quarta-feira, 23 de junho de 2021

NO GRANDE HOTEL DO PORTO, de Eucanaã Ferraz

 




Gaivotas são invenções de Da Vinci, crianças

loucas, tesouras loucas, cães aéreos



de tão lépidos. Folhas em branco: a língua do vento.

Mas por que àquela hora tal agitação de asas?



Se desejavam algo, o que fosse, nada lhes poderia

dar ou emprestar, Imperador de uma tal pobreza,



a fronte cingida apenas pela febre. Era preciso

dizer àquelas aves que não havia água, que



talvez e sempre só tenha havido solidão

e mágoa em torno dele e dentro,



búzio vazio e mudo, poço exangue,

corredor sem portas, poço horizontal,



corredor para o fundo. Lembra: o médico

preceituara repouso, purgantes, filtros, infusões



e sua voz, salina, à maneira de cristais caía

dos olhos, não vinha da boca, e se acumulava



em cacos verdes na bacia redonda e grossa

dos óculos. Tudo inútil. Tudo nada.



Por que gaivotas àquela hora? Verso que se

lhes assemelhasse era um espalhamento de sílabas



atordoadas, felizes de não terem sentido, puro alarde

do ritmo, o mais alto, sobre o chão. Mas



nunca soubera o que fosse isso. E ali, a cortar o céu

noturno do Porto, a voz delas era uma foz estridente,



a mais terrível canção de exílio. Não deveria haver

jamais gaivotas sobre o teto de nenhum hotel,



proibidos tais gritos brancos de espuma, pois

a noite tem de ser a noite, sem pontes, hermética.



No entanto, lá estavam elas, violentas,

rodopiando como lâminas inglesas, azuis.



Era preciso considerar: um hotel ensina-nos mais

que todas as filosofias: não ficar, não ter, não ser.



E na massa escura de tudo, imaginou com a ironia

que lhe restava: um dia, a pompa de uma placa



(a Europa e seus ouropéis) à porta de entrada:

“Por ocasião da última visita realizada à Cidade



Invicta em dezembro de 1889, os Imperadores do Brasil

Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina estiveram



hospedados neste hotel.” Não dirão que já não eram

senão, mal e mal, um homem, uma mulher.



Calarão que a Imperatriz – que já não era – deixara,

ali, de ser hóspede de tudo. Aqui está a chave!



Sobre o telhado, a cama, a mulher morta,

a insônia, elas, as gaivotas, ensinariam



(se ensinassem algo) àquele homem,

àquele miserável, mais que toda ciência



e toda literatura: nadar, andar a vau, elevar-se

alegre, planar, fazer de tudo campo aberto



de abrir-se. A régua que carregam

nunca cega.



(Rua do mundo)





(Ilustração: David Witbeck - Gaivotas da manhã)

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