terça-feira, 20 de novembro de 2018

VIVER UMA ÉPOCA REAL AINDA QUE SURREAL, PARADOXAL, de Ignácio de Loyola Brandão







Minha raiva dos militares começou no dia em que, voltando ao jornal Última Hora, duas semanas após seu fechamento, no dia 1º de abril de 1964, encontrei um elemento novo na redação, o censor. Naquele dia percebi que tudo estava mudado, a liberdade de expressão terminada. Os anos passaram e o torniquete foi sendo apertado com o AI-5, com o Conselho Superior de Censura, com as cassações de políticos, de intelectuais, de líderes estudantis, as prisões, os desaparecimentos, as torturas. Ou se era contra ou a favor, expresso mais tarde no adesivo que estava na maioria dos carros: Brasil, ame-o ou deixe-o. Era ler aquilo e saber com quem se estava falando. Em 1965 publiquei meu primeiro livro, Depois do sol; em 1968 o segundo, Bebel que a cidade comeu e o terceiro em 1969, Pega ele, silêncio. Logo viria o quarto que me colocou na cena literária e política. Jornalista e escritor, belo ser duplo eu era. Se como jornalista sofria a censura (e logo a autocensura, que é pior), logo com meu romance Zero eu continuaria sob o jugo do PROIBIDO. Assim, eu e minha geração sofríamos duro aprendizado. O que marcou o grupo de escritores entre os anos 1960 e os de 1980 foi que ele veio dos meios de comunicação, dos jornais, televisão, rádio e publicidade. Diferente da geração anterior quando a maioria foi funcionário público, trabalhava em autarquias e ministérios, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos. 

Essa minha geração bandeou-se para a literatura, em parte motivada pela ânsia de ver e não poder contar o que via e vivia. A ficção possibilitou transmitir a realidade brasileira como era. Evidente que surgiu uma lei que obrigava os editores a submeter os originais a uma censura prévia, para saber se poderiam ou não ser publicados. Nenhum editor acatou tal determinação. As proibições vieram, seguidas. Os militares acreditavam que a literatura poderia colocar as armas nas mãos da população. Nós acreditávamos que podíamos fazer cabeças. Sonhos. Nem um nem outro. 

Os livros eram expurgados das livrarias, seguidamente. Saltavam romances, novelas, antologias de contos, ensaios, num festival de insanidade e arbitrariedade. Assim, o belo romance A capital, de Eça de Queiroz, foi confundido com O Capital de Marx. Livros de geografia caíram no índex, sem que se saiba por quê. O escritor Renato Tapajós, autor de Em câmera lenta, foi proibido e preso. O editor Ênio Silveira, dos mais ousados e corajosos do país, foi preso várias vezes, sofreu ameaças e perseguições. Também Carlos Heitor Cony, Paulo Francis, Jaguar, Tarso de Castro, Ziraldo e toda a turma do libertário O Pasquim. 

Ferreira Gullar, Darcy Ribeiro, Thiago de Mello se exilaram, assim como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, para citar apenas alguns. Osvaldo França Júnior foi demitido da Aeronáutica e Bernardo Élis, da Academia Brasileira de Letras, expulso da Universidade Federal de Goiás. Wander Pirolli, o melhor autor de livros infantis da década, sofreu sérias represálias e ameaças por causa do título de seu livro, O menino e o pinto do menino. Achavam que pinto era pinto, membro, e não pintinho, filho da galinha. 

Quando tocavam a campainha da porta, tremíamos. Teria chegado a nossa vez? A cada artigo publicado, ao atender o telefone, vinha a ansiedade: Vai ser agora? 

Finalmente meu romance Zero, escrito entre 1964 e 1973, saiu na Itália em primeira edição e em seguida no Brasil em 1975. Um ano e meio depois foi proibido. Indaguei ao censor que regia a Editora Três, onde eu trabalhava na época, fazendo a revista Planeta, o que a proibição significava em relação a minha integridade física. 

— Se o livro for proibido por uma questão política, você poderá ser preso e a editora fechada. Mas se a razão for moral, deixe para lá, esqueça. 

Logo eu soube, Zero foi proibido por ser atentatório à moral e aos bons costumes. Dias depois, o censor me comunicou (paradoxalmente era um homem culto, agradável, boa conversa) que para não se “chatear” com processos e outras coisas, o Ministério da Justiça preferia proibir livros pela moral. Acrescentou: 

— Quanto a recolher os exemplares publicados, descanse. A Polícia Federal nem tem viaturas para isso e os agentes vão fazer a maior confusão, livraria não é o ambiente deles. 

Essa relação com os censores era estranha, alguns avisavam as redações que determinado livro, filme ou disco seria proibido e então tínhamos “chance” de correr ao cinema, ao teatro, à livraria, antes que viesse o veto. Delirante. 

Certa tarde — acreditem — ele me confidenciou: 

— Em geral são as esposas dos coronéis e oficiais que, desocupadas, comentam livros, revistas, programas de televisão, novelas nas mesas de jogo de biriba de Brasília e então pressionam os maridos. Também as associações religiosas influenciam. 

Tudo era surreal, espantosamente fantástico. Muitos escritores entre 1968 e 1982 chegaram às escolas, faculdades, associações e foram proibidos de falar, por medo de diretores ou dos conselhos. Os encontros eram realizados numa praça, quadra esportiva, na estação ferroviária, em uma igreja, num espaço qualquer. 

Momento significativo aconteceu em 1975, quando todos os setores culturais se reuniram no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, para o debate que desafiou e confundiu a Polícia Federal, presente na primeira fila. Iniciava-se o movimento anticensura. Em seguida, em 1976, veio a proibição de três livros, Araceli, meu amor, de José Louzeiro, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca e Zero, meu, que acendeu um estopim no país e gerou uma linha de frente, e o manifesto, que atravessou o Brasil em 1977, colhendo 1.546 assinaturas dos mais representativos intelectuais brasileiros, de criadores a professores, exigindo a imediata supressão da censura. 

Era possível unir, resistir, lutar. Independentemente de tudo, foi um período fértil para a literatura, música, teatro, porque havia um inimigo comum a enfrentar, a violência de um regime que suprimiu a liberdade. E isso deu forças. O mais curioso eram os escritores de mesas de bar que anunciavam: 

— Estou com o livro pronto, mas tem o problema da censura... 

Quando acabou a censura, abriram as gavetas... estavam vazias. Quem tinha alguma coisa a falar, tinha falado, escrito, comunicado. 



(Revista Palavra) 



(Ilustração: Han Wu Shen - every word is true)



Nenhum comentário:

Postar um comentário