domingo, 29 de abril de 2018

FELICIDADE É COISA QUE NÃO TEM, de Judas Isgorogota









Era órfã e infeliz. Tinha o pesar profundo

De ser só, de não ter, como as outras meninas,

O carinho, a atenção, o desvelo dos pais.

Sofria por saber que, sozinha no mundo,

Ela, que havia tido a mais negra das sinas,

Deste mundo de dor nada esperava mais…

Mas, ouvindo, por fim, a fervorosa prece

Que altas horas da noite entre prantos brotava

Daquele ingênuo coração,

O Senhor a atendeu. E eis que um dia aparece

Um casal que de há muito desejava

Uma menina assim, para sua afeição.

E ela foi a sorrir, ela que não sorria…

A mansão do casal era toda cercada

De um mimoso jardim.

Seus vestidos agora eram lindos. Dir-se-ia

Que a andrajosa infeliz se transmudara em fada

E que a sua desdita, enfim, tivera um fim…

Não tivera, porém. Há três anos

Que ela era na escola a estudante pior.

Entanto, ela fazia esforços sobre-humanos

Para ao menos dizer uma frase de cor…

A memória, porém, só lhe causava danos

E era aquilo, afinal, sua mágoa maior…

Uma noite, o casal lhe disse: "Temos pena

De lembrar que você já não é tão pequena,

Que precisa estudar…

Pois, se perder este ano, é coisa resolvida,

Você vai passar a sua vida

Na copa, a trabalhar."

Aquela repreensão como um punhal lhe doía.

Tendo a alma a afogar-se em pranto, noite e dia

Aos livros a sem-sorte inda mais se aplicou.

Não, não queria ser uma simples copeira,

Ela que, pobrezinha, a sua infância inteira

Entre angústias passou…

Dezembro. A criançada. Antegozando as férias,

Mui longe de pensar nessas coisas tão sérias

Que a vida nos impõe quando a idade já vem,

Corre aos exames, rindo a criançada…

E no meio daquela revoada

Com um riso triste e bom, a órfão sorri também…

A escola é nesse dia um ninho delicioso,

Forrado de jasmins, de palmas e florões.

E a voz do mestre é a voz de um Todo-poderoso

Que as almas infantis enche de comoções…

Chega a vez da orfãzinha. É agora a vez terceira

Que se senta naquela humílima cadeira

Tal como se sentasse em um banco de réu…

Fala o mestre o seu nome, ao que ela diz: "Presente!"

Mas, o corpo era só que estava ali…realmente,

A sua alma vagava, entre os anjos, no céu…

O mestre a conhecia: era uma retardada

Mental, um caso à parte, e mister se fazia

Que com amor procedesse à mais leve arguição.

Dentre todas talvez fosse a mais aplicada…

Mas a ideia faltava…o cérebro dormia…

E a memória vivia em profunda inação.

-"Minha filha, você sabe perfeitamente

O que é "substantivo": a palavra que indica

Um animal, um ente,

Uma coisa ou pessoa, ou mesmo uma ilusão…

Por exemplo, você, o seu nome, "Lilica";

"Palácio", "Deus", "Amor", "Jornal", "Antônio"…

"Demônio" é um ser também, muito embora "Demônio"

Somente exista na imaginação…"

-"Muito bem, - prosseguiu o mestre. Estou contente.

Agora, diga o que é "substantivo abstrato"…

Diga…Lembre-se bem…coisa mais fácil não há…

Substantivo abstrato…uma coisa em que a gente

Ouve sempre falar mas não viu, de fato,

Nunca viu nem verá…"

-"Vamos… Só um exemplo, e eu fico satisfeito…

Substantivo abstrato…um entre sobre-humano,

Um ser a cujo canto alma alguma resiste,

Mas que não passa de ilusão…

Um sentimento bom que vive em nosso peito…

Uma coisa que o mundo inteiro diz que existe

E entretanto jamais a tivemos à mão…"

Nesse instante, uma luz brilhou nos olhos pequeninos

Da orfãzinha infeliz; e eis que, rasgando o denso

Nevoeiro, a ideia acorda em lampejos divinos,

A memória reluz como uma estranha vela;

Inicia a razão sua marcha triunfal,

E o cérebro, por fim, despertando daquela

Sonolência fatal,

Começa a funcionar com um dínamo imenso!

-"Mestre…mestre…eu já sei!" – grita a coitada como

Temendo que a razão se apagasse outra vez.

E aos brados, a chorar, num doloroso assomo,

Grita como uma douda

Que quisesse dizer a sua angústia toda

Naquele instante só de estranha lucidez!

- "Mestre, eu sei o que é! Se há uma coisa, em verdade,

Que o mundo inteiro diz que existe e que ninguém

Conseguiu ver jamais, nem a sentiu também,

Essa coisa só pode ser "Felicidade"!

Felicidade é coisa que não tem" 





(Ilustração: Diego Rivera)


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