sexta-feira, 21 de setembro de 2018
O DICIONÁRIO, de Simon Winchester
O “dicionário inglês”, no sentido em que usamos comumente a expressão hoje em dia — como uma lista alfabeticamente ordenada das palavras inglesas, junto com uma explicação de seus significados —, é uma invenção relativamente nova. Quatrocentos anos atrás não havia nenhuma conveniência desse gênero em qualquer estante inglesa. Não existia nenhum disponível, por exemplo, quando William Shakespeare estava escrevendo suas peças. Sempre que vinha a usar uma palavra incomum, ou encaixar um termo no que lhe parecia ser um contexto invulgar — e suas peças são extraordinariamente ricas de exemplos —, ele quase não tinha modo de verificar a propriedade do que estava prestes a fazer. Não tinha possibilidade de estender a mão para uma de suas estantes e escolher um volume qualquer para ajudá-lo: não seria capaz de encontrar livro algum que pudesse lhe dizer se a palavra escolhida estava grafada com propriedade, se a havia selecionado corretamente ou se a usara da maneira certa no lugar adequado.
Shakespeare não seria capaz sequer de desempenhar uma função que hoje consideramos tão perfeitamente normal e comum quanto a própria leitura. Ele não poderia, como se diz, “consultar alguma coisa”. Na verdade, a expressão inglesa “look something up” — quando utilizada no sentido de “procurar algo num dicionário, enciclopédia ou outro livro de referência” — simplesmente não existia. Ela só vai aparecer na língua inglesa em 1692, quando um historiador de Oxford chamado Anthony Wood a usou.
Como não havia a expressão até o final do século XVII, conclui-se também que certamente não existia tal conceito na época em que Shakespeare estava escrevendo — um período em que autores escreviam freneticamente e pensadores pensavam como nunca tinham feito antes. A despeito de toda a atividade intelectual daquele tempo, não existia impresso nenhum guia da língua, nenhum vade mecum linguístico, nem um único livro que Shakespeare ou Martin Frobisher, Francis Drake, Walter Raleigh, Francis Bacon, Edmund Spenser, Christopher Marlowe, Thomas Nash, John Donne, Ben Jonson, Izaak Walton, ou qualquer outro de seus eruditos contemporâneos pudesse consultar. Consideremos, por exemplo, a composição da Noite de Reis, de Shakespeare, que ele concluiu logo no início do século XVII. Pensemos no momento, provavelmente o verão de 1601, em que ele começou a escrever a cena do terceiro ato na qual Sebastian e Antonio, o marinheiro naufragado e seu salvador, tinham acabado de chegar ao porto e estão se perguntando onde poderiam passar a noite. Sebastian reflete sobre a questão por um instante e então, como alguém que tivesse lido e decorado seu guia de hotéis da época, declara com toda simplicidade: “In the south suburbs at the Elephant/ Is best to lodge”.[1]
E agora — o que William Shakespeare entendia exatamente de elefantes? Além disso, o que conhecia ele de Elephants como hotéis? Inúmeras hospedarias em várias cidades por toda a Europa tinham esse nome. Este determinado Elephant, visto que se tratava da Noite de Reis, por acaso ficava na Ilíria; só que havia muitos outros — dois deles, pelo menos, em Londres. Mas fossem quantos fossem — por que era esse o caso aqui? Por que batizar uma estalagem com o nome deste animal? E, afinal, que animal era este? Todas essas eram perguntas que, pode-se imaginar, um escritor deveria ao menos estar apto a responder.
Mas eles não estavam. Se Shakespeare não sabia lá muita coisa a respeito de elefantes, o que era provável, e se não tinha conhecimento deste curioso hábito de dar o nome do animal a hotéis — onde poderia pesquisar a questão? E mais — se não se achava rigorosamente certo de estar dando a seu Sebastian a referência adequada para suas falas — por que a estalagem se chamaria realmente elefante, ou quem sabe não fora batizada com o nome de outro animal, um camelo, ou um rinoceronte, um gnu? — onde poderia verificar para se certificar? Onde, na verdade, um dramaturgo da época de Shakespeare consultaria qualquer palavra?
Seria de se pensar que ele gostaria de pesquisar alguma coisa o tempo todo. “Am not I consanguineous?” [Não sou eu um consanguíneo?], escreve na mesma peça. Algumas falas depois refere-se ao “thy doublet of changeable taffeta” [vosso gibão de tafetá furta-cor]. Em seguida declara: “Now is the woodcock near the gin” [Agora está a galinhola perto da armadilha de caça]. O vocabulário de Shakespeare era evidentemente prodigioso: mas como poderia ele ter certeza de que, em todos os casos nos quais empregava palavras incomuns, estava fazendo o uso correto, tanto no sentido gramatical como de fato? O que o impedia, empurrando-o para uns dois séculos depois, de se tornar um eventual Mr. Malaprop? [2]
Vale a pena propor essas perguntas simplesmente para ilustrar o que acharíamos hoje da profunda inconveniência da impossibilidade de recorrer a um dicionário. Na época em que estava escrevendo, havia uma abundância de atlas, e também de livros de orações, missais, histórias, biografias, romances, assim como volumes de ciência e arte. Acredita-se que Shakespeare extraiu muitas das suas alusões clássicas de um léxico especializado (Thesaurus) que havia sido compilado por um homem chamado Thomas Cooper — os muitos erros do léxico aparecem reproduzidos com excessiva precisão em suas peças para que isso possa ser considerado coincidência — e pensa-se também que tenha bebido na fonte da Arte of rhetorique, de Thomas Wilson. Mas isso era tudo; não existia nenhum outro instrumento de pesquisa disponível, literário, linguístico ou léxico.
Na Inglaterra do século XVI, dicionários como os que conhecemos hoje simplesmente não existiam. Se a língua que tanto inspirou Shakespeare tinha seus limites, se suas palavras tinham origens, grafias, pronúncias, significados definíveis, não havia um único livro que os tivesse estabelecido, definido e consolidado. Talvez seja difícil imaginar uma mente tão criativa trabalhando sem uma única obra de referência lexicográfica a seu lado, a não ser a “cola” proporcionada pelo léxico do sr. Cooper (que a sra. Cooper certa vez atirou ao fogo, obrigando o grande homem a começar tudo de novo) e o pequeno manual do sr. Wilson, mas essa foi a situação sob a qual seu talento especial viu-se compelido a florescer. A língua inglesa era falada e escrita — mas na época de Shakespeare não estava definida, fixada. Era como o ar — tida como certa, a substância envolvente que continha em si e definia todos os britânicos. Mas quanto ao que ela era exatamente, e quais eram seus componentes — quem sabia?
Durante o século e meio seguinte deu-se um grande alvoroço de atividade comercial no setor, e dicionário após dicionário saíam com grande estrépito das prensas, cada um maior do que o outro, cada um deles apregoando um valor superior na educação dos deseducados (entre os quais se contavam as mulheres da época, a maioria das quais contava com pouca escolaridade, se comparadas aos homens).
Ao longo do século XVII esses livros tenderam a se concentrar, como fizera a primeira contribuição de Cawdrey, no que eram as ditas “palavras difíceis” — palavras que não se achavam no uso comum, cotidiano, ou palavras que tivessem sido inventadas especificamente para impressionar os outros, os assim chamados “termos de tinteiro”, com os quais os livros dos séculos XVI e XVII parecem bem adornados.
O fato de os livros se concentrarem apenas na pequena parte do vocabulário nacional que abrangia tamanha bobagem poderia sugerir hoje que isso lhes conferia um caráter bizarro e incompleto, mas naquela época sua seleção editorial era vista como uma virtude. Falar e escrever dessa maneira constituía a mais alta ambição da grã-finagem inglesa. “Apresentamos-lhes”, trombeteava o editor de uma dessas obras para os futuros membros da alta sociedade, “as palavras de escol.”
Notas:
[1] Nos subúrbios do Sul no Elefante / é o melhor lugar para se hospedar (N. E.)
[2] Referência à personagem Mrs. Malaprop, da pela The rivals (Os rivais), de Richard Brinsley Sheridan, que se destacava pelo emprego errôneo e, especialmente, ridículo de parônimos (malaproprism, do francês "mal-à-propos", ou seja, "inadequado para o propósito") (N. T.)
(O professor e o louco; tradução de Flávia Villas-Boas)
(Ilustração: George Henry Hall, 1825–1913 - Shakespeare portrait)
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