segunda-feira, 3 de maio de 2021

BRASA NOS LÁBIOS, de Sérgio Roveri


O senhor tem cinco minutos. A voz da médica chegou tão clara e impessoal aos ouvidos dele que, na hora, ele imaginou quantas vezes ela teria repetido as mesmas palavras nas últimas semanas, nos últimos meses. Ele olhou para o rosto da médica, onde alguns traços de juventude resistiam à opressão da máscara e da touca, e tentou argumentar que cinco minutos não bastavam para contemplar quase 50 anos de uma convivência interrompida agora por... por essa doença, por esse vidro que me separa dela, por essa ordem que a senhora acabou de me dar, por aquelas máquinas ali, ao lado da cama dela, que mal me permitem ver o rosto dela.


Cinco minutos é tão pouco, doutora. Ela precisa sentir que eu estou aqui e não vai ser fácil por causa do barulho de todos esses aparelhos. E quando ela finalmente sentir, sentir que eu estou aqui, eu não posso ir embora logo em seguida. Ela vai pensar que eu fiquei bravo com alguma coisa, eu sei que ela não consegue dizer nada, mas quando se vive 50 anos ao lado de uma pessoa, os pensamentos assumem o lugar das palavras, falamos cada vez menos e entendemos cada vez mais.

Mas a senhora é jovem demais para compreender isso, é jovem demais para saber que na nossa idade o tempo se mede a peso de ouro e cinco minutos não passam de uma pepita que nossos olhos não conseguem sequer enxergar. Eu preciso de mais tempo, ele estava prestes a implorar, quando a voz da médica o despertou dos devaneios: cinco minutos, isso é tudo o que eu posso lhe dar. Todos querem mais tempo, não é só o senhor. Mas nós não podemos dar, o senhor entende? Nós não podemos perder o controle. Ele sabia que ela cumpria ordens, ordens com as quais talvez nem concordasse. Os olhos de um verde esmaecido da médica eram a prova disso. Bastava prestar atenção no que eles tentavam dizer: entre e seja feliz ao lado dela enquanto isso ainda é possível, porque eu estou muito, muito cansada.

Ele aproximou o rosto do vidro e a mulher que ele viu, ou que se esforçou para ver, não era a mulher que estava ali de fato, pálida e distante, travando uma batalha da qual ele podia participar no máximo como um espectador desinformado. A mulher que no fundo ele ansiava ver era aquela mulher que estava ali, claro, já que nunca existiu outra de tamanha importância na vida dele, mas não ali naquele quarto, mas não ali tão indiferente ao afeto que ele só conseguia demostrar pelo toque amedrontado dos seus dedos no vidro. A mulher que ele por fim viu foi uma jovem que, 50 anos atrás, quase uma outra vida, se atreveu a perguntar se ele não gostaria de dançar. A iniciativa deveria ter partido dele, mas, desde aquele primeiro sim, desde aquela primeira dança, quantas vezes a iniciativa não havia partido dela? Quantas vezes ele não dissera sim, seguro de que as pernas dela saberiam conduzir os débeis passos dele?

Com o rosto colado ao vidro, ele voltou a dançar com aquela mulher e compreendeu que os anos não tinham sido bastantes para enferrujar suas pernas ou fechar seus ouvidos ao som da orquestra – na verdade uma bandinha do interior, mas quem liga para isso se a melodia ainda chegava límpida e robusta à sua mente? Temeroso de que os cinco minutos chegassem ao fim antes que tivesse a chance de dizer tudo que ensaiara dizer, ele voltou a responder sim para aquela mulher. Sim para a primeira dança e sim para a vida que estava à espera deles. Antes de ir embora, baixou a máscara e, indiferente às pessoas no corredor, deu um demorado beijo no vidro que o separava da mulher.

Era a primeira vez que ele visitava aquela área do hospital, um labirinto gelado feito de corredores cinzentos e portas brancas que nunca se abriam. Ele podia pedir ajuda para sair, mas preferiu arriscar-se sozinho, porque enquanto a mulher não voltasse, para casa e para seu abraço, encontrar a saída, qualquer que fosse ela, era uma missão que agora cabia a ele. E parecia não haver lugar mais propício para começar a executá-la. Depois, ainda pensou: se encontrasse a saída sozinho, teria algo para ensinar aos filhos, que na certa viriam visitá-la em algum momento. Há muito tempo que não tinha a chance de ensinar mais nada a eles.

Quando chegou à rua, comprou um cigarro avulso na primeira banca de jornais que encontrou. Acreditou que um cigarro apenas não quebraria a promessa que ele fez à mulher de nunca mais fumar. Ele precisava encher os pulmões de alguma coisa, ainda que fosse fumaça. Os pulmões da mulher, explicaram a ele no hospital, também estavam cheios e o mínimo que ele podia fazer naquele momento era compartilhar alguma coisa com ela – seus pulmões também cheios. Ao levar o cigarro aos lábios, sentiu que eles conservavam um calor misterioso, que sobrevivera ao contato frio e repulsivo da janela. Voltou para casa certo de que tempo algum apagaria aquela brasa que ele agora carregava nos lábios – e torceu para que a jovem médica, que estudou tanto, um dia também viesse a saber de lábios, brasas e memórias. E que, quando chegasse a vez dela de ser feliz, ela entendesse que o melhor da vida é justamente perder o controle.



(Ilustração: Camille Claudel - a velha Helena)


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