domingo, 9 de maio de 2021

JOSÉ J. VEIGA: A HORA DOS RUMINANTES, UM ROMANCE METAFÓRICO, de André Luiz Alves Caldas Amóra e Tatiana Alves Soares Caldas




E como numa casa cheia de suspiros e recriminações

ninguém pode ser inteiramente feliz

(A hora dos ruminantes, p. 109)



A hora dos ruminantes, romance de José J. Veiga, conta a história de um lugarejo pacato - Manarairema - que é bruscamente submetido à opressão de homens desconhecidos e misteriosos, que se instalam próximos ao lugar.

Alegórico em alguns aspectos e possuindo elementos do realismo fantástico, o romance desenvolve-se através de símbolos, sendo estes um recurso estilístico para denunciar o contexto histórico-político ditatorial. Procuramos, neste trabalho, explorar alguns desses recursos de âmbito semântico e lexical, através das imagens apresentadas.

Segundo Todorov (1970), o fantástico caracteriza-se por uma atitude de hesitação diante de um acontecimento que não apresenta explicações naturais, ocupando, portanto, o tempo da incerteza. Assim que uma resposta é apresentada, sai-se do fantástico e envereda-se pelo estranho ou pelo maravilhoso.

A hora dos ruminantes, portanto, apresenta uma narrativa fantástica no plano da história. Podemos perceber este aspecto fantástico, por exemplo, na invasão dos cachorros e na dos bois. Na primeira, Manarairema entra em pânico, quando centenas de cães tomam conta da cidade, invadindo casas e acuando os habitantes. Em seguida, sem nenhuma explicação, os cachorros deixam o pacato lugar. Porém, o pior ainda estava por vir: uma outra invasão, a dos bois, deixaria a cidade totalmente encurralada. Os ruminantes tirariam a tranquilidade de Manarairema, colocando os moradores como prisioneiros em suas próprias casas e desaparecendo misteriosamente, como os cães, deixando a cidade em paz. Pode-se dizer que este romance tende ao maravilhoso, já que não há explicações para o aparecimento nem para o sumiço dos invasores - os cães e os bois.

Saindo do plano da história, A hora dos ruminantes propõe ainda uma reflexão alegórica, pois J. J. Veiga utiliza-se de símbolos que retratam a censura imposta no Brasil nos tempos ditatoriais. Flávio Kothe, em seu estudo sobre a alegoria, define-a a partir de sua relação com a metáfora:

“[A alegoria é uma] representação concreta de uma ideia abstrata. Exposição de um pensamento sob forma figurada em que se representa algo para indicar outra coisa. Subjacente ao nível manifesto, comporta um outro conteúdo. É uma metáfora continuada, como tropo de pensamento, consistindo na substituição do pensamento em causa por outro, ligando ao primeiro por uma relação de semelhança.“ (KOTHE, 1986: 90)

Dessa forma, portanto, verifica-se a ocorrência simultânea do fantástico e da alegoria, categorias que normalmente excluem uma à outra. Acreditamos, contudo, que não seja esse o caso, uma vez que a alegoria e o fantástico se dão em esferas diferentes n'A hora dos ruminantes. Enquanto o fantástico se estabelece no enunciado, a alegoria é percebida somente na reflexão por parte do leitor.

Selma Calasans Rodrigues, em seu estudo sobre o fantástico, analisa o modo pouco usual com que o tema é explorado pelo escritor brasileiro:

“J. J. Veiga (...) situa seus personagens num espaço rural, mas que acaba por ser um espaço alegórico que quer falar sempre da relação entre opressor e oprimido ou da possibilidade de viver a liberdade apenas no sonho (...). Seu fantástico, que começa leve, se adensa, avizinhando-se do absurdo (...) e, a par das reflexões de caráter existencial, parece ser a alegoria da sociedade brasileira dos anos de ditadura e opressão.” (RODRIGUES, 1988: 65-66)

Além disso, outro aspecto importante no que se refere aos conceitos em questão seja a peculiaridade da realidade brasileira, o que, segundo o próprio J. J. Veiga, descaracterizaria o próprio conceito do fantástico. Nas palavras do autor, o gênero definido por Todorov talvez não funcione na literatura brasileira, uma vez que o fantástico já estaria próximo à nossa realidade:

Esse fantástico precisa ser muito pensado, estudado, porque não é tão fantástico assim. É o que acontece mesmo. (...) Além disso, coisas incríveis como a lepra, erradicada de muitos países, acontecem ainda aqui. O desrespeito pela pessoa exercida pelos poderosos. (...). Fantástica mesmo é a existência de sociedades que ainda toleram isso no mundo de hoje (...).

Nosso trabalho, como dissemos, pretende explorar as questões do âmbito semântico e lexical, através das imagens apresentadas. Tomaremos como base a reflexão alegórica que podemos desenvolver no plano do discurso.

No campo semântico-lexical, muitas são as imagens que remetem ao momento de ditadura [e ao governo Bolsonaro, com a boiada do 'ministro do Meio-Ambiente]. A divisão do romance em partes - correspondentes às três invasões - que se vão intensificando metaforiza a situação que foge ao controle da população. A primeira parte, intitulada A chegada, refere-se à invasão realizada pelos homens da tapera. Significativos são os dois parágrafos iniciais da narrativa, que parecem sintetizar o que virá em seguida:

“A noite chegava cedo em Manarairema. Mal o sol se afundava atrás da serra - quase que de repente, como caindo - já era hora de acender candeeiros, de recolher bezerros, de se enrolar em xales. A friagem até então continuada nos remansos do rio, em fundos de grotas, em porões escuros, ia se espalhando, entrando nas casas, cachorro de nariz suado farejando.

Manarairema, ao cair da noite - anúncios, prenúncios, bulícios. Trazidos pelo vento que bate pique nas esquinas, aqueles infalíveis latidos, choros de criança com dor de ouvido, com medo escuro. Palpites de sapos em conferência, grilos afiando ferros, morcegos costurando a esmo, estendendo panos pretos, enfeitando o largo para alguma festa soturna. Manarairema vai sofrer a noite.” (VEIGA, 2001: 9)

A passagem acima prenuncia o que virá a seguir. A imagem da noite, geralmente tida como negativa, assume contornos ainda mais assustadores pelos vocábulos utilizados para caracterizá-la - friagem, grotas, porões escuros -, ideia intensificada pela informação de que o cair da noite trará sofrimento. Digno de destaque é o início do segundo parágrafo do texto, associando os prenúncios e bulícios à noite. A passagem apresenta ainda referências a um medo escuro, além de panos pretos e morcegos, atribuindo um ar ainda mais macabro à noite de Manarairema, com tudo remetendo ao sombrio, às trevas, com toda a simbologia nelas contida. Ao dizer “Manarairema vai sofrer a noite”, o narrador identifica a noite como agente causador do sofrimento do lugar. A ausência da crase impossibilita que se veja a noite como um adjunto adverbial de tempo, reiterando a ideia de que ela seria a verdadeira expiação do pacato lugarejo.

A narrativa transcorre sem que se saiba de imediato o que de tão aterrador aconteceria no lugar. Entretanto, literalmente da noite para o dia, tudo parece se transformar:

No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. (VEIGA, 2001: 12)

A imagem do acampamento surge com tal rapidez que causa assombro nos habitantes do lugar. Aos poucos, a curiosidade transforma-se em especulação:

“(...) aqueles lá acamparam em linha, duas fileiras, medidas, deixando uma espécie de largo no meio. (...) enquanto os homens andavam ativos carregando volumes, abrindo volumes, se consultando, sem tomar conhecimento da cidade ali perto. Seriam engenheiros? Mineradores? Gente do governo?” (VEIGA, 2001: 13)

Segundo nossa leitura, que vê nas invasões uma alegoria da ditadura militar [e que cai bem ao que estamos vivendo] é expressiva a informação de que estes primeiros invasores comportam-se de uma maneira muito semelhante à dos militares, com acampamentos estrategicamente estruturados. Note-se ainda que, em suas especulações, os moradores desconfiam tratar-se de “gente do governo”, numa sugestão de que uma ocupação militar estaria acontecendo. Significativamente, num indício da opressão que viria, a curiosidade cede lugar ao desejo de agradar aos forasteiros:

“(...) Os comerciantes ficaram de lojas abertas até mais tarde, mas por uma questão de cortesia com os estranhos, caso eles precisassem de alguma coisa - e também pelo bom nome de Manarairema; imagine-se o que os homens não iriam dizer se não pudessem comprar um maço de velas, uma garrafa de querosene.” (...) (VEIGA, 2001: 14)

Verifica-se também a incredulidade por parte dos habitantes, uma incredulidade que já traz consigo uma nostalgia de tempos outros, como se adivinhassem todo o terror por vir:

“(...) À noite, quando iam fechar as janelas para dormir e davam com os olhos com o clarão do acampamento, as pessoas procuram se convencer de que não estavam vendo nada e evocavam aquele trecho de pasto como ele era antes (...). Mais tarde podia haver sonhos com os homens figurando como inimigos, mas eram apenas sonhos, vigorantes somente na escuridão dos quartos, solúveis na claridade do dia.” (VEIGA, 2001: 16)

E, assim como ocorre com vários aspectos ruins, paulatinamente a cidade parece absorver a presença dos invasores, referidos como homens da tapera:

“(...) Manarairema já não se preocupava tanto com os homens, e quando alguém falava neles era como quem se refere a realidades familiares - o calor, doenças, a carestia - o acostumado, o absorvido. (...)” (VEIGA, 2001: 25)

E estes homens - que jamais se apresentaram ou se explicaram à população da cidade, mas que chegaram a fincar um mastro no acampamento, marcando, simbolicamente, a tomada de posse - começam a modificar o cotidiano do lugar, gerando uma conduta tácita por parte dos habitantes:

“Essas visitas foram se repetindo e caíram numa rotina que o povo acabou por aceitar. Mal eles chegavam, os fregueses iam saindo espontâneos, sem esperar que Amâncio os expulsasse. Ninguém se arrepiava, ninguém manobrava para ficar. E mais estranho ainda, ninguém procurava saber que assuntos eram tratados naquelas reuniões à porta fechada, entre cachos de bananas e tranças de cebola. Podia ser que o povo estivesse se cansando daqueles homens e de suas obras intermináveis, obras cujo sentido - se tinham mesmo algum - ninguém alcançava nem queria mais alcançar; e quanto menos se falassem deles, mais tempo e mais cabeça sobravam para o capinar diário.” (VEIGA, 2001: 45)

A população se comporta de forma passiva diante dos invasores e, ainda que contrariados, parecem não ter saída senão obedecer. Um bom exemplo é de Geminiano Dias, que a princípio se opõe à prepotência dos homens, mas em seguida age como se não tivesse escolha, tendo de se conformar com seu fardo. Como uma espécie de Caronte, barqueiro condenado a realizar seu trabalho ad eternum, ele parece escravo de suas atividades, por mais que se sinta aviltado por elas:

“(...) a cabeça baixa, num conformismo inconformado, parece que procurando no chão a justificativa para aquele trabalho absurdo, idiota. (...)” (VEIGA, 2001: 45-46)

Em determinado momento, a imagem desse fardo é reiterada pelo termo prisão, utilizado pelo personagem em conversa com um amigo:

“- O que é que eu faço, meu pai, o que é que eu faço? Como é que vou sair desta prisão? Por que foi que não recuei enquanto era tempo? O que será de mim agora? Não aguento mais! Estou nas últimas! Vejo que vou acabar fazendo uma besteira.” (VEIGA, 2001: 46)

A segunda parte do romance intitula-se O dia dos cachorros e marca a segunda invasão da história. Os cães, longe de representar a fidelidade e a proteção normalmente a eles associadas, surgem como mais uma das pragas que assolam Manarairema:

“(...) O palco estava armado para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.

(...)

Escorraçados da frente, os cachorros surgiam nos quintais quebrando plantas, revolvendo hortas, derrubando cercas, pulando muros, perseguindo galinhas, matando pintos, parando de vez em quando para retirar chumaços de penas da boca com as patas ou pelo processo de esfregar o focinho no chão. Os homens tentavam espantá-los a pedradas, apanhavam uma pedra e ficavam tontos com ela na mão, não sabendo para que lado jogar, os cachorros eram muitos e vinham de todos os lados, nem tomavam conhecimento da gente, pareciam estar à procura de alguma coisa mais importante. Às vezes se ouvia um tiro e um ganido, que o alarido geral abafava.” (VEIGA, 2001: 53-54)

A imagem de cães irreverentes e arrogantes, que parecem ignorar os humanos, aponta o caos que se instaurou na cidade, numa espécie de inversão da ordem que desatina ainda mais os moradores, remetendo à truculência utilizada durante a época ditatorial:

“Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir.” (VEIGA, 2001: 54)

A gente encolhida no escuro referida no texto traduz o contexto de medo e opressão dos anos de chumbo. Nesse mundo-cão em que Manarairema se transformou, o desrespeito dos cães pelos habitantes chega a extremos, como se verifica na passagem a seguir:

“Outros parece que entravam numa casa apenas para descarregar a bexiga; chegavam, farejavam, escolhiam o lugar, às vezes até um par de botinas encostado num canto, e calmamente se aliviavam; ou rodavam, rodavam no meio da sala, o corpo encurvado no meio, as pernas traseiras abertas, espremiam, largavam uns charutinhos ou uma broa; satisfeitos com o resultado, raspavam as partas duas, três vezes e saíam sem olhar para ninguém, os donos da casa que providenciassem a limpeza. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas, consolando-se em pensar que não há mal nenhum que sempre dure.” (VEIGA, 2001: 55)

A inversão de valores observada atinge um ponto tal que os cães começam reverenciados pelos moradores, ainda que isso seja apenas motivado pelo medo:

“(...) De repente ficou parecendo que todo mundo adorava cachorro, quanto mais melhor, e só tinha na vida a preocupação de fazê-los felizes. Se uma criança desavisada apanhava o chicote preparado pelo pai e ameaçava um cachorro mais atrevido, era imediatamente obstada e castigada com o mesmo chicote. A ordem era respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória.” (VEIGA, 2001: 55)

A opressão camuflada em progresso - uma das marcas da ditadura brasileira, presente inclusive em campanhas publicitárias da época - pode ser percebida na narrativa por meio das palavras de Amâncio, homem briguento e temido, mas que, fazendo jus ao nome, amansa-se diante dos homens da tapera:

“(...) Eles vieram trabalhar, trazer progresso. Se o povo não entende, e fica de pé atrás, a culpa é do atraso, que é grande. Mas eles vão trabalhar assim mesmo, vão tocar para a frente de qualquer maneira. Quem não gostar que coma menos.” (VEIGA, 2001: 59)

O povo, espoliado e sofrido, percebe que, na prática, não é mais preciso dever para temer. No diálogo entre personagens, a constatação do desrespeito aos direitos humanos fica evidenciada:

“- (...) Quem não deve não teme.

- Aí que está o seu erro. Você fala como se não tivesse acontecido nada. Direitos? Que direitos?! Quem não deve não teme! Tudo isso já morreu. Hoje em dia não é preciso dever para temer. Por que é que você acha que eu estou aqui pedindo, implorando, me rebaixando? Eu devo alguma coisa? E você já me viu com medo algum dia? Você precisa entender que não estamos mais naquele tempo...” (VEIGA, 2001: 69)

Após a saída dos cães, reinava uma aparente paz. Porém, o pior estaria por vir, e se concretizaria na terceira invasão, denominada O dia dos bois. Ainda mais intimidadora e surpreendente do que a anterior, essa invasão torna-se uma verdadeira ocupação, trazendo impotência ao povo. A falta de privacidade e espaço enclausura os habitantes da cidade, numa dominação não apenas física, mas também psicológica:

“Não se podia mais sair de casa, os bois atravancavam as portas e não davam passagem, não podiam; não tinham para onde se mexer. Quando se abria uma janela não se conseguia mais fechá-la, não havia força que empurrasse para trás aquela massa elástica de chifres, cabeças e pescoços que vinha preencher o espaço.

Frequentemente surgiam brigas, e seus estremecimentos repercutiam longe, derrubavam paredes distantes e causavam novas brigas, até que os empurrões, chifradas, ancadas forçassem uma arrumação temporária. O boi que perdesse o equilíbrio e ajoelhasse nesses embates não conseguia mais se levantar, os outros o pisavam até matar, um de menos que fosse já folgava um pouco o aperto - mas só enquanto os empurrões vindos de longe não restabelecessem a angústia.” (VEIGA, 2001: 120)

Outro aspecto relevante no que se refere à alegoria do momento ditatorial diz respeito à tortura, prática usual de intimidação, neutralização e eficaz na obtenção de informações. Traço mais sombrio do regime ditatorial, a tortura aparece descrita no romance por meio das palavras de Pedrinho, massacrado física e psicologicamente pelos homens da tapera:

“- Eles tomaram ela de mim. Levaram lá para dentro. Eu reagi. Muitos me seguraram. Gritei, xinguei, mordi. Eles me amarraram. Ela ajudou. Nazaré ajudou. Me jogaram numa grota no quintal. Olhe as marcas das cordas. Me davam comida numa gamela no chão. Eu tinha de comer enfiando a cara, como cachorro. Ela ficava perto olhando, de vez em quando empurrava a gamela para longe com o pé, só para me ver me arrastar no chão. Hoje de madrugada manejei soltar as mãos, desamarrei as peias e fugi.” (VEIGA, 2001: 128)

Além das táticas de tortura encontradas no texto, expressiva é a indignação do personagem ao relatar que a sua própria namorada os tinha auxiliado. Nazaré simboliza todos aqueles que traíram seus companheiros durante a repressão.

E, se é de repressão que trata A hora dos ruminantes, também não se pode deixar de vislumbrar a perspectiva de redenção, num final apoteótico marcado pela alegria, pela liberdade, numa espécie de comunhão coletiva. Dignas de destaque são as imagens que remetem ao campo semântico do positivo, do honesto:

“De repente, a descoberta. Gente não se contendo e abrindo janelas, ainda receosa mas já esperançada. O espanto, a incredulidade - a alegria. O céu claro, as ruas limpas, o luar purificando o lamaçal de esterco e urina. Era possível? Era verdade? Gente chamando gente, sacudindo gente, arrastando gente para ver, todas as janelas se abrindo, por todos os lados a claridade, o desafogo. Gente rindo, gente pulando e se abraçando e dançando na lama, gente se vestindo às pressas e correndo para a rua, esmurrando as portas dos vizinhos, gritando, chamando, disparando armas de fogo.

(...)

Ninguém quis perder tempo falando nos homens da tapera, se alguém se lembrou deles foi de passagem, o momento era alto demais para miudezas, agora era festejar e tocar para frente, quem não gostasse que se recolhesse e tapasse os ouvidos.

Às vezes a lua era vedada por uma massa escura de nuvens, mas isso não diminuía o entusiasmo do povo. Meninos acenderam fogueira na porta da igreja, gente grande reuniu-se em volta para aproveitar o calor, apareceram garrafas em várias mãos, até meninos provaram, ninguém censurou porque a noite era de todos, merecida. Os cachorros também, tanto tempo presos em casa, ou amarrados para não espantarem os bois, saíram para comemorar a desocupação, pulavam em volta dos donos, montavam uns nos outros, rosnavam e se mordiam de brincadeira, metiam-se em correrias por entre as pernas das pessoas e não sofriam ralhos nem pancadas, reconhecia-se que eles também tinham direito de estar alegres.” (VEIGA, 2001: 135-136)

A descoberta que abre a citação fala de um céu claro, de ruas limpas, de claridade e de desafogo, numa inquestionável associação com o fim da ditadura, realizada no plano da diegese, mas ainda uma ficção na realidade brasileira da época.

Depois de tantos dias de cães e bois, é do povo de Manarairema o dia então. Todos pulam e brincam, num sinal de irreverência e liberdade. Os únicos animais a serem vistos pertencem à cidade, e é nesse clima que a narrativa finda, não sem uma constatação um tanto amarga: a de que ainda levará um certo tempo até que tudo seja esquecido, pois as sequelas são muitas - e dolorosas:

“(...) E mesmo depois que o sol secasse tudo, por muito tempo ainda ficaria a poeira fina, moída pelos cascos dos animais e levantada pelo vento, lembrança amarga dos tristes dias passados. Com aquela poeira se imiscuindo por toda parte, Manarairema custaria muito a voltar ao que era, se voltasse.” (VEIGA, 2001: 139)

O romance finda com uma imagem muito expressiva: um relógio de igreja batendo horas, ainda desregulado. Apesar de ainda lerdo, seus ponteiros vão sendo pouco a pouco acertados, em mais uma das metáforas que perpassam o texto. Bons e maus momentos retornam, fazendo um balanço do acontecido e passando a limpo o tempo de Manarairema.



Bibliografia


BIEDERMANN, Hans. Dicionário Ilustrado de Símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1983.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

KOTHE, Flávio. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001



(Ilustração: Matt Verginer)

Nenhum comentário:

Postar um comentário