras lhes ouço a desventura.

Até dos porcos lhes ouço o cantochão.

E por que não de ti, poeta-mula?



E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.

Escoiceando os ares, espumando de gozo

Assustando mercado e mercadores



Alegrou-se de mim o coração.



IV



Um dia fui o asno de Apuléius.

Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.

Fui mãe e meretriz e na Betânia

Toquei o intocado e vi Jeshua.

(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).



Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.

Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.



Agora sou escombros de um alguém.

Só caminhada e estio. Carrego fardos



Aves, patos, esses que vão morrer.

Iguais a mim também.



V



Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando

Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!

Poder amar a Ti com este corpo nojoso

Este de mim, pulsante de outras vidas

Mas tão triste e batido, tão crespo

De espessura e de feridas.



Ditoso amor de mim! Tão pressuroso

De amar! (E de deitar-se ao pé

De tuas alturas). Corpo acanhado de mula



Este de mim, mas tão festivo e doce

Neste Agora

Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.



VI



Tu que me vês

Guarda de mim o olhar.

Guarda-me o flanco.

Há de custar tão pouco

Guardar o nada

E seus resíduos ocos.



Orelhas, ventas

O passo apressado sob o jugo

Casco, subidas

Isso é tudo de mim

Mas é tão pouco...



Tu que me vês

Guarda de mim, apenas

Minha demasiada coitadez.



VII



Que eu morra junto ao rio.

O caudaloso frescor das águas claras

Sobre o pelo e as chagas.



Que eu morra olhando os céus:

Mula que sou, esse impossível

Posso pedir a Deus. E entendendo nada

Como os homens da Terra

Como as mulas de Deus.



VIII



Palha

Trapos

Uma só vez o musgo das fontes

O indizível casqueando o nada



Essa sou eu.



Poeta e mula



(Aunque pueda parecer

Que del poeta es locura).





(Estar sendo. Ter sido.)



(Ilustração: Aleah Chapin - Seattle, Estados Unidos – 1986 - And We Were Birds)



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