terça-feira, 29 de junho de 2021

SOL VERMELHO, de Fabiano Calixto

 






Em memória de todos aqueles que, além de acreditar,

lutaram por um mundo melhor



1.

cada vez que você respira

é como se um anzol

mergulhasse fundo

em minhas retinas

e arrancasse

do abismo dos meus olhos

lágrimas de outro coração

um coração baleado ao meio-dia

por um soldado do governo

sob um sol de chumbo e miséria

um coração engolido pelo monstro do SNI

meu coração queimado com pontas de cigarro

seu coração, exausto e quebrado, no pau de arara

estuprado pelas hóstias elétricas do Papa

cineminha obsceno do maldito empresário dinamarquês

corações trocados por moedas pelos cabos anselmos

pelos generais, pelos fascistas, pela classe média

corações estourados, carregados sujos e semimortos

pelos covardes combos da folha da manhã

da garganta da gárgula

a noite carbônica

derrama-se

sobre os párias e vira-latas

sobre todo o concreto armado

sobre os cadáveres



2.



come panetone com mostarda, louco,

e vê nos food trucks

as cabeças humanas

prontas para petisco

vê as bocas podres

da rataria capitalista

cheias de água e pus

e sede de sangue

despida brutalmente pelos policiais,

fui sentada na “cadeira do dragão”,

sobre uma placa metálica,

pés e mãos amarrados,

fios elétricos ligados ao corpo

tocando a língua,

ouvidos,

olhos,

pulsos,

seios

e órgãos genitais



3.



Bacuri

ávida, a utopia saliva feito carne viva

Bacuri

luta contra a manseira, essa rosa fria

Bacuri

gênio da guerra retórica, libertária lábia

Bacuri

que sabia que só a coragem é sábia

Bacuri



Bacuri

nosso carnaval não chegou

e estes dias choram

pela aurora batalhadora

mas ainda há tempo

de repassar aos moços

a metralhadora de sonhos

(os malditos agora

depois de nos quebrar

o coração

nos cobram

a luz do verão)

não há mais cobertor de lã

para o seu intenso frio sul-americano

e seus olhos ainda fitam, camarada,

a fantasmagoria

do centro da cidade



no rádio, Inglaterra x Tchecoslováquia

chumbo na luz dos postes, bala na Variant

look, we don’t like this kind of method

but it’s the only way to save our political prisoners

you know very well they are suffering all kinds of tortures

and some of them are going to be murdered

apenas é noite

há sardinhas de semolina, cebolas roxas

um madrigal lúgubre nas artérias

...

40 presos políticos em liberdade



5.



Capitão! Ó meu Capitão!

...

meu Capitão não responde

seus lábios estão pálidos e quietos

...

para você, mil ramos de flores

e toda a multidão nas ruas



6.



Marighela,

nossos olhos

ainda choram

no futuro vazio

escuro e baço

onde um velho de olhos citrinos

e bigodes escuríssimos

que teve os rins rasgados

por uma baioneta

por se recusar a amamentar tubarões

com seu suor

foi enterrado com suas muletas

a lua pregada no céu

como a angústia

nesta redoma de recusas

onde o rastro dos astros

se faz perceptível

algumas campânulas azuis

perfumando a palavra adeus



7.



não somos os únicos mortos da aldeia,

Tito

agora vejo você tocando violão

num dia qualquer de inverno

com seus óculos grandes, barba de Trotsky

numa fotografia

do arquivo dos Frades Dominicanos

antes de ter conhecido a sucursal do inferno

antes de terem te dado a “hóstia sagrada”

antes de terem esmagado seus testículos

toda vez que passo pela Bento Freitas

(vindo da rua Aurora — onde estão

enterrados os pés de Mário de Andrade)

lembro da Livraria Duas Cidades

lembro destes versos seus:

uma Nazaré humana,

abrigo dos pobres,

sustento dos fracos

em paisagens distantes

agora é um dia de nevasca forte

sem vinho, pão ou parábola

os sonhos todos estilhaçados

num dia frio

na copa de um álamo

é melhor morrer do que perder a vida



(Revista Palavra; julho 2014)



(Ilustração: Debora Arango (1907-2005) - the goodbye)



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