quarta-feira, 11 de abril de 2018

O MISTERIOSO HOMEM-MACACO, de Valêncio Xavier







Eu ia sozinho cantando: 

Tatu Peba 

Tatu Pe-reba 

Tatu bola 

Tatu en-rola 

Eu ia sozinho mais o cão. Segurava uma 28 de chumbo e nas costas uma Winchester 22, também pendurado o bornal com os cartuchos dos dois calibres, a garrafa com café adoçado e pão de milho para mim e o Divino, bom veadeiro, mas também de muita serventia para outras caças, prestimoso que era. 

De vez em quando puxava o facão da bainha presa na cinta para abrir caminho na mata densa, fechada. Mata escura, sombreada pelas copas de muitas árvores tapadoras, de raro deixando entrever uma nesga de céu muito azul sem nuvens. 

Já ia por volta das dez horas e eu ainda não tinha caçado nada. Calorão da mata, a língua do Divino sempre de fora, também eu suava, camisa molhada grudada no corpo. Mais de uma vez tive de atorar cipó com o facão para beber a água de dentro dele e dar para o cão, tanta a sede de nós dois. 

Meu rosto preto daquelas abelhinhas miúdas, pretas que nem mosca. Ao cão não incomodavam por causa do pêlo, mas em mim, que não usava barba naquele tempo, me cobriam a cara sugando meu suor pegajoso, tirando dele alimento para fazer seu mel azedo. Não adiantava espantar as bichinhas, se não picavam, também não arredavam dali, máscara preta cobrindo minha cara e fazendo aumentar o calor sentido. 

Depois de muito andar chego numa clareira, que refrigério! Me sento num toco e vou tirando a garrafa do bornal, quando ouço uns guinchos ardidos. Era um bando de macacos que, lá no alto, faziam a travessia de uma peroba para um ipê vizinho. Coisa até interessante de se ver, iam caminhando pelo galho pelado da peroba bem até a pontinha, e dali um de cada vez dava um salto, braços levantados, até o ipê. Pendurado pelo rabo num galho mais alto do ipê, um deles apanhava o companheiro no ar e, balançando-o, atirava-o são e salvo num galhão grosso do ipê, de donde seguiam caminho. 

Se um errasse o salto, ou se o outro não o agarrasse em tempo, ele caía e ia se esborrachar no chão lá embaixo. Bicho danado de engenhoso, o macaco, nisso até se parece com gente. 

Não sou chegado a carne de macaco, acho muito seca, musculosa, sabor azedo, mas como eu não tinha comido nada até aquela hora, catei a Winchester e me levantei já apontando para o alto. Divino nem reparou na cena, entretido que estava com o seu descanso. Cachorro é bicho mais preocupado com as coisas da terra, o que se passa lá em cima não lhe interessa, senão já estaria latindo feito um condenado. Já o macaco, lá no alto, sempre se preocupa com aquilo que se passa no chão. 

Quando apontei a arma quase todos já tinham passado, sobrava só um retardatário no galho da peroba. Aquele outro que estava pendurado pelo rabo no ipê, quando me viu, num átimo pulou para o meio das folhagens e sumiu da minha vista. Mirei então no retardatário, sem o companheiro que fugira não tinha como pular para o ipê. No comprido galho onde estava não tinha ramagem para se esconder, e o tempo era pouco para ele correr até um lugar mais coberto: eu atirava antes. O que fez ele quando se viu perdido? Se meteu a gritar e pular de desespero. Não morreu ali na hora porque não atirei logo, me distraí, rindo que estava de suas macaquices. 

Quando o bicho se tocou de que eu ia mesmo atirar, pegou das costas um macaquinho bem pequenininho e o levantou nos braços para me mostrar. Vi logo que era uma fêmea com sua cria recém-nascida. Gritou, se ajoelhou e se pôs a chorar - macaco é quase como gente -, uma mãe me pedindo para eu não matar seu filho. 

A gente faz muita maldade na vida, e na hora não percebe. Eu, ali, fiz uma que fui pagar bem caro depois, caro demais. Mas na ocasião não pensei em nada, e dei com o dedo no gatilho da Winchester, Bang. O que voou de pássaro com o barulho! Tiro certeiro: a macaca despencou lá de cima - queda demorada de tão alta - e veio se estatelar no chão da clareira. Só então Divino se deu conta e correu latindo para a caça estendida, morta. Corri junto, queria ver. Cheguei antes, e foi bom porque salvei a presa que o cão ia comer. Coisas de mãe que só Deus explica: não é que mesmo morta a macaca deu um jeito de proteger a cria?! Ela caiu segurando o filho e, quando bateram no chão, o corpo dela amorteceu a queda. Morreu bem mortinha, mas salvou o filho. 

Quando percebi que o cão, nervoso, rosnando, ia abocanhar o filhote, dei um pontapé no focinho, Passa, Divino!, e protegi o bichinho com as minhas mãos. O cão perdeu o filho mas ganhou a mãe, e aí abriu a bocarra e, numa sentada, devorou o cadáver morto da macaca, só deixou pele peluda e osso grande, o resto mandou para as tripas e ainda ficou lambendo o sangue do chão. 

O macaquinho tremia e chorava nas minhas mãos. Magrinho e miudinho, pensei, mas vai me servir de janta. Coloquei o bichinho dentro do bornal e com o calorzinho ele parou de tremer, aos poucos se acalmou, acho que até dormiu quieto, esquecido da morte da mãe. E eu peguei o caminho de casa. 

Na volta perdi o Divino. Caminhou uns tempos ao meu lado, normal, depois parou e devolveu tudo que tinha comido, vômito verde, fedido. Aí passou a caminhar inquieto, parando a toda hora para se mijar, sem levantar a pata, que nem uma cadela. Todo nervoso, começou a latir e a correr em roda tentando morder o próprio rabo. De repente, deu uma guinada e disparou ganindo, e sumiu no mato. Chamei, chamei, mas ele não voltou; ainda pensei em correr atrás dele, mas a mata era muito fechada e desisti. 

Nessa hora o macaquinho pôs a cabecinha para fora do bornal e espiou, olhinhos bem abertos, a mim me pareceu que ele até estava dando risada. Percebi então que a queda não o tinha afetado. 

Chegado ao rancho, contei a caçada pra minha mulher e mostrei o macaquinho. Seu malvado, ela me repreendeu. Isso não é coisa de cristão fazer. Achou bonito o bichinho: Tadinho, deve estar com fome, o pequeno órfão! E se tomou de dores pelo macaquinho. Foi tirar leite da cabra, e de um vidrinho com um chumaço de pano no gargalo aprontou uma mamadeira. O danadinho se achou! Era até bonito de ver aquele toquinho feioso, agarrado aos peitões da minha mulher, tomando seu leitinho adoçado com rapadura, chupando a mamadeira. 

E como mamava, o desgraçadinho! Não havia leite que chegasse. Não fosse, um dia depois, o cabritinho ter morrido de picada de cobra, não sei se a cabra ia ter leite suficiente para o sustento dos dois. Mamava tanto que dali a uns dias já estava forte e grandinho. Não sei se foi pelo leite de cabra, mais forte do que o leite da macaca sua mãe, ou se foi pelo fortume do açúcar de rapadura, só sei que lhe caiu quase todo pêlo, deixando à vista sua pele enrugadinha, parda, mosqueada. E daí ficou ainda mais parecido com gente humana. 

Minha mulher andava com ele para cima e para baixo, se tomou de amores pelo bichinho. Não largava dele nem para cozinhar, enquanto segurava o danadinho com uma das mãos, mexia nas panelas com a outra. 

Para cuidar da criação e trabalhar na roça, levava o macaquinho atado nas costas. Ele bem que gostava, ficava o tempo todo agarrado à minha mulher, como se ela fosse a mãe dele, a falecida. Dormia na nossa cama, os dois abraçados como mãe e filho. 

Tinha um pintão enorme, cabeça de prego, e para esconder essa vergonha minha mulher até fez umas fraldas, que trocava sempre que molhadas. Era muito dengue para uma criaturinha da mata, mas eu não ligava. Nossa filha já andava com doze anos, viçosa, bonita, carregava as tristezas próprias da idade, vivia ensimesmada, já não era companhia para a mãe. Nosso filho, Pedro, naquele tempo andava buscando ganhar a vida na cidade e quase nunca vinha nos visitar. 

Mulher é bicho diferente, tem suas coisas, suas manias, e desde que não incomode os outros o melhor é deixar. 

O carinho dela pelo macaquinho não perturbava ninguém, nem a mim nem à nossa filha. Se isso trazia alegria para ela, se diminuía sua solitude naquele rancho perdido no meio do mato, por que se incomodar, se existem tantas outras coisas para a gente se preocupar nesta vida que Deus nos deu? 

Não é mesmo? 

Assim foi indo até aquela noite da tempestade. Foi logo depois da janta, já muito escuro começou um vento forte, assobiador, e despencou uma chuvarada forte como nunca se viu antes, um verdadeiro dilúvio. Um frio úmido começou tão de repente que tive que me enrolar num cobertor. Era um relâmpago atrás do outro. A mulher queimou as palmas bentas e rezava assustada para Santa Bárbara. A menina tinha pavor de raio, se abraçou a mim fechando os olhos contra o meu peito, e assim ficou. Só o macaquinho parecia não se incomodar com o temporal, dormia o sono dos justos bem grudadinho na minha mulher. 

Foi a noite do cão. O medo não deixava ninguém dormir, nem sei como as águas não levaram embora o meu rancho, as horas foram passando e nada da chuva querer diminuir. Até que se deu o acontecido: na madrugada, nós três ainda acordados, assustados, molhados até os ossos pela chuva que caía pelos buracos do teto, e não é que de repente o macaquinho acorda, abre os olhinhos, se levanta, caminhando vai até o fogão, risca um fósforo e acende a lamparina? Na hora até que a gente não estranhou esse seu ato. Afinal, macaco é bicho esperto, achamos que o que ele fez não tinha sido nada mais do que imitar um gesto que tantas vezes nos viu fazer. O de causar espanto era ver a chama da lamparina, que, naquela ventania toda, se mantinha reta, firme, bem luminosa. O macaquinho veio se chegando perto de nós trazendo a lamparina acesa, nos olhos, bem nos olhos, e falou com um vozeirão grosso: 

- Eu me chamo João da Silva! 

Cruz credo, Ave Maria, te esconjuro! Já vi muito animal inteligente, mas nunca dantes nem eu, nem ninguém, viu bicho falar, ainda mais macaco. 

Foi um susto só: a menina começou a chorar de medo, o queixo da mulher caiu lá embaixo, os olhos arregalados, nem sei se de espanto ou terror. 

- Eu me chamo João da Silva! 

Dito isso, tirou o pinto para fora da fralda e, rindo de gargalhar, mijou quase ao pé da gente no chão de terra batida, mijou tão forte que abriu um buracão. 

No exato momento da mijada, caiu um raio tão forte, tão estrondoso que alumiou o mundo todo. Tão forte que a noite clareou como dia e derrubou o flamboyant que meu avô plantara na frente do rancho, queimando num fogo que nem a chuva conseguiu apagar, aquilo que talvez fosse a única beleza daquela terra. 

Eu me chamo João da Silva... foi assim que tudo começou. 

Foi nessa noite amaldiçoada que ele se revelou, que se fez homem aquele macaco amaldiçoado que em maldita hora eu fui trazer para dentro da minha casa. 

Esse macaco que fez o padre enlouquecer no dia do seu batizado. Que na escola onde foi aprender as primeiras letras atazanou tanto a professorinha que ela, coitada, abortou. Esse macaco que sempre tratei como filho e que abusou da inocência da minha filha, sua enteada, e fez mal para ela, matando minha mulher de desgosto. 

Que, com suas artimanhas diabólicas, fez meu filho Pedro pagar por ele, até hoje cumprindo pena na cadeia por um crime que o macaco cometeu. Que de tanto me judiar, me transformou no velho aleijado que hoje eu sou. Tanta sacanagem, tanta maldade, tanta coisa ruim esse João da Silva fez, e ainda faz em suas andanças pelo mundo, que se eu fosse contar levava a vida inteira e ainda não chegava ao fim. 

Não gosto nem de lembrar dos crimes hediondos que esse ser maligno cometeu. Mas, se você não tiver medo de ouvir e, para se precaver, quiser saber de toda a verdade sobre esse homem-macaco, um dia eu me armo de coragem e te conto tudo. 



(Ilustração: David Teniers  -1610-1690)







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