quarta-feira, 14 de novembro de 2018

LUAMANDA, de Conceição Evaristo








Luamanda consertou o vestido no corpo observando por alguns instantes o colo e o pescoço. Não, a sua pele não denunciava as quase cinco décadas que já havia vivido. As marcas no rosto, poucas, mesmo quando observadas de perto mentiam descaradamente sobre a sua idade. Nunca ninguém havia lhe dado mais de quatro décadas de vida. Um dia o lance mais alto que ela orgulhosamente aceitara fora de 35 anos. Sorriu ao ouvir a oferta. É, estava inteirinha, apesar de tantos trambolhões e acidentes de percurso em sua vida-estrada. 

Lua, Luamanda, companheira, mulher. Havia dias em que era tomada de uma nostalgia intensa. Era a lua mostrar-se redonda no céu, Luamanda na terra se desminlinguia todinha. Era como se algo derretesse no interior dela e ficasse gotejando bem na altura do coração. Levava a mão ao peito e sentia a pulsação da vida desenfreada, louca. Taquicardia. Tardio seria, ou mesmo haveria um tempo em que as necessidades do amor seriam todas saciadas? Ela iniciara cedo na busca, menina, muito menina ainda. Lembrava-se da primeira paixão. Sentimento esquivo, onde se misturavam revistas em quadrinhos, giz colorido, partilha de pão com salame e um epílogo cruel dramatizado pela surra que levara da mãe. O amor dói? Na época pensou que a dor de amor era tanta, porque tinha onze anos e um corpo-coração pequeno. E desejou crescer. Entre um pelo e outro que nasciam em suas axilas e sobre o seu púbis ensaiou e experimentou sorrisos, acenos distantes, piscar de olhos, troca de desenhos, cartas mal-escritas borradas com os dedos trêmulos de amores platônicos. O amor é terra morta? 

Um dia, aos treze anos, a cama do gozo foi arrumada em pleno terreno baldio. A lua espiava no céu denunciando com a sua luz um corpo confuso de uma quase menina, de uma quase mulher. Corpo-coração espetado por um falo, também estreante. Um menino que se fazia homem ali, a inaugurar em Luamanda o primeiro jorro, fora de suas próprias masturbantes mãos. E ambos se lambuzavam festivamente um no corpo do outro. Luamanda chorando de prazer. O gozo-dor entre as suas pernas lacrimevaginava no falo intumescido do macho menino, em sua vez primeira no corpo de uma mulher. O amor é terremoto? 

Depois, em outro tempo, quando já acumulada de várias vivências, ela deparou-se com um homem que viria inaugurar novos ritos em seu corpo. Uma sensação estranha, algo como um jorro-d’água ou um tapa inesperado caiu sobre o rosto de Luamanda, ao avistá-lo pela primeira vez. Ele sorriu. Ela sentiu o sorriso desgrudando da face dele e mordendo lá dentro dela. O coração de Luamanda coçou e palpitou, embora a cara da lua nem estivesse escancarada no céu. Não fazia mal, a lua viria depois. E veio, várias vezes. Lua cúmplice das barrigas-luas de Luamanda. Vinha para demarcar o tempo grávido da mulher e expulsar, em lágrimas amnióticas e sangue, os filhos: cinco. Navegação íntima de seu homem no buraco-céu aberto de seu corpo. O amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas? 

Depois, tempos depois, Luamanda experimentava o amor em braços semelhantes aos seus. Os bicos dos seios dela roçando em outros intumescidos bicos. No primeiro instante, sentiu falta do encaixe, do membro que completava. Num ato de esquecimento, sua mão procurou algo ereto no corpo que estava diante do dela. Encontrou um falo ausente. Mas estava tão úmida, tão aquosa aquela superfície misteriosamente plana, tão aberta e igual a sua, que Luamanda afundou-se em um doce e feminil carinho. E quando se sentiu coberta por pele, poros e pelos semelhantes aos seus, quando a sua igual dançou com leveza a dança-amor com ela, saudade alguma sentiu, vazio algum existiu, pois todas as fendas de seu corpo foram fundidas nas femininas oferendas da outra. O amor se guarda só na ponta de um falo ou nasce também dos lábios vaginais de um coração de uma mulher para outra? 

Luamanda, um dia, também amazona, montada então sobre um jovem. O moço encantado por aquela mulher que ele sabia madura, mas de imprecisa idade. O jovem amamentando-se no tempo vivido dela. Luamanda se realimentando, reencontrando a sua juventude passada e encantada pela virilidade quase inocente dele. Era tão grande a juvenil força do moço a atravessar o corpo de Luamanda, que ensandecida, às vezes, quando ele estava lá embaixo no buraco-perna, ela pensava que o intumescido bastão dele ia penetrar no seu corpo, desde lá de baixo e lhe vazar pela boca afora. O amor não cabe em um corpo? 

Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão avassaladora pelo velho, pelas rugas que ele trazia na pele, pelo cansaço dele, pela cópula que ela esperava e espreitava durante dias e dias. Era tão bom contemplar aquele falo adormecido, preguiçoso, sapiente de tanto corpos-histórias do passado. Era como vivenciar uma duvidosa e infiel fé, sustentada por uma temerosa esperança de que o milagre não acontecesse. E foi no corpo do velho que ela melhor executou o ritual do amor. Pacientemente penteava ou ouriçava, com os dentes, os embranquecidos pentelhos do corpo dele. E de noite, depois de muitas noites, quando a pedra envergonhada e soturna se desabrochava em flor, ambos cavavam o abismo do abismo encontrando o nada como realidade única e, então, é que aconteciam as juras de amor. E o velho vinha lento, calmo, cuidadoso, cioso do fundo caminho que ele teria de adentrar. Ela também calma, apenas retesando suavemente os finos véus sanguíneos, bordados nas paredes vaginais. Ele chegava e ela silenciando os gritos se quedava embevecida diante do quase nada de um átimo de prazer. O amor é um tempo de paciência? 

Se havia o amor na vida de Luamanda, também um grande fardo de dor compunha as lembranças de seu caminho. A vagina ensanguentada, perfurada, violada por um fino espeto, arma covarde de um desesperado homem, que não soubera entender a solidão da hora da partida. E durante meses, o sangue menstrual de Luamanda, sangue de mulher que nasce naturalmente de seu útero-alma vinha misturar-se ao sangue e pus, dádivas dolorosas que ela ganhara de um estranho fim amoroso. E pior do que a dor foi a dormência de que foi atacada, em sua parte tão viva, durante meses a fio. Logo ali onde a vida se entranha e desentranha. Ali onde Luamanda havia parido concretas e vitalícias lembranças de si e de outro homem que ela amara tanto, nas doces visagens de seus filhos. Foi um tempo em que precisou exercitar a paciência com o seu próprio corpo. Trancada em si, ou melhor, aberta para si mesmo, com as mãos espalmadas e leves imaginava lenitivos carinhos. Chorando alisava, bulia, contornava uma cicatriz que ficara desenhada em um ponto da pele, onde os pelos se rarearam para sempre. Era um ponto único, minúsculo, um impertinente calombo. Ali, então alisava a dor e seus contornos. Era preciso convencer-se na sua floresta espessa e negra de que o prazer era uma via retornável, de que o gozo ainda era possível. O amor comporta variantes sentimentos? 

Entre encontros e desencontros, Luamanda estava em franca aprendizagem. Uma aprendizagem no, por dentro e fora do corpo. A cada amor vivido, Luamanda percebia que a lição encompridava, mas que ainda faltava testes, arguições, sabatinas e que ela sabia só um pouquinho ou talvez nem soubesse nada ainda. 

Havia os filhos, três mulheres e dois homens. Todos eles já inaugurados no mistério maior da vida. A mais nova estava redonda da cabeça aos pés guardando e aguardando a velha e nova espécie humana desafiadora do tempo. Estava em vésperas de parir. Luamanda, avó, mãe, amiga, companheira, amante, alma-menina no tempo. 

Alma-menina no tempo? Não, ela não se envergonhava de seu narcisismo. Era com ele que ela compunha e recompunha toda a sua dignidade. Encarou novamente o espelho e se lembrou de um poema, em que uma mulher contemplando a sua imagem refletida, perguntava angustiada onde é que ela deixara a sua outra face, a antiga, pois não se reconhecia naquela que lhe estava sendo apresentada naquele momento. 

Não, não era o caso de Luamanda, que se reconhecia e se descobria sempre. Pouquíssimos fios de cabelos brancos avançavam buscando criar um território próprio em sua cabeça. Escolheu esses fios, puxou-os querendo destacá-los entre os demais. 

Imaginou-se com os cabelos brancos sobre o rosto negro. Seria bela como a Velha Domingas lá das Gerais. 

Viajando no tempo-evento de sua vida, Luamanda, distraída, esqueceu-se do compromisso para o qual se preparava no momento. Acordou, para o encontro que estava para acontecer naquela noite, quando ouviu os assobios de alguém que aguardava por ela lá fora. Apressou-se. Podia ser que o amor já não suportasse um tempo de longa espera.  



(Olhos d’água)



(Ilustração:  Elisha Ongere  - Charming Girl)






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