segunda-feira, 28 de julho de 2025
A PORTA ABANDONADA, de Julio Cortázar
Petrônio gostou do hotel Cervantes, por motivos que haviam desagradado a outras pessoas. Era um hotel escuro, tranquilo, quase deserto. Recomendou-lhe um conhecido, quando cruzava o rio num barco de corrida [*], dizendo-lhe que ficava na zona central de Montevidéu. Petrônio aceitou um quarto com banheiro no segundo andar que dava diretamente para a recepção. O quadro de chaves na portaria fez-lhe supor que havia poucos hóspedes no hotel; as chaves estavam presas a pesados discos de bronze com o número do apartamento, inocente artimanha da gerência para impedir que os clientes as esquecessem no bolso.
O elevador ficava logo em frente, onde havia um balcão com os jornais do dia e a lista telefônica. Bastava-lhe dar uns poucos passos para alcançar o quarto. A água saía quente e isso compensava a ausência de sol e de ar puro. No quarto havia uma pequena janela que dava para o telhado do cinema próximo; às vezes uma pomba passeava por ali. O banheiro tinha uma janela maior, que se abria tristemente para um muro e para um distante pedaço de céu, quase inútil. A mobília era de boa qualidade, havia muitas gavetas e prateleiras. E muitos cabides, coisa estranha.
O gerente era um homem alto e magro, completamente calvo. Usava óculos de armação dourada e falava com a voz forte e sonora dos uruguaios. Disse a Petrônio que o segundo andar era muito silencioso, e que no único quarto contíguo ao seu vivia uma senhora solitária, que trabalhava em algum lugar e voltava ao hotel somente à noite. Petrônio encontrou-a no dia seguinte no elevador. Soube que era ela pelo número da chave que levava na palma da mão, como se fosse uma enorme moeda de ouro. O porteiro pegou-lhe a chave e a de Petrônio para pendurá-las no quadro, e ficou conversando com a mulher sobre umas cartas. Petrônio teve tempo de ver que era ainda jovem, insignificante, e que se vestia mal como todas as orientais,
O contrato com os fabricantes de mosaicos levaria cerca de uma semana. À tarde Petrônio guardou a roupa no armário, ordenou seus papéis na mesa, e depois de tomar banho saiu para percorrer o centro, enquanto fazia hora de ir ao escritório dos sócios. O dia se consumiu em conversas, interrompidas por um drink em Pocitos e um jantar na casa do sócio principal. Quando o deixaram no hotel, era mais de uma hora. Cansado, se deitou e dormiu em seguida. Quando acordou, eram quase nove, e nesses primeiros minutos em que ainda ficam restos da noite e dos sonhos, pensou que em algum momento lhe irritara o choro de uma criança.
Antes de sair, conversou com o atendente da recepção que falava com sotaque alemão. Enquanto se informava sobre linhas de ônibus e nomes de ruas, olhava distraído a enorme sala em cujo extremo estavam a porta de seu quarto e a da senhora solitária. Entre as portas, havia um pedestal com uma horrenda réplica da Vênus de Milo. Outra porta, na parede lateral, dava para um corredor com as inevitáveis poltronas e revistas. Quando o funcionário e Petrônio se calaram, o silêncio do hotel parecia solidificar-se e cair como cinzas sobre os móveis e os azulejos. O ruído do elevador era quase tão estridente quanto o barulho das folhas de um jornal ou o raspar de um fósforo.
As reuniões terminaram no começo da noite e Petrônio deu uma volta pela 18 de Júlio [**], antes de entrar para jantar em uma das tavernas da praça Independência. Tudo ia bem, e talvez pudesse voltar a Buenos Aires antes do programado. Comprou um jornal argentino, um maço de cigarrilhas e caminhou calmamente até hotel. No cinema ao lado, passavam dois filmes a que já havia assistido, mas realmente não tinha vontade nenhuma de ir a qualquer lugar. O gerente o cumprimentou, ao passar, e perguntou-lhe se precisava de mais roupa de cama. Conversaram por instantes, fumando um cigarro e se despediram.
Antes de deitar-se, Petrônio pôs em ordem a papelada do dia e leu o jornal sem muito interesse. O silêncio do hotel era quase excessivo, e o ruído de um ou outro bonde que descia a rua Soriano não fazia mais que pausá-lo, o que o fortalecia para um novo intervalo. Despreocupado, mas impaciente, jogou o jornal no lixo e se despiu enquanto se olhava distraído no espelho do armário. Era um armário velho encostado numa porta que dava para um quarto contíguo. Petrônio ficou surpreso ao perceber a porta que não tinha visto em sua primeira inspeção do quarto. Inicialmente supusera que o edifício fora construído para ser um hotel, mas agora percebia o que costuma acontecer a muitos hotéis modestos, instalados em antigas casas de escritório ou de família. Pensando bem, em quase todos os hotéis que havia conhecido em sua vida – e eram muitos – os quartos tinham alguma porta abandonada, às vezes visível, mas quase sempre com um guarda-roupas, uma mesa ou um cabideiro na frente que, como neste caso, lhes dava uma certa ambiguidade, um envergonhado desejo de dissimular sua existência, como uma mulher que acredita cobrir-se pondo as mãos no ventre ou nos seios. A porta estava ali, sem dúvida, aparecendo acima do armário. Um dia, alguém teria entrado e saído por ela, batendo nela, empurrando-a, dando-lhe uma vida que ainda estava presente em sua madeira muito diferente das paredes. Petrônio imaginou que do outro lado haveria também um guarda-roupa e que a dona do quarto pensaria o mesmo da porta.
Não estava cansado, mas pegou logo no sono. Passaram-se três ou quatro horas, quando lhe despertou uma sensação de incômodo, como se tivesse acontecido alguma coisa, alguma coisa desagradável e irritante. Acendeu o abajur, viu que eram duas e meia, apagou outra vez. Então, ouviu, vindo da sala ao lado, o choro de uma criança.
De imediato, não percebeu bem o que era. Seu primeiro pensamento foi de satisfação; então, era verdade que na noite anterior um menino não o deixara descansar. Tudo explicado, era mais fácil voltar a dormir. Então, logo depois lembrou-se do outro e se sentou lentamente na cama, sem acender a luz, escutando. Não era engano, o pranto vinha do quarto ao lado. Ouvia-se o som através da porta abandonada, proveniente daquele lugar do quarto que correspondia aos pés da cama. Mas não era possível que no quarto ao lado houvesse uma criança; o gerente havia dito claramente que a senhora vivia sozinha, que passava quase todo o dia no emprego. Por um segundo, ocorreu a Petrônio que talvez nesta noite estivesse cuidando da criança de alguma parente ou amiga. Pensou na noite anterior. Agora estava certo de que já havia ouvido o choro, porque não era um choro fácil de confundir, porém uma série irregular de gemidos muito fracos, de soluços doloridos seguidos de um chorinho breve, inconsistente, mínimo, como se a criança estivesse muito doente. Devia ser um bebê de poucos meses, ainda que não chorasse com a estridência e os repentinos soluços e engasgos de um recém-nascido. Petrônio imaginou um menino – um varão, sem saber por quê – fraco e doentio, rosto exaurido e movimentos lentos. Por isso, resmungava à noite, chorando timidamente, sem chamar muita atenção. Se não estivesse ali a porta abandonada, o choro no lograria vencer as grossas paredes e ninguém iria saber que no quarto ao lado estava chorando uma criança.
De manhã, Petrônio ficou matutando por um instante, enquanto tomava o desjejum e fumava um cigarro. Uma noite mal dormida era bem ruim para o seu dia de trabalho. Havia despertado duas vezes durante a noite, e as duas vezes por causa do choro. A segunda vez foi ainda pior, porque além do choro se ouvia a voz da mulher tentando acalmar a criança. A voz era muito baixa, mas tinha um tom de ansiedade que lhe dava uma certa dramaticidade, um sussurro que atravessava a porta com tanta clareza como se fossem gritos. A criança cessava, às vezes, por alguns momentos o arrulho; mas logo voltava ao gemido entrecortado, numa tristeza sem fim. E de novo a mulher murmurava palavras incompreensíveis, sortilégios da mãe para silenciar o filho atormentado por seu corpo ou sua alma, por estar vivo ou ameaçado de morte.
“Está tudo muito bem, mas o gerente mentiu para mim”, pensava Petrônio ao sair do quarto. Incomodava-o a mentira e ele não disfarçou isso. O gerente ficou olhando para ele.
- Uma criança? Você deve ter-se enganado. Não há crianças pequenas neste andar. Ao lado de seu quarto vive uma senhora solitária, acho que lhe disse isso.
Petrônio hesitou antes de falar. Ou o cara mentia estupidamente, ou a acústica do hotel estava lhe pregando uma peça. O gerente olhava-o um pouco de lado, como se estivesse irritado com a reclamação. “Talvez ele pense que sou tímido e estou procurando motivo para me mandar mudar”, pensou. Era difícil e um tanto absurdo insistir diante de uma negativa tão categórica. Deu de ombros e pediu o jornal.
- Devo ter sonhado – disse, chateado por ter que dizer isso, ou qualquer outra coisa.
O cabaré era mortalmente chato e seus anfitriões não eram lá muito entusiasmados, assim foi fácil a Petrônio alegar cansaço do dia e ser levado para o hotel. Combinaram assinar os contratos no dia seguinte, à tarde; o negócio estava praticamente encerrado.
O silêncio na recepção do hotel era tão grande, que Petrônio se pegou andando na ponta dos pés. Haviam deixado um jornal da tarde ao lado da cama; havia também uma carta de Buenos Aires. Reconheceu a letra de sua mulher.
Antes de ir para a cama olhou para o armário e para a parte saliente da porta. Talvez se colocasse as duas malas sobre o armário, bloqueando a porta, os ruídos do quarto ao lado diminuíssem. Como sempre, nessa hora, não se ouvia nada. O hotel dormia, as coisas e as pessoas dormiam. Mas ocorreu a Petrônio, já de mau humor, que era o contrário e que tudo estava acordado, avidamente acordado no centro do silêncio. Sua ansiedade inconfessada devia estar se comunicando com a casa, com as pessoas da casa, conferindo-lhes uma qualidade de perseguição, de vigilância atemorizada.
Bobagens.
Quase não acreditou quando o choro do menino o acordou de novo às três da madrugada. Sentando-se na cama, perguntou a si mesmo se não seria o caso de chamar o vigia noturno para ter uma testemunha de que não se conseguia dormir neste quarto. A criança chorava tão debilmente, que às vezes nem se conseguia escutá-lo, embora Petrônio sentisse que o choro estava ali, contínuo, e que logo aumentaria outra vez. Passaram dez ou vinte lentíssimos segundos; então lhe chegou um soluço breve, um gemido quase imperceptível que se prolongava docemente até se transformar no verdadeiro choro.
Acendendo um cigarro, pensou se não deveria dar umas batidas discretas na parede, para que a mulher silenciasse a criança. Só quando pensou nos dois, na mulher e no menino, é que se lembrou de que não acreditava neles, de que absurdamente não acreditava que o gerente tivesse mentido para ele. Agora ouvia-se a voz da mulher, encobrindo completamente o choro da criança com seu arrebatador - embora muito discreto - conforto. A mulher estava acalentando a criança, consolando-a, e Petrônio a imaginou sentada ao pé da cama, balançando seu berço ou segurando-a nos braços. Porém, por mais que se esforçasse, não conseguia imaginar a criança, como se as palavras do gerente do hotel fossem mais verdadeiras do que essa realidade que ele ouvia. Pouco a pouco, à medida que o tempo passava e os fracos gemidos se alternavam ou cresciam entre os murmúrios de consolo, Petrônio começou a supeitar que aquilo era uma farsa, um jogo ridículo e monstruoso que ele não conseguia entender. Pensou em histórias antigas de mulheres sem filhos, organizando secretamente um culto a bonecas, numa maternidade inventada e secreta, mil vezes pior do que mimar cães ou gatos ou sobrinhos. A mulher estava imitando o pranto de seu filho frustrado, consolando o ar com suas mãos vazias, talvez com o rosto molhado de lágrimas, porque o pranto que fingia era possivelmente seu verdadeiro choro, a caricatura de sua dor na solidão de um quarto de hotel, protegida pela indiferença e pela madrugada.
Acendendo o abajur, incapaz de voltar a dormir, Petrônio perguntava a si mesmo o que devia fazer. Seu mau humor era maligno, contagiava-se desse ambiente onde, de repente, tudo parecia enganador, vazio, falso: o silêncio, o choro, o arrulhar, a única realidade desse momento entre a noite e o dia e que o enganava com sua mentira insuportável. Bater na parede lhe pareceu muito pouco. Não estava totalmente acordado, embora fosse impossível dormir; sem saber como, viu-se movendo pouco a pouco o armário até deixar à vista a porta empoeirada e suja. De pijama e descalço, agarrou-se a ela como uma centopéia e, aproximando a boca das tábuas de pinho, começou a imitar em falsete, imperceptivelmente, um gemido como o que vinha do outro lado. Subiu de tom, gemeu, soluçou. Do outro lado se fez um silêncio que devia durar toda a noite; mas no instante seguinte, Petrônio pôde ouvir o barulho dos chinelos da mulher correndo pelo quarto, soltando um grito agudo e breve,
Petrone ouviu o ruído dos chinelos da mulher atravessando a sala correndo, , soltando um grito agudo e repentino, o início de um uivo como o de uma corda esticada subitamente rompida.
Quando passou pelo balcão da gerência, eram mais de dez horas. Em seus sonhos, depois das oito, ele ouviu a voz do empregado e a de uma mulher. Alguém havia estado no quarto ao lado movendo coisas. Viu um baú e duas malas grandes perto do elevador. O gerente tinha um ar que lhe pareceu ser de perplexidade.
- Dormiu bem à noite? – perguntou-lhe com o tom profissional que apenas disfarçava a indiferença. Petrônio deu de ombros. Não queria insistir, quando apenas lhe restava passar só mais uma noite no hotel.
- De qualquer jeito, agora vai ficar mais tranquilo – disse o gerente, olhando para a malas – A senhora vai nos deixar ao meio-dia.
Esperava um comentário e Petrônio incentivou-o com os olhos.
- Estava aqui há muito tempo, e vai embora assim de repente. Nunca se sabe com as mulheres.
- Não – disse Petrônio -. Nunca se sabe.
Na rua sentiu-se tonto, uma tontura que não era física. Engolindo um café amargo, começou a pensar no assunto, esquecendo-se do negócio, indiferente ao sol esplêndido. Foi sua a culpa que aquela mulher tenha ido embora do hotel, louca de medo, de vergonha ou de raiva. Ela estava lá há muito tempo... Estava doente, talvez, mas inofensiva. Não era ela, mas ele quem deveria ter deixado o Cervantes. Tinha a obrigação de falar com ela, de desculpar-se e pedir-lhe que ficasse, jurando discrição. Deu alguns passos de volta e parou na metade do caminho. Tinha medo do ridículo, de que a mulher reagisse de alguma forma inesperada. Já estava na hora de encontrar-se com os dois sócios e ele não queria deixá-los esperando. Bem, que se lasque. Ela não passava de uma histérica, logo encontraria outro hotel onde cuidar do filho imaginário.
Mas à noite voltou a sentiu-se mal, e o silêncio do quarto pareceu-lhe ainda mais denso. Ao entrar no hotel não pôde deixar de notar o quadro de chaves, onde já estava faltando a chave do quarto ao lado. Trocou algumas palavras com o funcionário, que bocejava aguardando a hora de ir embora, e entrou em seu quarto com poucas esperanças de conseguir dormir. Levava os jornais da tarde e um romance policial. Entreteve-se arrumando as malas, organizando a papelada. Estava quente e ele abriu de par em par a pequena janela. A cama estava bem feita, mas ele a achou desconfortável e dura. Finalmente teve todo o silêncio de que precisava para dormir profundamente, e isso pesou sobre ele. Virando-se várias vezes na cama, sentiu-se vencido por esse silêncio que habilmente reivindicara e que lhe era agora devolvido inteiro e vingativo. Ironicamente pensou que podia estar sentindo falta do choro da criança, que essa calma perfeita não lhe bastava nem para dormir nem para ficar acordado. Sentia falta do choro da criança e, quando bem mais tarde, o ouviu, fraco mas inconfundível através da porta abandonada, além do medo, além da fuga em plena noite soube que estava bem e que a mulher não mentira, nem mentira para si mesma ao acalentar a criança, ao querer que a criança se calasse para que eles pudessem dormir.
(La puerta condenada; tradução de Isaias Edson Sidney)
Notas do tradutor:
[*] Vapor de corrida: assim se denominam os barcos que fazem a ligação entre Buenos Aires e Montevidéu.Têm esse nome porque, no começo, as empresas apostavam corrida para ver quem fazia a viagem mais rápida, com muitos acidentes e mortes. (Nota do tradutor)
[**] Famosa avenida de Montevidéu.
(Ilustração: el viejo Hotel Cervantes, de Montevideo)
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