quinta-feira, 29 de novembro de 2018

A VIDA SUBMARINA, de Ana Martins Marques










Eu precisava te dizer.

Tenho quase trinta anos

e uma vida marítima, que não vês,

que não se pode contar.

Começa assim: foi engendrada na espuma,

como uma Vênus ainda sem beleza,

sobre a apele nasciam os corais,

pele de baleia, calcária e dura.

Ou assim: a luz marítima trabalha lentamente,

os peixes começam a consumir por dentro

o sal do desejo,

estão habituados ao sal.

Quando vês, a água inundou os pulmões,

neles crescem algas íntimas,

os olhos voltam-se para dentro,

para o sono infinito do mar.

As mãos se movem num ritmo submerso,

os pensamentos guiam-se pela noite

do Oceano, uma noite maior que a noite.

Tenho quase trinta anos e uma vida antiga

anterior a mim.

Daí meu silêncio, daí meu alheamento,

daí minha recusa da promessa desse dia que você me oferece,

esse dia que é como uma cama

que se oferece ao peixe

(você não haveria de querer

um peixe em sua cama).

Quem atribuiria ao mar

a culpa pela solidão dos corais

pelas vidas imperfeitas

dos peixes habituados ao abismo,

monstros quietos

só de sal e silêncio e sono?

Eu precisava te dizer,

enquanto as palavras ainda resistem,

antes de se tornarem moluscos

nas espinhas da noite,

antes de se perderem de vez

no esplendor da vida

submarina.





(Da arte das armadilhas)



(Ilustração: Konstantin Somov)






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