domingo, 20 de junho de 2021

PÔR TERRA NO MEIO, ENTRE MIM E MINHA MÃE, de Camilo José Cela

 


 

Ia já para dois meses que nos tínhamos casado, quando observei que minha mãe continuava com as mesmas manhas que antes de eu ter estado preso. Fazia-me ferver o sangue com os seus gestos sempre ásperos e desabridos, com a sua conversa cortante e sempre cheia de intenções, com o tom de voz com que costumava falar-me, em falsete, e tão fingido como ela. À minha mulher, ainda que transigisse com ela — não tinha outro remédio —, não podia ver nem pintada e dissimulava tão mal a sua má vontade que Esperança, um dia em que se sentiu farta, pôs-me a questão de tal maneira que não vi outro caminho senão pôr terra no meio. "Pôr terra no meio" se diz quando duas pessoas se separam para duas localidades distantes, mas, vistas bem as coisas, também se pode dizer quando entre o chão que um pisa e outro dorme há vinte pés de altura.

Dei muitas voltas na cabeça com a ideia de emigrar; pensei na Corunha, em Madri ou em mais perto, na capital da província, mas o caso é que não sei se por covardia, se por falta de decisão — fui adiando a coisa, adiando, até que, quando resolvi partir sem nada, a não ser comigo mesmo e as minhas recordações, quis pôr terra no meio... A terra que não foi suficientemente grande para afugentar a minha culpa... A terra que não teve largura nem comprimento suficientes para desaparecer perante o clamor da minha própria consciência... Queria pôr terra entre mim e a minha sombra, entre mim e o meu nome e as minhas recordações...

Há momentos em que mais vale uma pessoa calar-se como um morto, desaparecer de repente como que tragado pela terra, desfazer-se no ar como uma baforada de fumo... Momentos que não se conseguem, mas que se chegássemos a consegui-los nos transformariam em anjos, evitariam que continuássemos ligados ao crime e ao pecado e nos libertariam deste lastro de carne contaminada, da qual, posso assegurar-lhe, não voltaríamos a recordar-nos — tal horror lhe ganhamos — a não ser que alguém se preocupe em nos atirar com as suas escórias para nos ferir o olfato da alma... Nada fede tanto e tão mal como a lepra que o passado deixa na consciência, como a dor de não sair do mal, deixando apodrecer este rosário de esperanças mortas que é a nossa vida.

A ideia da morte chega sempre com passos de lobo, com um andar de cobra, como os piores pensamentos. As ideias que nos transtornam nunca chegam de repente; o que é repentino arrasta-nos por uns momentos, mas deixa-nos, quando se vai, largos anos de vida. Os pensamentos que nos enlouquecem com a pior das loucuras, a da tristeza, chegam sempre aos poucos e sem darmos por isso, como a tísica invade os peitos e a neve os campos. Avança, fatal, incansável, mas lenta, vagarosa, regular como o pulso. Hoje não a notamos; talvez nem mesmo amanhã, nem depois de amanhã nem durante um mês inteiro. Mas passa esse mês e começamos a sentir a comida amarga e dolorosa toda a recordação; já estamos contaminados. Com o decorrer dos dias e das noites vamos ficando insociáveis, solitários; as ideias fervem-nos na cabeça, as ideias que vão fazer com que nos cortem a cabeça, talvez para que não continue tão atrozmente a trabalhar. Podemos mesmo passar assim semanas inteiras; os que nos rodeiam já se acostumaram à nossa secura e já nem sequer estranham a nossa estranha maneira de ser. Mas um dia o mal cresce, como as árvores, e torna-se imenso, e já não saudamos as pessoas; e voltam a sentir-se como seres esquisitos ou enamorados. Vamos enfraquecendo, enfraquecendo e a nossa barba hirsuta é cada vez mais rala. Começamos a sentir um ódio que nos mata; já não aguentamos que nos olhem; dói-nos a consciência, mas — não importa! — antes assim. Ardem-nos os olhos que se enchem de uma água venenosa quando olhamos fixamente. O inimigo vê a nossa atenção, mas está confiado; o instinto não mente. A desgraça é alegre acolhedora e sentimos prazer em deixar arrastar os nossos sentimentos. Quando fugimos como as corças, quando o ódio sobressalta os nossos sonhos, já estamos minados pelo mal; já não há solução, não há arranjo possível. Começamos a cair, a cair vertiginosamente para não nos tornarmos a levantar. Talvez para nos levantarmos um pouco na última hora, antes de a cabeça nos cair no inferno. É uma má coisa.

Minha mãe sentia uma insistente satisfação em tentar-me a mim, em quem o mal ia crescendo como as moscas quando pressentem o cheiro dos mortos. A bílis que traguei envenenou-me o coração e tão maus pensamentos cheguei então a albergar que acabei por me assustar com a minha própria coragem. Nem queria vê-la; os dias passavam iguais, com a mesma dor a rasgar-me as entranhas, com os mesmos presságios de tormenta a enevoarem-me a vista.

No dia em que decidi fazer uso da navalha, estava já tão oprimido, tão certo de que o mal só podia resolver-se com sangue, que não me aterrorizou, nem um momento, a ideia de matar minha mãe. Era uma coisa fatal que acabaria por vir e veio, que tinha de cumprir e que, mesmo que o quisesse, não podia evitar, porque me parecia impossível mudar de opinião, voltar atrás, evitar aquilo por que daria agora uma das minhas mãos para que não tivesse acontecido, mas que naquele momento me dava um estranho gozo em provocar com o mesmo cálculo e a mesma meditação com que um lavrador pensa nas suas searas.

Tudo estava bem preparado; passei muitas noites a pensar no mesmo para me abalançar, para ganhar forças; afiei a navalha, aquela navalha de fino gume que parecia uma folha de milho, com o seu cabo de osso. Só faltava marcar a data e, em seguida, não titubear, não voltar atrás, chegar ao fim custasse o que custasse, manter a calma. e depois ferir, ferir sem pena, rapidamente, e fugir, fugir para muito longe, para a Corunha, fugir para onde ninguém o soubesse, para onde me permitissem viver em paz e esperar que todos me esquecessem, que o esquecimento me deixasse voltar para de novo começar a viver. Não me pesaria a consciência; não havia motivos para isso. A consciência só pesa quando se pratica uma injustiça: bater numa criança, matar uma pomba. Mas daqueles atos a que nos conduz o ódio, para os quais vamos como que adormecidos por uma ideia que nos domina, não temos de nos arrepender.

Foi no dia 12 de fevereiro de 1922. Naquele ano, o dia 12 de Fevereiro calhou a uma sexta-feira. O tempo estava claro, como acontece geralmente naquelas paragens; o Sol inundava tudo de luz e pareceu-me ter visto naquele dia mais crianças a brincar na praça. Pensei e repensei no assunto, mas procurei vencer-me e consegui; voltar atrás teria sido impossível, teria sido fatal para mim, ter-me-ia conduzido à morte ou, quem sabe?, talvez ao suicídio. Acabaria por me deitar ao Guadiana ou para debaixo das rodas do comboio. Não, não era possível recuar, tinha de continuar para a frente, sempre para a frente, até o fim. Era já uma questão de amor-próprio.

Minha mulher deve ter notado qualquer coisa em mim.

— Que vais fazer?

— Nada; por quê?

— Não sei; parece que te acho estranho.

— Besteira!

Beijei-a para tranquilizá-la; foi o último beijo que lhe dei. Como eu estava longe de saber disso! Se soubesse talvez me assustasse.

— Por que me beijas?

Afastou-se de mim de repente.

— Por que não beijaria?

As suas palavras muito me fizeram pensar. Era como se ela soubesse tudo o que ia acontecer.

O sol se pôs no mesmo lugar de todos os dias. Veio a noite. Ceamos. Elas foram deitar-se. Eu fiquei, como sempre, gato do borralho. Já havia algum tempo que não ia à taberna do Martinete.

Tinha chegado a ocasião, a ocasião que eu esperara durante tanto tempo. Tinha de fazer das tripas coração, acabar com aquilo o mais depressa possível. A noite é curta e era durante a noite que tudo tinha de acabar; ao amanhecer, eu já deveria estar a muitas léguas da povoação.

Fiquei à escuta durante algum tempo. Não se ouvia nada. Fui ao quarto de minha mulher; estava a dormir e deixei-a continuar o seu sono. Minha mãe dormia também com certeza. Voltei à cozinha; descalcei-me; as pedras frias do chão cravaram-se nos meus pés; abri a navalha que brilhou à chama da lareira como um sol.

Ela ali estava, deitada sob os cobertores, com a cara enterrada na almofada. Só me restava lançar-me sobre o seu corpo e anavalhá-la. Nem se mexeria; não lhe daria tempo para soltar um só grito. Estava-me já ao alcance da mão e ferrada no sono, alheia a tudo — meu Deus! como os assassinados andam sempre distantes da sua sorte! A tudo o que se ia passar. Queria decidir-me, mas não o conseguia; levantava o braço, mas tornava a deixá-lo cair.

Pensei em fechar os olhos e ferir, mas não podia ser; ferir assim às cegas é o mesmo que não ferir, é expormo-nos a acertar no vácuo. Tinha de conservar a serenidade, recuperar a serenidade que me parecia começar a perder perante o corpo de minha mãe. O tempo ia passando e eu continuava ali, sem me mexer, parado como uma estátua, sem me decidir a acabar com aquilo. Não me atrevia; depois, sempre era minha mãe, a mulher que me tinha posto nesta vida e a quem só por isso eu devia perdoar. Não; não podia perdoar-lhe só por me ter dado a vida, por me ter parido. Com isso não me tinha feito nenhum favor, absolutamente nenhum. Não havia tempo a perder. Tinha de me decidir de vez. Houve momentos em que cheguei a estar de pé, como que adormecido, com a navalha na mão, como se fosse a imagem do crime. Procurava vencer-me, recuperar as forças, concentrá-las. Queimava-me o desejo de acabar depressa, rapidamente, e sair a correr, até cair rendido em qualquer sítio. Estava a esgotar-me; havia já uma hora que ali estava a seu lado, como que a guardá-la, como que velando o seu sono. E tinha ido ali para a matar, para a eliminar, para lhe tirar a vida à navalhada.

Talvez uma outra hora se tivesse passado. Não; definitivamente, não. Não podia; era qualquer coisa superior às minhas forças; qualquer coisa que me revolvia o sangue. Pensei em fugir. Mas se calhar ia fazer barulho ao sair; ela acordaria e reconhecer-me-ia. Mas também não podia fugir; era o caminho da ruína. Não havia outra solução senão atacar, atacar sem piedade, depressa, para acabar o mais rapidamente possível. Era como se estivesse metido num lodaçal em que me afundava, pouco a pouco, sem qualquer remédio, sem qualquer saída. O lodo chegava-me ao pescoço. Ia morrer afogado como um gato. Era-me completamente impossível matá-la, estava como que paralisado.

Virei-me para me ir embora. O chão rangia. Minha mãe revolveu-se na cama.

— Quem está aí?

Então sim, já não havia outra solução. Lancei-me sobre ela e subjuguei-a. Forcejou, tentou escapar-se. Houve um momento em que me teve agarrado o pescoço. Gritava que nem uma condenada. Lutamos; foi a luta mais horrível que Vossa Senhoria pode imaginar. Rugíamos como feras, a baba escorria-nos da boca. Numa das voltas que dei vi minha mulher; estava branca como uma morta, parada junto da porta sem se atrever a entrar. Trazia uma candeia na mão, uma candeia cuja luz me deixou ver a cara de minha mãe, pálida como o hábito de um nazareno. Continuávamos a lutar; fiquei com a roupa rasgada e o peito descoberto. A desgraçada tinha mais força que um demônio. Tive de fazer uso de todas as minhas energias de homem para a subjugar. Quinze vezes a subjugara, quinze vezes me escaparia. Arranhava-me, mordia-me, ferrava-me pontapés e socos. Num dado momento, deu-me uma dentada num peito — o esquerdo — e arrancou-me o bico. Foi nesse momento que pude enterrar-lhe a navalha na garganta.

O sangue corria em golfadas e salpicava meu rosto. Vinha quente como um ventre e tinha o mesmo sabor que o sangue dos cordeiros.

Larguei-a e fugi. Choquei-me com minha mulher; apaguei-lhe a candeia. Alcancei o campo e corri, corri sem descanso, horas sem fim. O campo estava fresco e dava-me uma sensação de alívio que me inundava as veias. Podia respirar. 



(A Família de Pascual Duarte; tradução de Tomaz Ribas)



(Ilustração: Francisco de Goya - monk_woman)


Nenhum comentário:

Postar um comentário