sábado, 28 de janeiro de 2017

DANIEL, de Jean-Paul Sartre







As poltronas de vime, a sombra dos plátanos. Daniel banhava-se em velhas recordações aborrecidas; em Vichy, em 1920, adormecera numa poltrona de vime sob as grandes árvores do parque, tinha nos lábios o mesmo sorriso cortês e sua mãe tricotava a seu lado, Marcelle tricotava a seu lado sapatinhos para o menino, sonhava com a guerra, não tinha mais olhos. O eterno zumbido do moscardo, já tanto tempo decorrido, desde Vichy, e o moscardo continuava a zumbir, havia um cheiro de menta; atrás deles, no salão do hotel, alguém tocava piano há vinte anos, há cem anos. Um pouco de sol sobre os dedos frisando os pelos das falanges, um pouco de sol aquecia, no fundo da xícara vazia, uma pequenina poça de café com um recife de açúcar, escuro e crespo, de mil arestas brilhantes. Daniel esmagou o açúcar pelo prazer melancólico de sentir sob a colher o desmoronamento da areia rangente. O jardim deslizava lentamente para o ria, a água morna e lerda, o odor de planta aquecida e a Revue des Deux Mondes que o Sr. de Lestrange, coronel aposentado, deixara sobre uma mesa do outro lado da entrada. A morte, a eternidade, ninguém se se furtará a ela, a doce, a insinuante eternidade; as folhas verdes e meladas acima das cabeças; o eterno montinho das primeiras folhas mortas. Émile cavava, único ser vivo, embaixo dos castanheiros. Era o filho dos patrões, jogara no chão a seu lado, à beira da valeta, um saco de pano cinzento. No saco estava Zizi, a cadela morta: Émile cavava-lhe uma cova; trazia à cabeça um imenso chapéu de palha, o suor escorria-lhe pelo dorso nu. Um rapazola grosseiro e insignificante, de fisionomia dura, um rochedo com duas fendas horizontais e visguentas no lugar dos olhos, tinha dezessete anos, e já corria atrás das mulheres, era campeão local de bilhar e fumava charuto: mas era dono daquele corpo delicioso, imerecido.

- Ah! – disse Marcelle –, se deu ousasse acreditar...

Naturalmente. Naturalmente não ousava acreditar. E no entanto, a ela, que mal podia fazer a guerra? Continuaria a engordar em alguma aldeia, no campo. Será que ela não vai mesmo dar o fora, está deixando passar a hora da sua sesta. Ele apoiava o pé sobre a pá e premia com toda a força; pousar docemente as mãos nos flancos e subir, numa leve pressão, como um massagista, enquanto ele cava a terra, roçar a ponta dos dedos na sombra úmida das axilas; seu suor cheira a timo. Bebeu um gole de bagaceira.

- Seria bom demais – disse Marcelle. – E, depois, a mobilização já começou.

- Mas, minha cara Marcelle, como é que você pode levar a sério isso. A Home Fleet vai dar uma volta pelo mar do Norte, a França mobilizará duzentos mil homens, Hitler reunirá quatro divisões motorizadas na fronteira tcheca. Depois, esses senhores ficarão com a consciência tranquila e poderão conversar tranquilamente em volta de uma mesa.

Corpo de mulher a gente agarra. Borracha, carne desossada, isso se arranja até demais. Aquele belo corpo exigia carinhos de escultor, fora preciso modelá-lo. Daniel endireitou-se bruscamente em sua poltrona e fixou Marcelle com um olhar faiscante. Isso não, isso nunca; esse vício distraído... não, não estou na idade disso. Bebo um gole de bagaceira, falo gravemente da guerra que se anuncia e, durante esse tempo, meu olhar roça, displicentemente, um jovem dorso nu, um traseiro bem feito, preliba todas as possíveis dádivas de uma tarde de verão. Que venha! Que venha a guerra, para embaçar meus olhos, afundá-los nas órbitas, mostrar-lhes enfim corpos conspurcados, sangrentos, desarticulados, que ela me arranque destes eternos desejos, pequeninos e fracos, das folhagens, do zumbido das moscas, dos sorrisos, um gêiser de fogo sobe aos céus, uma chama que queima o rosto e os olhos, a gente pensa que tem as faces arrancadas, que venha afinal o instante inominável que não lembra coisa alguma.

- Mas – disse Marcelle com uma doce indulgência (ela não apreciava as qualidades políticas dele) – a Alemanha não pode recuar, não é? E nós chegamos ao máximo das concessões. Então?

- Não tenha medo – disse Daniel com amargura. – Nós faremos todas as concessões necessárias, não haverá limites. E depois a Alemanha pode dar-se ao luxo de recuar, quem ousaria falar em recuo? Diriam que foi generosidade.

Émile endireitou o busto, enxugava a fronte com a mão, suas axilas fumegavam, olhava o céu sorrindo, um jovem deus. Um jovem deus! Daniel arranhou o braço da poltrona: quantas vezes, senhor, quantas vezes não dissera um jovem deus, ao contemplar um adolescente ao sol. Palavras gastas de tia idosa. Sou um pederasta, e eram ainda palavras que não o perturbavam, de repente pensou: em que a guerra poderia modificar isso? Estaria sentado em algum outeiro, durante uma acalmia, olharia distraidamente o dorso nu de um jovem soldado cavando a terra ou catando piolhos, os lábios já bem treinados murmurariam sozinhos: um jovem deus; a gente se entusiasma em qualquer lugar.

- Afinal – disse brusco –, estamos discutindo à toa. Que haja guerra! Imagino que será vivida mesquinhamente, como tudo.

- Oh! Daniel. – Marcelle parecia realmente escandalizada. – Como pode dizer isso? Seria... seria terrível!

Palavras. Sempre palavras.

- O que de terrível – disse Daniel sorrindo – é que nada é jamais muito terrível. Não há extremos.

Marcelle olhou-o com certa surpresa, seus olhos tinham perdido o brilho; está ficando com sono, pensou Daniel, satisfeito.

- Se você me dissesse isso dos sofrimentos morais, ainda o compreenderia. Mas há os sofrimentos físicos, Daniel...

- Ah! – disse Daniel, ameaçando-a com o dedo. – Já está pensando as suas futuras dores! Você verá, você verá que isso também terá sido exagerado.

Marcelle sorriu-lhe, reprimindo um bocejo.

- Vamos – disse Daniel, levantando-se –, não se atormente, Marcelle. Quase deixou passar a hora da sesta. Você não dorme o suficiente; no seu estado é preciso dormir muito.

- Não durmo bastante? – Ria e bocejava ao mesmo tempo. – Tenho vergonha até, não leio mais nada, passo meus dias na cama.

Felizmente, pensou Daniel, beijando-lhe a ponta dos dedos.

- Aposto – disse – que ainda não escreveu à senhora sua mãe.

- É verdade. Sou uma filha ingrata. – Bocejou acrescentando: - Vou fazê-lo antes de dormir.

- Não, não – disse Daniel com vivacidade –, vá descansar imediatamente. Eu é que lhe mandarei uma palavrinha.

- Oh! Daniel – disse Marcelle, encantada e confusa. – Uma carta do genro, ela vai sentir-se orgulhosa!

Subiu a escada com dificuldade e ele tornou a sentar-se na poltrona. Bocejou, passou-se algum tempo e ele percebeu que estava ouvindo o piano. Olhou o relógio: eram três horas e vinte e cinco. Marcelle desceria às seis para seu passeio-aperitivo. Tenho duas horas e meia diante de mim, pensou com certa apreensão. Bem: outrora sua solidão era como o ar que se respira, vivia-a sem a ver. Agora, era-lhe concedida aos poucos e ele não sabia o que fazer dela. O mais extraordinário é que me aborreço menos quando Marcelle se acha comigo. Você quis assim, disse a si mesmo, você quis assim! Sobrava um gole de bagaceira no fundo do copo, bebeu-o. Naquela noite de junho, quando resolvera desposar Marcelle, arquejava de angústia, acreditava mergulhar no horror. Tudo isso para chegar àquele ponto, à poltrona de vime, ao gosto levemente podre da bagaceira em sua boca, ao dorso nu. A guerra, seria a mesma coisa. O horror, é sempre para o dia seguinte. Eu casado, eu soldado: só encontro a mim mesmo. E nem mesmo eu: uma sequência de pequenas deslocações excêntricas, de pequenos movimentos centrífugos e nenhum centro. Entretanto, há um centro. Um centro: eu. Eu – e o horror está no centro. Ergueu a cabeça, a mosca zunia à altura dos seus olhos, espantou-a. Mais uma fuga. Um pequeno gesto com a mão, um quase nada, já ele escapava de si: que importa a mosca? Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um gesto, sem um ruído, cego e surdo, as moscas, os insetos passando sobre o meu corpo, uma estátua severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez conseguisse coincidir comigo mesmo. Não, certamente, para me aceitar; para ser, enfim, o objeto de meu ódio. Houve uma espécie de dilaceração, quatro notas de uma polonaise, o brilho daquele dorso, uma formigação no polegar e depois ele se recolheu, se juntou de novo. Ser o que sou, ser um pederasta, um mau, um covarde, essa imundície, em suma, que não chega sequer a existir. Encostou os joelhos, pousou as mãos sobre as coxas, teve vontade de rir: devo ter um ar muito decente, e deu de ombros, imbecil. Não me incomodar mais com o meu jeito, sobretudo não me olhar mais; se me olho sou dois. Ser. No escuro, às cegas. Ser pederasta, como a árvore é árvore. Apagar-se. Apagar o olhar interior. Pensou: apagar. A palavra repercutiu como um trovão, ecoou por imensas salas vazias. Espantar palavras, eram um pulular de pequenos sursis, cada qual lhe marcando encontro ao fim de si mesmo.... Houve nova dilaceração. Daniel encontrou-se sonolento e enfarado, um sujeito que tem apenas duas horas diante de si e se distrai como pode. Ser como eles me veem, como Mathieu me vê – e Ralph com sua cabecinha suja; espantar as palavras como mosquitos; pôs-se a contar mentalmente, um, dois – palavras surgiram: divertimento de veranistas. Mas contou mais depressa, tornou mais apertadas as malhas da rede e as palavras não passaram mais. Cinco, seis, sete, oito, o fundo do mar, uma imagem estava lá, agachada, medonha, comum a essas profundezas, uma aranha-do-mar, desabrochando, vinte e dois, vinte e três, Daniel percebeu que retinha a respiração, relaxou-a, vinte e sete, vinte e oito, o outro cavava sempre lá em cima, na superfície; a imagem: era uma chaga aberta, boca amarga, esses lábios abertos e o sangue que brota deles, trinta e três, a imagem era-lhe familiar e no entanto formava-a pela primeira vez. Espantar as imagens também; estava tomado por um medo estranho e leve. Deslizar, deixar-se deslizar como quando se deseja dormir. Mas estou cochilando! Sacudiu-se, emergiu à tona. Que silêncio, cá fora! O silêncio esmagador, semimorto, que buscava em vão dentro dele, ali estava, e dava medo. O sol esparso juncava o chão de círculos pálidos e irrequietos, a cadela morta, o murmúrio do rio na copa das árvores, o dorso nu, tão próximo, tão longínquo, sentia-se terrivelmente estranho a tudo que se deixou mergulhar outra vez, afundou para trás, agora via o jardim por baixo como um mergulhador que ergue a cabeça e olha o céu através da água. Sem ruído, sem voz, pequeno hiato tagarela no centro do silêncio. Um, dois, três, espantar as palavras, que o silêncio do jardim atravesse, se junte e se unifique através de mim; regularizar a respiração. Lentamente, profundamente, que cada coluna de ar esmague como uma prisão as palavras que tentarem nascer. Ser, como uma árvore, como o dorso nu, como as luazinhas borboleteantes na terra rósea. Se fechasse os olhos: os olhos conduzem longe demais, para fora do instante, para fora de mim, para lá longe, nas folhas, no dorso; o olhar acuado, furtivo, fugidio, sempre no extremo de si mesmo, apalpa a distância. Mas não ousou cerar as pálpebras: Émile devia olhá-lo às escondidas, de vez em quando, e ele teria o ar de um senhor de idade apanhado por uma sonolência digestiva; antes fascinar-se diante de alguma coisa, dar alimento aos olhos, amarrar o olhar, nutri-lo e descer ao fundo de si próprio, libertado dos olhos, dentro da minha noite espessa; fixou o canteiro, à esquerda, um grande ritmo verde, coagulado; uma onda imobilizada no momento em que se desfaz; o olhar perdido, jogado sem cessar de uma a outra folha, dissolvia-se naquela desordem vegetal. Um (inspiração), dois (expiração), três (inspiração), quatro (expiração). Descia turbilhonando, no caminho veio-lhe uma formigante vontade de rir, banco o dervixe, tomara que eu não engula a língua, já ela se projetava acima dele, ele afundava, cruzava palavras em trapos: medo, desafio, que voltavam à tona. Um desafio ao céu claro, ele o pensava sem imagens, sem palavras, está vindo, abrir-se como uma boca-de-lobo. Sob o azul, uma reivindicação amarga, uma súplica vã. “Eli, Eli, lamma sabacthani”, foram as últimas palavras que encontrou, subiam dentro dele como bolhas leves, a parede verde do canteiro ali estava, despercebida, uma plenitude de presença diante de seus olhos, está vindo, está vindo. Sentir-se cortado, rasgado como por um golpe de foice, era extraordinário, desesperante, delicioso. Aberto, aberto, a casaca estoura, aberto, aberto, pleno, eu mesmo para sempre, pederasta, mau, covarde. Estão-me vendo, não. Não é isso; alguma coisa me vê. Sentia-se objeto de um olhar. Um olhar que o perscrutava até o fundo, que o penetrava a golpes de punhal e que não era o seu olhar; um olhar opaco, a própria noite, que o esperava no fundo dele mesmo e o condenava a ser ele mesmo, covarde, hipócrita, pederasta para sempre. Ele mesmo, palpitando sob esse olhar e desafiando esse olhar. Estou sendo visto. Transparente, transparente, transpassado. Por quem? Não estou só, disse Daniel em voz alta. Émile ergeu-se.

- Que é que há, Sr. Sereno? – disse.

- Estava lhe perguntando se demoraria muito ainda.

- Estou terminando – disse Émile –, mais alguns minutos.

Não se apressava em recomeçar a cavar, olhava Daniel com uma curiosidade insolente. Mas aquilo era um olhar humano, um olhar que a gente podia enfrentar. Daniel levantou-se, tremia de medo:

- Não fica cansado de cavar assim com este sol?

- Estou acostumado – disse Émile.

Tinha um peito encantador, um pouco gordo, com dois minúsculos pontos róseos; apoiava-se à enxada com um ar provocante; a três passos.... Mas havia aquele estranho, estranho gozo mais acre que todas as volúpias, havia aquele olhar.

- Faz calor demais para mim – disse Daniel –, acho que vou subir para descansar um instante.

Inclinou de leve a cabeça e subiu a escada. Tinha a boca seca, mas estava decidido: no quarto, baixada a cortina, venezianas fechadas, recomeçaria a experiência.



(Sursis; tradução de Sérgio Milliet)




(Ilustração: Dino Valls - Per Luctum)



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