quinta-feira, 27 de setembro de 2018

A HISTÓRIA DE CANDOLO E GIGÉS, de Heródoto





Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros. 


[...] 


VII — Eis como o poder soberano, tendo pertencido aos Heraclidas, passou para a casa dos Mermnadas, a que pertencia Creso. Candolo, a quem os Gregos chamavam Mirsila, reinou tiranicamente em Sardes. Descendia de Hércules por Alceu, filho desse herói; Agron, filho de Nino, neto de Belos e bisneto de Alceu foi o primeiro dos Heraclidas a reinar em Sardes, e Candolo, filho de Mírsus, o último. Os reis desse país, anteriores a Agron, descendiam de Lídus, filho de Átis, de onde o nome de Lídios dado a todos os povos da região, outrora conhecidos por Meonianos. Finalmente, os Heraclidas, descendentes de Hércules e de uma escrava de Jardanus, e aos quais esses príncipes haviam confiado o poder, obtiveram o reino em virtude de um oráculo, reinando de pai a filho, pelo espaço de quinhentos e cinco anos, através de vinte e duas gerações, até Candolo, filho de Mírsus. 


VIII — Era tal a loucura que esse príncipe devotava à esposa, que julgava possuir nela a mais bela de todas as mulheres. Obcecado pela paixão, não cessava de exagerar-lhe a beleza a Gigés, filho de Dascílus, um dos guardas a quem muito estimava e fazia confidente dos seus mais importantes segredos. Pouco tempo depois, Candolo (não podia evitar sua desgraça) assim falou a Gigés: “Parece-me que não acreditas no que te digo sobre a beleza de minha mulher. Os ouvidos são menos crédulos do que os olhos. Faze, pois, o possível de vê-la nua”. “Que linguagem insensata, senhor! — exclamou Gigés — Refletis no que dizeis? Ordenar a um escravo que veja nua sua soberana? Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se despe? Entre as grandes máximas formuladas há muito pelos homens e que nos cumpre adotar, uma das mais importantes é a de que não devemos olhar senão o que nos pertence. Estou convencido de que possuís a mais bela de todas as mulheres, mas não exigi de mim, peço-vos, uma coisa tão desonesta”. 


IX — Assim Gigés recusava a proposta do rei, receando que acontecesse alguma desgraça. “Tranquiliza-te, Gigés; — disse-lhe Candolo — nada tens a temer de mim. Não estou absolutamente armando um laço para te experimentar, nem tão pouco tua rainha; ela não te fará nenhum mal. Arranjarei as coisas de maneira que ela nem mesmo saberá que a viste. Ocultar-te-ei atrás da porta do nosso quarto de dormir. A porta ficará aberta. À entrada do quarto há uma poltrona, onde a rainha, ao recolher-se ao leito, depositará as vestes à medida que as for tirando. Assim terás muito tempo para apreciá-la. Quando, da poltrona, ela se encaminhar para o leito, terá de voltar-te as costas. Aproveitarás então o momento para escapar sem ser visto.” 


X — Gigés, não podendo fugir à situação, declarou-se pronto a obedecer. Candolo, à hora de dormir, conduziu-o ao quarto, para onde a rainha não tardou a se dirigir. O guarda viu-a despir-se, e enquanto ela lhe voltava as costas para alcançar o leito, esgueirou-se para fora do aposento; mas a rainha percebeu-lhe a presença. Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o ultraje em silêncio, fingindo nada ter notado, mas decidindo, no fundo do coração, vingar-se de Candolo; pois entre os Lídios, como entre quase todos os povos bárbaros, constitui um opróbrio, mesmo para um homem, o mostrar-se nu. 


XI — A rainha permaneceu assim tranquila e sem deixar transparecer seu pensamento; mas logo ao romper do dia assegurou-se das disposições dos seus mais fiéis oficiais e mandou chamar Gigés. Longe de imaginá-la a par de tudo, ele atendeu-lhe a ordem, como estava habituado a fazer, sempre que ela o chamava. Quando chegou, a princesa disse-lhe: “Gigés, eis aqui dois caminhos que te dou a escolher; decide-te imediatamente: obtém pelo assassinato de Candolo minha mão e o trono da Lídia, ou a morte te impedirá de ver, de ora em diante, por uma cega obediência a Candolo, o que te é vedado. É preciso que um dos dois pereça: o que te deu essa ordem, ou tu, que me viste nua, desprezando todas as conveniências”. Ante tais palavras, Gigés permaneceu suspenso por alguns instantes. Depois suplicou à rainha que não o expusesse à contingência de tão dura escolha. Vendo a impossibilidade de dissuadi-la e a urgência absoluta de eliminar o soberano ou decidir-se a morrer, preferiu poupar a si próprio. 


“Já que me forçais — disse ele à rainha — a matar o meu senhor, dizei-me como deverei fazê-lo”. “— Será no próprio lugar onde me viste nua que te lançarás sobre ele; deverás atacá-lo durante o sono”. 


XII — Traçados os planos, ela tomou suas providências para evitar que o escravo pudesse, por qualquer meio, escapar à situação. Um dos dois teria de perecer: ou ele ou Candolo. Ao cair da noite, a rainha introduziu-o no quarto, armado de um punhal, e escondeu-o atrás da porta. Mal Candolo havia adormecido, Gigés avançou sem ruído e apunhalou-o, apoderando-se, assim, da esposa e do trono. Arquíloco de Paros, que vivia nesse tempo, faz referência a esse príncipe num poema composto em versos jâmbicos trimétricos. 


XIII — Gigés subiu, assim, ao trono, e ali foi confirmado pelo oráculo de Delfos. Os Lídios, indignados com a morte de Candolo, haviam, a princípio, pegado em armas, mas concordaram com os partidários de Gigés que, se o oráculo a este reconhecesse como rei, a coroa ficaria mesmo com ele; de outra maneira, ela voltaria para os Heraclidas. O oráculo pronunciou-se favoravelmente a Gigés, ficando-lhe assegurada a posse do trono. Todavia, a pitonisa acrescentou que os Heraclidas seriam vingados na quinta geração do príncipe. Nem os Lídios, nem os seus reis tiveram em conta semelhante advertência até ser ela justificada pelos fatos. E foi assim que os Mermnadas se apoderaram da coroa, arrebatando-a aos Heraclidas. 


XIV — Gigés, senhor da Lídia, fez a Delfos várias oferendas, das quais grande parte em dinheiro. Acrescentou muitos vasos de ouro aos já existentes no templo, bem como seis crateras de ouro, com o peso de trinta talentos, dádiva cuja memória merece ser conservada. Essas oferendas estão incluídas no tesouro dos Coríntios, embora, a bem dizer, esse tesouro não pertença absolutamente à república de Corinto, mas a Cípselo, filho de Etion. Gigés foi, depois de Midas, filho de Górdio, rei da Frígia, o primeiro dos bárbaros conhecidos a fazer oferendas a Delfos. Midas tinha presenteado o templo com o trono no qual costumava fazer justiça. Esse trono constitui obra digna de ser vista. Está colocado no mesmo lugar onde se encontram as crateras de Gigés. De resto, os habitantes de Delfos chamam as oferendas em ouro e prata de “gigeados”, do nome daquele que as fez. 


Quando o príncipe viu-se senhor do reino, organizou uma expedição contra as cidades de Mileto e Esmirna, e apoderou-se da de Cólofon. Todavia, como nada mais realizou de notável durante um reinado de trinta e oito anos, contentamo-nos em reportar esse fato, não falando mais em tal reinado. 



(História; Tradução do grego por Pierre Henri Larcher - 1726 D.C. - 1812 D.C.; versão para o português de J. Brito Broca) 




(Ilustração: William Etty.- Candaules king of Lydia shews his wife to Gyges)





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