quarta-feira, 2 de maio de 2018

A CARNE NEGRA, de William S. Burroughs







“A gente amigos, sim?” 

O pequeno engraxate estampou seu sorriso malandro e olhou para os olhos mortos, frios e submarinos do Marinheiro, olhos sem rastros de calor, volúpia ou ódio, ou de qualquer sentimento que o garoto jamais tivesse experimentado ou visto em outros, ao mesmo tempo frios e intensos, impessoais e predatórios. 

O Marinheiro se inclinou pra frente e pôs o dedo na parte interna do braço do garoto, na altura do cotovelo. E falou em seu murmúrio amortecido de drogado. 

“Com essas veias, menino, eu faria uma festa!” 

E riu um riso negro de inseto que parecia cumprir certa obscura função orientadora, como os guinchos do morcego. O Marinheiro riu três vezes. Depois parou de rir e ficou imóvel, ouvindo sua própria voz interna. Havia sintonizado a frequência silenciosa da droga. Seu rosto se alisou como cera amarela sobre as altas bochechas. Esperou meio cigarro. O Marinheiro sabia esperar. Mas seus olhos ardiam com um apetite seco e maligno. Virou o rosto de controlada urgência em lento meio giro, até enquadrar o homem que acabara de entrar. “Fats” Terminal sentou-se frente a uma mesa e varreu o café com olhos inexpressivos que pareciam periscópios. Quando seus olhos enfocaram o Marinheiro, fez um lento gesto com a cabeça. Só os nervos expostos da ausência de droga poderiam ter registrado o movimento. 

O Marinheiro deu uma moeda ao garoto. E foi-se em direção à mesa de Fats com andar flutuante – sentou-se. Ficaram muito tempo sentados em silêncio. O café fora construído num dos lados de uma rampa de pedra, ao fundo de um alto canyon de alvenaria. Rostos vindos da Cidade passavam, silenciosos como peixes, manchados por vícios infames, lascívias de inseto. O café iluminado como um sino submerso, o cabo cortado, assentando-se em sóbrias profundezas. 

O Marinheiro estava polindo as unhas na lapela de seu terno xadrez justo. Assobiava uma música por entre os dentes amarelos e brilhantes. 

Quando se movia, um eflúvio de húmus se desprendia de suas roupas, um odor mofado de depósitos desertos. Estudava suas unhas com fosforescente intensidade. 

“Estamos bem aqui, Fats. Posso entregar vinte. Mas preciso, claro, de um adiantamento.” 

“Em espécie?” 

“Não tenho os vinte no meu bolso. Mas tou te dizendo: é coisa limpa, fina. É dizer e apanhar.” O Marinheiro olhou as unhas como se estivesse estudando um mapa. “Você sabe que eu não falho.” 

“Deixa por trinta. Com um adiantamento de dez. Amanhã, a esta mesma hora.” 

“Fats, estou precisando do bagulho agora.” 

“Dá uma voltinha que eu te consigo um.” 

O Marinheiro afastou-se até a praça. Um garoto de rua aproximava um jornal do rosto do Marinheiro para cobrir sua mão que estava sobre a caneta dele. O Marinheiro continuou em frente. Tirou a caneta e quebrou-a como a uma noz, com seus dedos grossos e fibrosos e rosados. Tirou o recipiente de carga. Cortou uma das pontas do tubinho com uma faquinha curva. Uma névoa escura brotou do pequeno tubo e parou suspensa no ar, como uma pele fervendo. O rosto do Marinheiro se dissolveu. Sua boca ondulou para a frente formando um tubo comprido e sugou a substância numa explosão silenciosa e rosada. Seu rosto entrou em foco de novo, insuportavelmente nítido e claro, e a ardente marca amarela da droga queimava as nádegas cinzentas de um milhão de drogados aos berros. 

“Essa vai durar um mês”, decidiu ele, consultando um espelho invisível. 

Todas as ruas da cidade descem por entre vales cada vez mais profundos, e desembocam em uma enorme praça em forma de rim e escura. As paredes da rua e da praça são perfuradas por cubículos habitados e cafés, alguns com poucos metros de profundidade, outros se estendem a perder de vista numa rede de quartos e corredores. 

Em todos os níveis um emaranhado de pontes, caminhos de gato e linhas de bonde. Jovens catatônicos vestidos de mulher em camisolas de serapilheira e farrapos sujos, rostos forte e toscamente pintados em cores vivas sobre camadas de marcas e arabescos de cicatrizes aberta e supuradas que chegam até os ossos opalinos, empurram-se de encontro aos transeuntes com repetida e silenciosa insistência. 

Traficantes da Carne Negra, a carne da gigante e escura centopeia aquática – que às vezes atinge um comprimento de mais de dois metros – encontrada num beco de pedras negras e iridescentes lagoas pardas, exibem crustáceos paralisados nos bolsos camuflados da praça, visíveis apenas para os Comedores da Carne. 

Adeptos de ofícios obsoletos e inconcebíveis balbuciando em etrusco, viciados em drogas ainda não sintetizadas, traficantes do mercado negro da Terceira Guerra Mundial, praticantes de sensibilização telepática, osteopatas do espírito, investigadores de infrações denunciadas por suaves jogadores de xadrez paranoides, servidores de multas fragmentárias escritas em hebefrência taquigrafia acusando indescritíveis mutilações do espírito, funcionários de estados policiais mutilações do espírito, funcionários de estados policiais ainda não constituídos, corretores de sonhos estranhos e nostalgias testadas nas células sensibilizadas da doença da droga e trocadas pela matéria-prima da vontade, bebedores do Fluido Pesado lacrado no translúcido âmbar dos sonhos. 

O Café de Encontro ocupa um lado da praça, um labirinto de cozinhas, restaurantes, cubículos para dormir, perigosas sacadas de ferro e sótãos que se abrem nos quartos de banho subterrâneos. 

Em bancos cobertos de branco cetim sentam-se, nus, os Mugwumps que bebem translúcidos xaropes coloridos em canudos de alabastro. Os Mugwumps não têm fígado e se alimentam exclusivamente de doces. Os lábios finos, azul-púrpura, cobrem um bico de osso negro afiado como uma navalha com o qual às vezes se fazem em pedaços nas lutas por clientes. Essas criaturas secretam de seus pênis erectos um fluido que vicia e prolonga a vida desacelerando o metabolismo. (De fato, todos os agentes de longevidade criam dependência na proporção exata da sua efetividade de prolongar a vida.) Os viciados do fluido dos Mugwumps são conhecidos como Répteis. Alguns deles escorrem pelas cadeiras com seus ossos flexíveis e carne negra rosada. De trás de cada orelha brota um abanico de cartilagem verde coberta de ocos pelos erécteis pelos quais os Répteis absorvem o fluido. Esses abanicos, que se movem de tempos em tempos, tocados por correntes invisíveis, servem também para estabelecer uma forma de comunicação conhecida apenas pelos Répteis. 

Durante os Pânicos bienais, quando a tosca e desolada Polícia do Sonho toma de assalto a cidade, os Mugwumps refugiam-se nas fendas mais profundas das paredes, enclausurando-se em cubículos de barro, e durante semanas permanecem em estado de biostase. Durante esses dias de terror cinzento, os Répteis se arremessam para todos os lados, cada vez mais rápidos, e berram uns para os outros quando se cruzam numa velocidade supersônica, se seus crânios flexíveis golpeiam ventos negros de agonia animal. 

A Polícia do Sonho desintegra-se em bolhas de ectoplasma podre varridas por um velho drogado que tosse cospe na manhã doente. O Homem Mugwump vem com jarras de alabastro do fluido e os Répteis se abrandam. 

O ar aparece outra vez claro e parado como glicerina. 

O Marinheiro localizou o seu Réptil. Derivou até ele e pediu um xarope verde. O Réptil tinha uma boquinha redonda em forma de disco, de cartilagem parda, inexpressivos olhos verdes quase cobertos por uma delgada membrana de pálpebra. O Marinheiro esperou uma hora até que a criatura percebesse sua presença. 

“Algum bagulho pro Fats?”, perguntou ele, e suas palavras estremeceram os pelos do abanico do Réptil. 

O Réptil precisou de duas horas para levantar três dedos róseos e transparentes cobertos de uma substância negra. 

Vários Comedores da Carne jazem em meio ao vômito, fracos demais para se mover. (A Carne Negro é como queijo estragado, excepcionalmente delicioso e nauseante, de modo que os comedores ingerem-na, vomitam-na e novamente a comem até caírem exaustos.) 

Um jovem pintado deslizou para dentro e pegou uma das grandes garras negras, das quais se desprendia o odor doce e doentio que impregnava o Café. 



(Almoço Nu; tradução de Mauro Sá Rego Costa e Flávio Moreira da Costa) 



(Ilustração: foto do filme Naked Lunch, de David Cronenberg)


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