terça-feira, 22 de julho de 2025
A MUSA MALVADA, Rosa Montero
Acredite, os artistas geralmente são uns viciados. Podem até se controlar (eu tento), mas o temperamento aditivo está ali (por exemplo, fumei três maços de cigarro por dia durante vinte anos). Os artistas se drogam para manter o fogo interior, a energia que devora a si mesma. E para desinibir ainda mais aquele córtex préfrontal por si só já desinibido, como dizia Dierssen. Para facilitar a associação de ideias; para estimular as emoções. Para silenciar o eu consciente, o maior obstáculo que existe contra a criatividade, um maldito inimigo íntimo que sussurra palavras venenosas no seu ouvido: você não pode, não sabe, não vale nada, não vai conseguir, todos os outros são melhores, você é uma impostora, vai fazer um papel ridículo, renda-se de uma vez à adversidade. Na verdade, criar é como fazer amor, ou como dançar a dois; eu, que sou da geração hippie, nunca aprendi a dançar agarrado e sou péssima nisso. Mas às vezes estou tentando com alguém e acontece um prodígio: de repente, percebo que estou há um bom tempo sem pisar no pé dele, movendo-me em uníssono com meu parceiro na leveza ondulante das algas embaladas pela maré. Porém, no momento em que tomo consciência disso, perco o ritmo, tropeço, acaba-se a dança milagrosa. O mesmo ocorre com o sexo: para que seja bom, é o corpo que deve mandar (agora que penso nisso, pode-se extrair um grande conselho desses dois exemplos: desligue a cabeça quando abraçar alguém). O fato é que, no processo criativo, acontece a mesma coisa. Para dançar, para fazer amor e para escrever bem é preciso anestesiar o eu controlador. E as drogas ajudam.
Sim, ajudam no início, mas depois destroem e matam. A história da arte em geral e da literatura em particular está cheia de alcoólatras, opiômanos, cocainômanos e viciados em todo tipo de porcaria. E o processo é sempre semelhante: a musa química primeiro acaba com a obra e, então, com o autor. “Naquele tempo, estive bêbado por muitos anos e depois morri”, Scott Fitzgerald deixou escrito num caderno.
Curiosamente, uma droga que teve seu momento entre os criadores foi o café: Voltaire tomava cinquenta xícaras por dia; Balzac, quarenta; e Flaubert intercalava dezenas delas com copos de água gelada. Nietzsche era viciado em cloral, um sedativo à base de clorofórmio; Freud e Robert Louis Stevenson, em cocaína; Valle-Inclán pegou pesado no haxixe, como fizera antes, na década de 1840, Baudelaire, que o usava no Club des Hashischins junto com Balzac, o pintor Delacroix, Théophile Gautier e Gérard de Nerval. O ópio, em especial, sempre teve grandes seguidores: “De todas as drogas, o ópio é a droga”, dizia Jean Cocteau. E também: “O ópio permite a quem o usa dar forma ao disforme”. E não é isso que todos nós, artistas, perseguimos? Entre os que usavam ópio estavam Shelley, Wordsworth, Byron, Keats, Flaubert, Rimbaud.
De Quincey dizia, empolgado, que o ópio descortinava os véus “entre nossa consciência presente e as inscrições secretas do espírito”. Aliás, o viciadão do De Quincey acabou muito mal, com uma grave dissociação e pesadelos horríveis. Para não falar do opiômano talvez mais famoso da literatura, Samuel Coleridge, que viu seu célebre poema “Kubla Khan” num sonho induzido pela droga (levantou e anotou os versos correndo, mas só lembrou uma parte). Mesmo alguém como Octavio Paz, que era um grande escritor mas que parecia um senhor muito formal e muito sério, disse o seguinte: “As drogas suscitam as faculdades da analogia, põem os objetos em movimento, fazem do mundo um imenso poema de versos rimados e de ritmos”.
Quanto à cocaína, ela começou a ser extraída das plantas de coca em 1860 e imediatamente foi considerada uma substância extraordinária: o mercado foi inundado de pastilhas, xaropes e elixires de coca. Na opinião de Julio Verne, era “um tônico maravilhoso”. O jovem e empreendedor Mark Twain pensou em montar um negócio que consistia em ir ao Amazonas para colher coca “e comercializá-la no mundo todo”. Passou meses matutando sobre o projeto, e até pegou a estrada rumo ao Peru com uma nota de cinquenta dólares que achou na rua, mas só chegou a New Orleans. Essa história genial é contada por Sadie Plant no fascinante livro Writing on Drugs [Escrevendo sobre drogas]. Ela também diz que, segundo alguns escritores, as visões de santa Teresa d'Ávila e de outros místicos poderiam ter sido facilitadas por substâncias psicoativas, como a cravagem ou esporão-do-centeio. A cravagem é um fungo que ataca os cereais. Comer a farinha contaminada provoca uma doença chamada Fogo de Santo Antônio, bastante comum na Idade Média e que causa sintomas terríveis: convulsões, demência e infecções gangrenosas mortais. Porém, se consumida em pouca quantidade, o que ela causa são alucinações. A cravagem tem um alcaloide, a ergotina, a partir da qual foi sintetizado o LSD em 1938. Antes já havia sido extraída dela a ergotamina, um remédio para enxaqueca que tomei em altas doses durante toda a minha vida (isso não tem nada a ver com a história, é só que fiquei pasma). Eu já tinha lido em outros autores sobre a provável influência do esporão-do-centeio em pintores como Bosch (aquele delírio caótico), mas desconhecia a história dos místicos. E Sadie Plant conta algo ainda mais impactante: parece que existe um autor, John Man, que menciona a coincidência de alguns eventos históricos com momentos climáticos favoráveis para a proliferação do esporão, o que talvez tenha causado uma espécie de alucinação coletiva. E cita a perseguição às bruxas em Massachusetts na década de 1690 (as famosas bruxas de Salem) e o período do Terror da Revolução Francesa.
Ainda falta mencionarmos as outras drogas, os barbitúricos de Truman Capote, as balinhas de Philip K. Dick… Embora, mais que dos artistas, as anfetaminas tenham sido a droga favorita dos políticos: Kennedy, Churchill, o primeiro-ministro britânico Anthony Eden… E Hitler, que se injetava metanfetamina oito vezes por dia. Outros escritores provaram mescalina, como JeanPaul Sartre, que passou anos vendo crustáceos que o perseguiam; ou peiote e, principalmente, LSD, a droga de Timothy Leary e seus pirados, mas que também fascinou Aldous Huxley, o qual defendia que precisava se injetar “para poder ter acesso à vida inconsciente” (justamente o que dizíamos), e que fez algo que sempre me horrorizou: ele estava agonizando de um câncer de laringe e pediu à esposa — por escrito, pois já não podia falar — que lhe injetasse LSD nos momentos finais. E foi o que ela fez. Ou seja, Huxley morreu no meio de uma viagem de ácido. Negou-se a usar morfina, pois dizia que queria falecer com a maior clareza mental possível. Embora, filha como sou da era lisérgica, não sei se dá para chamar isso exatamente de clareza mental.
Mas a rainha dos artistas, e muito especialmente dos escritores, é o álcool. “A bebida realça a sensibilidade. Quando bebo, minhas emoções se intensificam e as coloco em um conto. Os contos que escrevo quando estou sóbrio são idiotas. Tudo aparece muito racionalizado, sem nenhum sentido”, disse Scott Fitzgerald a uma amiga no início da sua descida aos infernos. Aliás, acho maravilhoso o oxímoro da última frase de Scott: quando mais se usa a razão na arte, menos sentido tem tudo. É o que dizíamos antes sobre anestesiar o eu.
O álcool é a desgraça maior dos escritores, sobretudo durante o século XX. Dos nove prêmios Nobel de literatura norte-americanos nascidos nos Estados Unidos, cinco foram alcoólatras desesperados: Sinclair Lewis, Eugene O'Neill, William Faulkner, Ernest Hemingway e John Steinbeck. Aos quais é preciso acrescentar dezenas de outros autores, entre eles Jack London, Dashiell Hammett, Dorothy Parker, Djuna Barnes, Tennessee Williams, Carson McCullers, John Cheever, Raymond Carver, Robert Lowell, Edgar Allan Poe, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Patricia Highsmith, Stephen King, Malcolm Lowry… Os estadunidenses têm um talento incrível para beber até morrer, mas não são os únicos, é claro. Aí também estão Dylan Thomas, Jean Rhys, Marguerite Duras, Oscar Wilde, Ian Fleming, Françoise Sagan… E não estamos falando de encher a cara de vez em quando, mas de verdadeiras hecatombes pessoais, delirium tremens, destruições em massa da vida. O norueguês Knut Hamsun, que ganhou o Nobel em 1920, chegou à cerimônia de entrega tão escandalosamente bêbado que deu batidinhas no corselete da autora sueca Selma Lagerlöf (também prêmio Nobel) e, depois de arrotar, gritou: “Eu sabia, eu sabia que soava como um sino!”. O brilhante poeta britânico Dylan Thomas, que morreu aos 39 anos por causa da bebida, disse à esposa, já bem perto do fim: “Tomei dezoito uísques seguidos. Acho que é um bom recorde”. Aos 37 anos, Faulkner tomava no café da manhã duas aspirinas e meio copo de gim para firmar o pulso e poder tomar banho e fazer a barba. Tinha bebedeiras que duravam uma semana, ao longo das quais vagava nu pelos corredores dos hotéis e sumia. Numa dessas ausências alcoólicas, desmaiou de cueca em cima da torneira de água quente e ficou ali até que o concierge derrubou a porta. Na época, ficou com uma queimadura de terceiro grau nas costas. O alcoolismo de Faulkner fez com que o hospitalizassem várias vezes e o submetessem a uma série de eletrochoques. Em Hemingway, que chegou a tomar dezesseis daiquiris de uma tacada só, também aplicaram cerca de uma dúzia de choques elétricos.
Alguns autores conseguiram largar a bebida antes de se matar, como o Nobel O'Neill, que se aposentou do álcool aos 38 anos, ou como Stephen King, depois de ter provado de tudo na década de 1980. “Eu tomava 24 ou 25 latas de cerveja por dia, e tudo o mais que se possa imaginar: cocaína, Valium, Xanax, alvejante, xarope para tosse…” E Bukowski repete diversas vezes com horror no seu livro autobiográfico, Escrever para não enlouquecer, que, depois de passar sete ou oito anos “apenas bebendo”, foi internado na ala para indigentes do hospital geral, com o estômago perfurado e vomitando sangue. Esteve à beira da morte, mas o que mais o assustava era o fato de ter acabado na ala de indigentes: sem dúvida considerava essa a maior decadência da sua vida. Depois daquilo, bebeu apenas cervejas, recurso típico dos alcoólatras, com as quais também tinha seus pileques, porém menos graves. No seu livro de contos autobiográficos, Manual da faxineira, a norte-americana Lucia Berlin retrata de um jeito maravilhoso e chocante, como nunca vi em nenhum outro lugar, o que é ser uma alcoólatra.
Curiosamente, no mundo anglo-saxão esses problemas com a bebida sempre foram reconhecidos mais abertamente. Talvez porque durante muito tempo foram inclusive mistificados, como se as bebedeiras fizessem de você um escritor melhor. Algo assim também aconteceu na Espanha na geração anterior à minha, dos escritores que tinham 45 ou cinquenta anos quando eu tinha vinte: vi-os beber com grande entusiasmo e alardear sobre a irmandade do álcool e o talento criativo. Mas na nossa cultura essas coisas se escondem debaixo do tapete, como se não devessem ser nomeadas. Há um ensaio intitulado Alcohol y literatura, publicado em 2017, no qual o autor, Javier Barreiro, se atreve a dar nomes espanhóis e latino-americanos. Casos que, por outro lado, todos que nos dedicamos a isso já conhecemos: Juan Benet, Caballero Bonald, Dámaso Alonso, Alfonso Grosso, Fernando Quiñones, Gil de Biedma, Carlos Barral ou a grande Ana María Matute, que teve uns anos ruins mas depois se recuperou. E entre os do outro lado do oceano, Juan Carlos Onetti, Alfredo Bryce Echenique, Juan Rulfo, José Donoso, Pablo Neruda ou Guillermo Cabrera Infante.
Eu me lembro de uma entrevista que fiz com o poeta espanhol Leopoldo María Panero enquanto estava internado num hospital psiquiátrico, acho que em Ciempozuelos. Deixaram que ele saísse do lugar e passamos algumas horas conversando num bar do vilarejo enquanto ele bebia sem parar, com uma avidez chocante, um monte de cervejas sem álcool uma atrás da outra, sorvendo desesperadamente aquele 0,5% alcoólico que tinham todas as cervejas zero da época.
Em The Thirsty Muse: Alcohol and the American Writer [A musa sedenta: Álcool e o escritor americano], de Tom Dardis, o autor escreve: “Ao longo dos anos, muitos de nossos melhores artistas aceitaram a relação [entre arte e álcool]. De fato, vários declararam que não tinham escolha a não ser beber, e beber muito, se quisessem trabalhar sua arte ao máximo”. Isto é o mais chocante: que, mesmo tendo absoluta consciência dos estragos que a bebida causava na sua vida, muitos deles não tenham percebido que, à medida que avançavam no vício, suas obras iam ficando cada vez piores, chegando por vezes a emudecer completamente. Entendo o que os levava ao álcool, já dissemos no início: ele aumenta a emotividade, potencializa a desinibição, amordaça o eu controlador. Nem Hemingway nem Fitzgerald podiam escrever sem estar bêbados, por exemplo. Mas a bebida é uma musa maligna e traiçoeira, uma assassina que, antes de te matar, te embrutece, te humilha e te arranca a palavra. Como dizia o veterano escaldado Charles Bukowski, “beber ajuda a criar, embora eu não recomende”.
(O perigo de estar lúcida; tradução de Mariana Sanchez)
(Ilustração: William Hogarth - Gin Lane – 1751
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