sexta-feira, 25 de julho de 2025

À RECONQUISTA, de Agostinho Neto

 




Não te voltes demasiado para ti mesma

Não te feches no castelo das lucubrações infinitas

Das recordações e sonhos que podias ter vivido



Vem comigo África de calças de fantasia

desçamos à rua

e dancemos a dança fatigante dos homens

o batuque simples das lavadeiras

ouçamos o tam-tam angustioso

enquanto os corvos vigiam os vivos

esperando que se tornem cadáveres



vem comigo África dos palcos acidentais

descobrir o mundo real

onde os milhões se irmanam na mesma miséria

atrás das fachadas de democracia de cristianismo de igualdade



Vem comigo África de colchões de molas

e reentremos na casinha de latas esquecidas no musseque da Boavista

até onde já nos empurram

ao nos quebrarem as casas de meia água de Cayette

e à volta de fogo consolador das nossas aspirações mais justas

examinaremos a injustiça inoculada no sistema vivo em que giramos.



Vem comigo África de colchões de esmola

regressemos à nossa África

onde temos um pedaço da nossa carne calcado sob as botas dos magala

- a nossa África



Vem comigo África do jitterburg

até a terra até o homem até o fundo de nós

ver quando de ti e de mim faltou

quanto da África esqueceu

e morreu na nossa pele mal coberta sob o fato emprestado

pelo mais miserável dos ex-fidalgos



Não chores África dos que partiram

olhemos claros para os ombros encurvados do povo que desce a calçada

negro negro de miséria negro de frustração negro de ânsia



e dêmos-lhes o coração

entreguemo-nos



através da fome da prostituição das cubatas esfuracadas

das chanfalhadas dos cipaios

através dos muros das prisões através da Grande Injustiça



Ninguém nos fará calar

Ninguém nos poderá impedir

O sorriso dos nossos lábios não é agradecimento pela morte

com quem nos matam.



Vamos com toda a Humanidade

Conquistar o nosso mundo e a nossa Paz.





(Sagrada esperança, 1953)



(Ilustração:
África - povo Hadza, foto de Martin Schoeller )

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