quarta-feira, 2 de junho de 2021

O ENIGMA DE BAGDÁ, Fernando Báez

 


"Nossa memória já não existe. O berço da civilização, da escrita e das leis foi queimado. Só restam cinzas." Escutei esse comentário de um professor de história medieval em Bagdá, detido poucos dias depois por pertencer ao partido Baath. Quando o disse, abandonava a moderna estrutura da Universidade, de onde saquearam, sem exceção, os livros da biblioteca, e destruíram salas de aula e laboratórios. Estava sozinho, ao lado da entrada, coberto por uma sombra, e por acaso pensava em voz alta, ou não pensava, mas sua voz também era parte desse extenso, interminável e sucessivo rumor que é às vezes o Oriente Médio. Chorava ao me olhar. Creio que esperava alguém, mas, quem quer que fosse, não veio e, em poucos minutos, vi-o se afastar, sem rumo, andando pela borda de uma enorme cratera aberta, junto ao prédio, por um míssil.

Horas mais tarde, no entanto, um de seus estudantes de história deu sentido à sua frase quando se aproximou e me abordou, com esse ar de autoridade próprio do sofrimento. Vestia uma túnica marrom, sandálias, usava óculos e, apesar da barba aparada, era bastante jovem, talvez uns 20 ou 22 anos, uma excelente idade para se lamentar. Não olhava à frente, nem para os lados, e de fato sequer sei se olhava. Perguntou-me por que o homem destrói tantos livros.

Colocou a questão com calma, prosseguiu com uma citação que não parecia lembrar bem, até que se esgotaram os advérbios e disse que durante séculos o Iraque sofrerá espoliação e destruição cultural. "Você não é especialista?", perguntou-me com ironia.

Chamava-se Emad e, na mão esquerda, segurava o volume gasto de um poeta persa, com um ramo seco de palmeira como marcador de página.

Quanto ao resto, confesso, eu não soube o que dizer e me retirei. Havia discussões nos corredores e quis evitar a polêmica. De qualquer maneira, minha confusão me serviu para revisar algumas ideias, já no quarto do hotel, e o tempo se tornou único espaço, única passagem, estreita e necessária, até inevitável.

Não sei por que me senti tão impotente e por que agora, passados os meses, aquele incidente persiste na minha memória, o que, no fundo, reforça o argumento de que nada entendi e de que todo o esforço de raciocinar diante do horror é inútil e ambíguo. Porém, mesmo assim, penso que deveria tentar esboçar uma justificativa que recupere o valor da pergunta do estudante de Bagdá a partir de minha própria experiência. Esta introdução não pretende nada mais. Nem nada menos.

Basta dizer que quando cheguei a Bagdá, em maio de 2003, conheci uma nova forma, indireta, oblíqua, de destruição cultural. Depois da tomada da cidade pelas tropas americanas, começou um processo de aniquilação por omissão, vacilante e superficial, que transgredia as cláusulas da Convenção de Haia de 1954 e os Protocolos de 1972 e 1999. Os soldados americanos não queimaram os centros intelectuais do Iraque, mas tampouco os protegeram, e essa indiferença deu carta branca aos grupos criminosos. A esse vandalismo profissional se somou outro, mais ingênuo, o das multidões de saqueadores, movidas por uma propaganda que estimulava o ódio aos símbolos do regime de Saddam Hussein. Convém lembrar que museus e bibliotecas se identificavam com a estrutura de poder que existia nessa nação. E quando foram arrasados pelo fogo, o silêncio legitimou a catástrofe. No dia 12 de abril de 2003, o mundo recebeu a notícia do saque ao Museu Arqueológico de Bagdá. Trinta objetos de grande valor desapareceram, mais de 14 mil peças menores foram roubadas e as salas destruídas. Em 14 de abril, um milhão de livros foram queimados na Biblioteca Nacional. O Arquivo Nacional também ardeu, com seus mais de dez milhões de registros do período republicano e otomano, e em dias sucessivos a situação se repetiu com as bibliotecas da Universidade de Bagdá, a biblioteca de Awqaf e dezenas de bibliotecas universitárias em todo o país.

Em Basra, o Museu de História Natural foi incendiado, da mesma forma que a Biblioteca Pública Central, a Biblioteca da Universidade e a Biblioteca Islâmica. Em Mossul, a Biblioteca do Museu foi vítima de especialistas em manuscritos, que selecionaram certos textos e os levaram. Em Tikrit, as bombas atingiram a estrutura do museu e facilitaram os saques, ao provocar a fuga dos guardas de segurança.

Somando-se a essa catástrofe tão inesperada, milhares de sítios arqueológicos se viram em perigo devido à falta de vigilância. O tráfico ilícito e transnacional de peças arqueológicas começou numa escala sem precedentes. Na data atual, apesar do esforço das tropas italianas, nem um só lugar histórico do Iraque está seguro. Bandos armados com AK-47 percorrem lugares como Hatra, Isin, Kulal Jabr, Nínive,

Larsa, Tell el-Dihab, Tell el-Jbeit, Tell el-Zabul, Tell Jokha, Ur, Tell Naml, Umm elAqarib... Depois que passam os helicópteros e as patrulhas, os ladrões retornam, desenterram objetos sem qualquer cuidado e derrubam paredes. Algumas peças são levadas até o Kuwait ou para Damasco e dali são transportadas para Roma, Berlim, Nova York e Londres, onde os colecionadores particulares pagam o que lhes pedem.

Por que ocorre esse "memoricídio" no lugar onde nasceu o livro?

O que encontrei no Iraque me fez recordar a primeira vez que vi um livro destruído. Eu tinha 4 ou 5 anos e vivia numa biblioteca, não porque fosse minha casa ou por bondade de algum parente generoso. A verdade é que meu pai era um advogado honesto, isto é, desempregado, e minha mãe, nascida em Las Palmas de Gran Canária, devia trabalhar o dia todo numa mercearia, o que a obrigava a me deixar na biblioteca pública de São Félix, na Guayana da Venezuela, onde contava com o apoio de sua prima, a jovem secretária do local.

Assim, passava o dia inteiro sob a proteção indiferente dessa moça, entre estantes e dezenas de volumes. Ali descobri o valor da leitura: soube que devia ler porque não podia não ler. Lia porque cada boa leitura me dava motivos mais fortes para continuar lendo. Lia sem me preocupar com manuais, fichários, guias, seleções críticas como as de Harold Bloom, etiquetas de "clássicos", recomendações de fim de semana. Interessavam-me demais os livros porque eram meus únicos amigos. Não sei se então era feliz. Pelo menos sei que quando folheava páginas tão íntimas esquecia a fome e a miséria, o que me salvou do ressentimento ou do medo. Enquanto aprendia a ler, desprezava a solidão tremenda em que me encontrava, hora após hora.

Essa felicidade foi interrompida bruscamente, porque o rio Caroni, um dos afluentes do Orinoco, cresceu sem aviso prévio e inundou a cidade, levando consigo os papéis que constituíam o motivo de minha curiosidade. Acabou com todos os volumes. Dessa forma, fiquei sem refúgio e perdi parte de minha infância na pequena biblioteca, completamente arrasada pelas águas escuras. Às vezes, nas noites seguintes, via em sonhos como afundava A ilha do tesouro, de Stevenson, e flutuava o exemplar de alguma peça de Shakespeare.

Nunca me recuperei dessa terrível experiência. Estranhamente, não foi a única. Aos 17 anos presenciei como meus companheiros de classe no secundário, ao concluir o curso, queimaram seus livros didáticos. Frenéticos, não houve maneira de dissuadi-los e minha tentativa de apagar o fogo foi objeto de zombaria. Aos 19, quando me tornei vendedor de enciclopédias, o pesadelo se repetiu porque um incêndio destruiu a livraria do velho que eu costumava visitar. Ainda conservo intacta a imagem do livreiro, com as mãos queimadas, os olhos fechados e a cara descomposta. Em 1999 visitei, com uma equipe de trabalho, Sarajevo e vi Vijecnica em ruínas. Ali conheci uma bela poetisa, cujo nome devo ignorar, que me disse: "Cada livro destruído é um passaporte para o inferno." No mesmo ano presenciei como um aluvião destruiu as bibliotecas do litoral venezuelano. Em 2000 percorri várias cidades da Colômbia cujas bibliotecas foram destruídas pela guerra civil que assola o país...

Consciente ou inconscientemente, o tema chegou a me obcecar e, um belo dia, me dei conta de que preparava um livro em que narrava esses acontecimentos. Em 2001, não sem a habitual surpresa, recebi uma pesada caixa que veio a ser a pedra fundamental de minha pesquisa. O carteiro, depois de me estender o recibo de entrega, informou-me que procedia de Caracas. Do lado de fora tinha um envelope com um papel, conciso e com assinatura ilegível, onde se insinuava que se tratava de livros, os únicos bens de meu avô Domingo, que, ao morrer, legou-os a mim em seu testamento, mas também explicava que foram conservados por um tio que acabara de morrer. O incrível é que eu jamais conheci meu avô paterno, um prestigioso sapateiro, e as referências que tinha dele eram apenas os relatos simples de minha família.

Na caixa, manchada de óleo e cinzas, contei uns quarenta volumes. Passei adiante alguns que não me atraíam, mas fiquei com Os inimigos dos livros (1888), de William Blades, que continha uma exposição amena sobre as causas da destruição de textos.

Ainda comovido, e convencido de que era um sinal, fui visitar meu pai. Aposentara-se, vivia com minha mãe, e sofria do mal de Parkinson. Falei-lhe de minha estranha herança. Como de costume, não mostrou qualquer emoção. Ao contrário, disse-me que meu avô costumava conversar com ele sobre a biblioteca de Alexandria, seu enigma histórico favorito. Quando eu já saía, abraçou-me. Senti que esse gesto era definitivo.

Desde que tenho memória, senti horror pela destruição de livros. Notei que palavras como "Alexandria", "Hipátia" (mulher que contribuiu no século III para o desenvolvimento da matemática e que foi assassinada por se negar a se converter ao cristianismo) ou "censura" tendem a despertar meu temor. A pergunta do jovem da Universidade de Bagdá me serviu para entender que devia apressar a conclusão deste escrito e mostrar ao mundo uma de suas maiores catástrofes culturais. Há 55 séculos se destroem livros, e mal se conhecem as razões. Há centenas de narrações históricas sobre a origem do livro e das bibliotecas, mas não existe uma única história sobre sua destruição. Não é uma ausência suspeita?

Em busca de uma teoria sobre a destruição de livros, descobri, por acaso, que são abundantes os mitos1 que relatam cataclismos cósmicos para explicar a origem ou anunciar o fim do mundo. Observei que todas as civilizações entendem sua origem e seu fim como um mito de destruição, contraposto ao da criação, num modelo cujo eixo é o eterno retorno. A apocatástase (restauração) tem sido um recurso para defender o fim da história e o início da eternidade. Nas mitologias antigas encontramos centenas de narrativas em que se descreve como a água, o fogo ou algum outro elemento purificou a maldade humana ou a purificará num futuro adiado constantemente.

Portanto, os períodos de destruição e criação seriam as duas únicas alternativas do universo. Essa crença sempre esteve presente nas concepções hebraicas, iranianas, greco-latinas e centro-americanas. No masdeísmo e no zervanismo o fim do universo tem data marcada. Entre os astecas, os deuses se sacrificaram para oferecer sangue e coração ao Sol, e esse ritual se manteve graças à guerra, que condicionava os homens a repetir perpetuamente esse momento. A ragnarök germânica, ou grande conflagração, sintetizou os mitos orientais e autóctones como fonte de consolo. Os oráculos sibilinos anunciavam constantemente o fim de Roma e o nascimento de um mundo novo.

O cristianismo recuperou esse mito e acrescentou ao livro do Gênesis, do Antigo Testamento, o Apocalipse no Novo Testamento. O apocalipse seria um cataclismo capaz de revelar a verdade das coisas e resgatar a pureza perdida. De fato, a palavra grega apocalipsis se traduz como "destruição", mas também como "revelação". Há apocalipse onde há revelação. A mensagem final, no entanto, viria a ser a mensagem de um novo tempo.

Além de ter caráter cosmogônico e escatológico, o mito da destruição se incorporou à essência dos deuses, que, ao mesmo tempo, deviam ser criadores e devastadores. Também se considerou o instrumento de destruição como sendo sagrado. O fogo era um deus. A água era um deus. Os cretenses adoravam o touro porque atribuíam à sua cólera os terremotos e frequentes tremores da ilha de Creta. Nergal, o deus sumério da destruição, era descrito como um jovem investido do poder da tempestade. A espada era atributo divino, com nome próprio.

Nesse mesmo sentido, conhecer o mito de cada elemento destrutivo proporcionava a salvação. No Kalevala, por exemplo, só se pôde ajudar o ancião Väinämöinen, gravemente ferido, quando a origem sagrada do ferro foi lembrada e sua história declamada. Na maior parte das vezes um homem destruidor era visto como iluminado, deus ou demônio em potência, capaz de curar e de saber tudo. Os berserkires, por exemplo, desencadeavam sua fúria para se integrar aos modelos arquetípicos da fúria sagrada dos deuses. O bom rei sempre era um destruidor que repetia as ações dos deuses.

Essa inquestionável sobrevivência de mitos de aniquilação na morfologia religiosa e mitológica contém, no meu entender, a chave para introduzir o leitor nas minhas conjeturas. Essencialmente me atreveria a dizer que esses arquétipos de extermínio refletem antes de tudo uma convicção em torno da natureza mais visível e dilacerante do homem. Os mitos identificaram o cenário a partir da crença na semelhança entre o que sucede numa ordem cósmica e na vida cotidiana, que supõe um modelo de patrocínio ritual que consolida o esquema da conduta coletiva ou individual. O macrocosmo e o microcosmo se justapõem assim e se relacionam com o plexo da imanência em seu sentido mais puro. Viver em uma época racionalista não impediu que as premissas do pensamento e da ciência sejam outra coisa que mitos disfarçados.

Os que atribuem a causa da destrutividade a um instinto não estão muito longe do homem primitivo que a atribuía a um demônio ou a um elemento da natureza. A localização desse instinto tem estado vinculada à hipótese neurológica mais recente: ou no hipotálamo do cérebro, ou no sistema límbico, ou no lóbulo pré-frontal. Parece, portanto, inegável que a violência humana se manifesta por expectativas sociais: na era da visão teológica, os deuses nos possuíam, e na era da visão atômica somos determinados por unidades mínimas cuja estrutura genética impõe uma herança de reação e luta. Se há algo claro nessa histeria de extrapolação é que a teoria do instinto se inscreve num mito de libertação característico do homem: seu intento de se livrar da responsabilidade direta sobre sua atividade destrutiva.

À questão de que se há nos mitos antigos uma razão que explique a capacidade de destruição humana, devo oferecer uma resposta positiva, afastada do campo do reducionismo ideológico ou cientificista. O mito faz do humano e do universal uma exigência prática associada à aspiração de religar o sagrado e o atual. Visto assim, passado, presente e futuro se articulam numa cronologia transparente e imediata. O mito, nesse particular, pressupõe a dinâmica de expectativas em pleno exercício de fundação, normatividade e conservação. O relato apocalíptico projeta a situação e a angústia humana: em cada um, a origem e o fim interagem em inevitáveis processos de criação e dissolução.

Ao destruir, o homem reivindica o ritual de permanência, purificação e consagração; ao destruir, atualiza uma conduta movida a partir do mais profundo de sua personalidade, em busca de restituir um arquétipo de equilíbrio, poder ou transcendência. Ao mobilizar um sistema de disposição biológica ou social, a reafirmação tem um único objetivo: a continuidade. O ritual destrutivo, como o ritual construtivo aplicado à construção de templos, casas ou de qualquer obra, fixa padrões para devolver o homem à comunidade, ao amparo ou à vertigem da pureza.

À medida que aumentaram os riscos à preservação do homem, ou pelo incremento na produção de representações que deslocaram o sentido natural do homem, ou pela aparição de tendências demográficas descontroladas ou pelo fechamento de espaços de ação, foi maior a afinidade mítica com a restauração de uma ordem pela eliminação da ameaça.

A autonomia convergiu para o mito da destruição e transferiu conteúdos para estruturas psíquicas cujo desejo mais obscuro e arcaico consistia numa epifania em torno de um centro que é a morte. Destruir é assumir o ato simbólico da morte a partir da negação daquilo que é representado.



(História universal da destruição dos livros – das tábuas sumérias à guerra do Iraque; tradução de Léo Schalafman)


(Ilustração: Cecelia Maclellan - Anthony Horden's fire d. 1957)


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