segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
MEU AVÔ DESCONHECIDO, de Ricardo Ramos Filho
Muitos me perguntam, já
perdi a conta de quantas vezes respondi, mas não conheci Graciliano. Vim ao
mundo no começo do ano seguinte à sua morte, primeiro nascimento na família
após a partida do autor alagoano (1892-1953).
Dizem que foi grande a
alegria, festejaram bastante a minha chegada. Entusiasmo por pouco não
transformado em tragédia; fardo dificílimo carregaria para o resto de minha
pobre vida se me batizassem como pretendiam.
No início, aventaram a
possibilidade de me homenagear com o nome de vovô, ou o contrário, nunca
entendi bem a quem seria o tributo. O fato é que, se tivesse vingado, este
texto seria assinado por Graciliano Neto. Felizmente minha mãe preferiu
presentear o marido --nasci no dia do aniversário de meu pai e virei Ricardo
Filho.
Minha avó Heloísa Ramos,
recém-viúva, afeiçoou-se demais a mim. Parentes maldosos, versados em Freud,
apressaram-se em diagnosticar tanto carinho como transferência. Nunca me
importei, até porque só fui precisar do psicanalista austríaco bem mais tarde.
Aproveitei ao máximo o convívio com vó Lozinha. O velho Grace, embora avô
desconhecido, acabou por tornar-se íntimo, pois vovó falava nele o tempo todo.
Para mim, era um herói igual
aos encontrados nos gibis. Tinha muito do Fantasma, a cadela Baleia era o seu
Capeto. Imaginava-o um Tarzan nordestino, encontrava-o no Príncipe Valente e no
Robbin Hood. Só imaginando-o em uma Sherwood alagoana, aliando-se aos pobres
contra os ricos, consegui entender por que tinha sido preso. Da mesma forma que
o Popeye não largava o cachimbo, meu avô não desgrudava do cigarro: era assim
que o via em todas as fotos.
Como acontece com a maioria
das pessoas, cresci. E, ao entrar em contato com a obra de Graciliano Ramos,
mudei minha relação com ele. É claro que fiquei impressionado. Como é que
alguém podia assinar um texto sem assinar?
Seu jeito característico de
arranjar palavras, tão pessoal na maneira de dizê-las, permitia-me encontrá-lo
com facilidade em qualquer página avulsa escrita por ele, mesmo sem identificação.
De certa forma, aquele herói
tão próximo afastou-se. O respeito instalou-se e virou reverência. Embora
tivesse muito carinho pelo primeiro, o segundo transformou-se em exemplo
importante, matéria de estudo, referência.
Ao olhar a foto presente na
edição de "O Velho Graça", de Dênis de Moraes, que está saindo pela
Boitempo, vejo o escritor. Recupero misturadas informações lidas e familiares.
Ouço minha mãe referindo-se ao mau humor dele nas vésperas de partir para o
estrangeiro, provavelmente inseguro ante perspectiva tão assustadora.
Lembro-me do início de
"Viagem", onde ele conta que em abril de 1952 embrenhou-se em uma
aventura singular. Foi a Moscou e a outros lugares. Para ele, homem sedentário,
resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável, não deve
ter sido fácil.
Sair de sua toca e entrar em
um avião, aparelho assassino, atravessar o oceano e conviver com pessoas
diferentes, tendo a necessidade de entendê-las e precisando de intérpretes,
encontrar uma polícia que, em vez de levá-lo para a cadeia, como lhe parecia
natural, ajudava-o, todas essas experiências novas me parecem marcadas em sua
silhueta magra de braços cruzados.
Atento, curioso,
divertindo-se com o discurso da menina de sobrancelhas "lobatianas".
Vejo no corpo frágil o esforço físico necessário para estar ali. Talvez por eu
conhecer seu destino -- em menos de um ano, 20 de março de 1953, estaria morto.
Imagino-o mergulhado em seu
humor característico ácido, irônico, inteligente, atento ao que ocorria a seu
entorno e tirando suas conclusões. Não encontro o cigarro em seus dedos e sei o
quanto deve estar sentindo falta.
Um Dalcídio Jurandir
empertigado à sua direita e o amigo Sinval Palmeira, o primeiro à esquerda na
foto, também não me parecem confortáveis. Ao vê-lo nessa antiga fotografia em
preto e branco, recupero o meu avô desconhecido.
Com carinho e respeito.
(Folha de São Paulo)
(Ilustração: Graciliano Ramos: em visita a Moscou, em
1952; Sinval Palmeira, 1ª à esquerda; Graciliano Ramos, de braços cruzados e
Dalcídio Jurandir, à dir. de Graciliano)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário