sábado, 26 de junho de 2021

O VAZIO É BELO, de Naomi Klein

 


Agora a terra estava corrompida aos olhos de Deus, e a terra estava consumida pela violência. E Deus viu que a terra estava corrompida; porque toda carne havia corrompido seus caminhos sobre a terra. E Deus disse a Noé:”Eu determinei que fosse dado um fim a toda carne, porque a terra está consumida pela violência por causa deles; agora Eu vou destruí-los junto com a terra'’

— Gênesis 6: 11



Choque e Pavor são estados que criam medos, perigos e destruição incompreensíveis para a maioria das pessoas, para elementos/setores específicos da sociedade ameaçada ou para suas lideranças. A natureza, sob a forma de tornados, furacões, terremotos, enchentes, incêndios incontroláveis, fome e epidemias, pode engendrar Choque e Pavor.

— Shock and Acre: Achieving Rapid Dominante, 
a doutrina militar para a guerra dos EUA no Iraque'





Conheci Jamar Perry em setembro de 2005, no grande abrigo da Cruz Vermelha em Baton Rouge, Louisiana. O jantar estava sendo distribuído por jovens cientologistas sorridentes, e ele estava na fila. Eu tinha fracassado ao tentar falar com os desabrigados sem acompanhamento da mídia e agora fazia o melhor para me misturar, uma canadense branca num mar de afro—americanos sulistas. Entrei na fila atrás de Perry e pedi—lhe que conversasse comigo como se fôssemos velhos amigos, o que ele fez com toda a gentileza. Nascido e criado em Nova Orleans, ele tinha se ausentado da cidade inundada por uma semana. Aparentava uns 17 anos, mas me contou que tinha 23. Perry e sua família haviam esperado longamente pelos ônibus que levariam os desabrigados; como não chegaram, eles resolveram caminhar sob o sol escaldante. Finalmente, acabaram parando aqui, um centro de convenções imenso, normalmente utilizado para eventos da indústria farmacêutica e como arena para campeonatos de lutas, e que agora estava ocupado por duas mil macas e uma multidão de pessoas exaustas e irritadas, patrulhadas por impacientes soldados da Guarda Nacional recém-chegados do Iraque.

As notícias que corriam naquele dia dentro do abrigo diziam que Richard Baker, um proeminente congressista republicano da cidade, havia declarado a um grupo de lobistas que “Nós finalmente fizemos a limpeza dos prédios públicos de Nova Orleans. Nós não podíamos fazer isso, mas Deus fez.”’ Joseph Canizaro, um dos mais ricos empreendedores de Nova Orleans, tinha acabado de expressar um sentimento parecido: “Acho que nós temos um terreno limpo para começar de novo. E com esse terreno limpo, temos algumas oportunidades muito grandes.”‘ Durante toda aquela semana, a Assembleia Estadual da Louisiana, em Baton Rouge, havia ficado cheia de lobistas das corporações preocupados em abocanhar aquelas grandes oportunidades: impostos menores, pouca regulamentação, trabalhadores mais baratos e “uma cidade menor, mais segura” — o que, na prática, significava planos para derrubar os projetos públicos de construção de moradias, substituindo—os por condomínios. Ouvindo aquela conversa sobre “novos começos” e “terrenos limpos” era quase possível esquecer o vapor tóxico produzido por entulho, fluidos químicos e dejetos humanos a poucas milhas dali, ao longo da estrada.

Dentro do abrigo, Jamar não conseguia pensar em outra coisa: “Eu realmente não vejo isso como uma limpeza da cidade. O que eu vejo é que muita gente acabou morrendo na parte alta da cidade. Gente que não deveria ter morrido.”

Ele falava baixinho, mas um homem mais velho que estava na nossa frente na fila escutou e bradou: “O que há de errado com essa gente de Baton Rouge? Isso não é uma oportunidade. Isso é uma tragédia desgraçada. Eles são cegos?”

Uma mãe com duas crianças se manifestou: “Não, eles não são cegos, eles são maus. Eles enxergam muito bem.”

Entre os que vislumbraram uma oportunidade nas inundações de Nova Orleans estava Milton Friedman, grande guru do movimento pelo capitalismo sem milhões e o homem a quem também foi creditada a autoria do livro-texto para a hipermóvel economia global contemporânea. Aos 93 anos de idade e com a saúde debilitada, “Tio Miltie”, como era conhecido por seus seguidores, ainda assim encontrou forças para escrever um editorial no Wall Street Journal três meses depois que os diques estouraram. “A maior parte das escolas de Nova Orleans está em ruínas”, Friedman observou, “assim como os lares das crianças que estudavam ali. As crianças agora estão espalhadas por todo o país. Isso é uma tragédia. É também uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional”.

A ideia radical de Friedman sustentava que, em vez de gastar uma parte dos bilhões de dólares do dinheiro da reconstrução refazendo e melhorando o sistema escolar público preexistente em Nova Orleans, o governo deveria fornecer vouchers para as famílias, os quais elas poderiam gastar nas instituições privadas, muitas com fins lucrativos, que seriam subsidiadas pelo Estado. Tornara-se crucial, como Friedman escreveu, que essa mudança fundamental não fosse apenas uma solução emergencial, mas se convertesse numa “reforma permanente”.

Uma rede de associações de pensamento direitista fechou com a proposta de Friedman e aportou em Nova Orleans após a tempestade. A administração de George W. Bush sustentou seus planos com dez milhões de dólares para converter as escolas da cidade em “escolas licenciadas”, instituições fundadas pelo poder público e dirigidas por entidades privadas, de acordo com suas próprias regras. As escolas licenciadas estão causando uma polarização profunda nos Estados Unidos, e especialmente em Nova Orleans, onde são vistas por muitos pais afro—americanos como um meio de reverter os ganhos do movimento pelos direitos civis, que garantiram a todas as crianças o mesmo padrão de educação. Para Milton Friedman, contudo, o conceito integral de um sistema educacional administrado pelo Estado cheirava a socialismo. De seu ponto de vista, as únicas funções do Estado seriam “proteger a nossa liberdade, tanto contra os inimigos externos quanto contra os nossos próprios concidadãos: preservar a lei e a ordem, reforçar os contratos privados, fomentar os mercados competitivos”. Em outras palavras, suprir as necessidades dos policiais e dos soldados — qualquer outra coisa, inclusive a garantia de uma educação livre, seria considerada uma interferência injusta no mercado.

Em gritante contraste com a lentidão em que os diques eram consertados e a rede elétrica reparada, o leilão do sistema educacional de Nova Orleans foi realizado com precisão e rapidez militares. Dentro de 19 meses, e com a maioria dos habitantes mais pobres ainda exilados, o sistema de escolas públicas de Nova Orleans tinha sido completamente substituído por escolas licenciadas, sob administração privada. Antes do furacão Katrina, o conselho de educação administrava 123 escolas públicas; agora, cuidava de apenas quatro. Antes daquela tempestade, havia somente sete escolas licenciadas na cidade; agora, existiam 31. Os professores de Nova Orleans costumavam ser representados por um sindicato bastante forte; agora, os acordos sindicais tinham sido rasgados, e seus 4.700 membros tinham sido todos demitidos. Alguns dos professores mais jovens foram readmitidos pelas escolas licenciadas, com salários reduzidos; a maioria foi posta na rua.

Nova Orleans se tornara, de acordo com o New York Times,“o laboratório mais importante do país para ampliar o uso das escolas licenciadas”, enquanto o American Enterprise Institute, uma entidade afiliada ao pensamento de Friedman, manifestava seu entusiasmo porque “o Katrina havia realizado em um dia aquilo que os reformadores educacionais da Louisiana vinham tentando fazer durante anos, sem sucesso”. Os professores da rede pública, por sua vez, observando que o dinheiro destinado às vítimas da enchente estava sendo desviado para erradicar o sistema público e substituí-lo pela privatização, chamavam o plano de Friedman de “apropriação do terreno educacional”."

Eu chamo esses ataques orquestrados à esfera pública, ocorridos no auge de acontecimentos catastróficos, e combinados ao fato de que os desastres são tratados como estimulantes oportunidades de mercado, de “capitalismo de desastre”.

O editorial de Friedman sobre Nova Orleans acabou se tornando a sua última peça pública de recomendação política; ele morreu menos de um ano depois, em 16 de novembro de 2006, aos 94 anos de idade. Privatizar o sistema educacional de uma cidade norte-americana de médio porte pode parecer uma preocupação modesta para o homem que foi considerado o economista mais influente do último meio século, alguém que contou, entre seus discípulos, com diversos presidentes dos Estados Unidos, primeiros-ministros britânicos, oligarcas russos, ministros da Fazenda poloneses, ditadores do Terceiro Mundo, secretários do Partido Comunista Chinês, diretores do Fundo Monetário Internacional, além dos três últimos presidentes do Banco Central norte-americano. Apesar disso, a sua determinação de aproveitar a crise de Nova Orleans para fomentar uma versão fundamentalista do capitalismo era também um adeus curiosamente adequado ao professor baixinho e de energia ilimitada, que, no seu apogeu, se descreveu como “um pastor fora de moda pregando o sermão dominical”.

Por mais de três décadas, Friedman e seus poderosos seguidores se dedicaram a aprimorar essa mesma estratégia: esperar uma grave crise, vender partes do Estado para investidores privados enquanto os cidadãos ainda se recuperavam do choque, e depois transformar as “reformas” em mudanças permanentes.

Num de seus mais influentes ensaios, Friedman elaborou em termos teóricos a tática nuclear do capitalismo contemporâneo, que eu aqui denomino de doutrina do choque. Ele observou que “somente uma crise — real ou pressentida — produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável”. Algumas pessoas costumam estocar alimentos enlatados e água para enfrentar grandes desastres; os seguidores de Friedman estocam ideias em defesa do livre mercado. Tão logo uma crise se instalava, o professor da Universidade de Chicago defendia que era essencial agir rapidamente, impondo mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar à “tirania do status quo”. Ele calculava que “uma nova administração tem de seis a nove meses para realizar as principais mudanças; caso não agarre a oportunidade para agir de modo decisivo durante esse período, não terá outra chance igual. Como uma variação das advertências de Maquiavel, no sentido de que os “sofrimentos” devem ser infligidos “todos de uma só vez”, este foi um dos legados estratégicos mais duradouros de Friedman.



(A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre; tradução Vania Cury)



(Ilustração: David Bates – Katrina)

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