quinta-feira, 17 de novembro de 2016
A CASA DO MINEIRO, de Visconde de Taunay
Está a ceia na mesa.
Torne o bom acolhimento desculpável o mau passadio.
WALTER SCOTT
Ivanhoe.
Quando assomaram os dois viajantes à entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira, saíram-lhes ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos saudaram o dono da casa com uma cainçada de alegria.
Puseram-se algumas galinhas a correr atarantadas, ao passo que dous galos, já empoleirados na cumeeira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se erguiam dentre palhas de milho e estremunhados olhavam para os recém-chegados com olhos pequenos e cheios de sono.
Do interior da habitação, não tardou a sair uma preta idosa, mal vestida, trazendo atado à cabeça um pano branco de algodão, cujas pontas pendiam até ao meio das costas.
- Olá, Maria Conga - perguntou Pereira - que há de novo por cá?
- A bênção, meu senhor - pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão.
- Deus te faça santa - respondeu o mineiro. Como vai a menina? Nocência?
- Nhã está com sezão.
- Isto sei eu, rapariga de Cristo; mas como passou ela de trasantontem para cá?
- Todo o dia, vindo a hora, nhã bate o queixo, nhor-sim.
- Está bem... É que o mal ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a janta?... Está pronta? Venho varado de fome. Que diz, sr. Cirino? indagou ele voltando-se para o companheiro.
- Não se me dava também de comer alguma coisa. Temos razão para...
- Pois então - interrompeu Pereira - ponha pé no chão e pise forte, que o terreno é nosso. Minha casa, já lho disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguém fica fechada.
Deu logo o exemplo, e descavalgou do cavalinho zambro, o qual foi por si correndo em direção a uma dependência da casa com formas de estrebaria.
Apeou-se também Cirino, mas, ao penetrar numa espécie de alpendre de palha que ensombrava a frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na fisionomia.
- Ora, sr. Pereira - exclamou ele batendo com o tacão da bota num sabugo de milho - só agora é que me lembro que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam sem roupa, nem medicamentos. Que maçada! Devíamos ter esperado na boca da sua picada.
Respondeu-lhe o mineiro todo desfeito em expansivo riso:
- Olé, pois o doutor é tão novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro à sua gente? Não se lembra de um ramo verde que pus bem no meio da estrada real?
- É verdade - confirmou Cirino.
- E então? Daqui a pouco a sua camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai apertando.
Consistia a morada de Pereira num casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre duas janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com o peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical, grandes rachas longitudinais mostravam a urgência de sérias reparações em toda aquela obra feita de terra amassada e grades de pau-a-pique.
Ao oitão da direita existia encostado um grande paiol construído de troncos de palmeiras, por entre os quais iam caindo as espigas de milho, com o contínuo fossar dos porquinhos, que dali não arredavam pé.
Corrido na frente de toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de buriti, sustentado por grossas taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de alguma passada festa, em que o número de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira habitação.
Internamente era ela dividida em dois lanços: um, todo fechado, com exceção da porta por onde se entrava, e que constituía o cômodo destinado aos hóspedes; outro, à retaguarda, pertencia à família, ficando portanto completamente vedado às vistas dos estranhos e sem comunicação interna com o compartimento da frente.
Era de barro compacto e socado o chão desta sala, vendo-se nele sinais de que às vezes ali se acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de luzidia e tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular, como se tudo houvera sido jacarandá envernizado.
- Isto aqui - disse Pereira penetrando na sala e sentando-se numa tripeça de pau - não é meu, é de quem me procura. Poucos vêm cá decerto parar, mas enfim é sempre bom cantar com eles... Minha gente mora na dependência dos fundos.
E apontou para a parede fronteira à porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa se estendia além.
- Sr. Pereira - disse Cirino recostando-se a uma sólida marquesa - não se incomode comigo de maneira alguma... Faça de conta que aqui não há ninguém.
- Pois então - retorquiu o mineiro - deite-se um pouco, enquanto vou lá dentro ver as novidades. A hora é mais de comer, do que de cochilar; mas espere deitadinho e a gosto, o que é sempre mais cômodo do que ficar de pé ou sentado.
Não desprezou o hóspede o convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando-as, fez dos canos travesseiros, em que descansou a cabeça.
Quem se coloca em posição horizontal, depois de vencidas umas estiradas léguas, adormece com certeza. Depressa veio, pois, o sono cerrar as pálpebras do recém-chegado e intumescer-lhe o peito com sossegada respiração.
Dormiu talvez hora e meia, e mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animais que paravam e por grita de gente a pôr cargas em terra.
Assomou o sr. Pereira à porta com ar jovial.
- Então que lhe disse eu?
- De fato; estou agora sossegado.
- E o sr. tomou uma boa data de sono.
- Quem sabe uma hora?
- Boa dúvida, senão mais. Fiquei todo este tempo ao lado de Nocência, que de frio batia o queixo, como se estivesse agora em Ouro Preto, quando cai geada na rua.
- Então não vai melhor?
- Qual!... Depois que o sr. tiver comido, há de ir vê-la. Está, pobrezinha, tão desfeita que parece doente de uns dois meses atrás.
- Felizmente - observou Cirino com alguma enfatuação - aqui estou eu para pô-la de pé em pouco tempo.
- Deus o ouça - disse Pereira com verdadeira unção.
- Patrícios! Oh! gente! - gritou ele em seguida para os dois camaradas chegados de pouco - vão mecês sestear naquele rancho, ali. Perto há boa água, e lenha é o que não falta: basta estender o braço. Olhem, deem ração de fartar aos animais. Aproveitem o milho, enquanto há: é a sustância desses bichos. Aqui, vendo-o baratinho. Um atilho por um cobre e não são espigas chochas, nem de grão soboró. Eh! Lá! Maria Conga, vamos com isso!... janta na mesa!...
Foram o chamado e as indicações de Pereira cumpridas sem demora.
Apareceu a velha escrava, que estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão grosseira mas muito alva, sobre a qual derramou duas boas cuias de farinha de milho: depois, emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado colocou uma colher e um garfo de metal.
- Sente-se, doutor - disse Pereira para Cirino - agora não manduco com mecê, porque já petisquei lá dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado.
Vinha nesse momento entrando Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de feijão-cavalo, outro de arroz.
- E as ervas? - perguntou Pereira. - Não há?
- Nhor-sim. Eu trago já - respondeu a preta que com efeito voltou daí a pouco.
Tornou o mineiro a desculpar-se da insuficiência e mau preparo da comida.
- Não lhe dou hoje lombo de porco; mas o prometido não cai em esquecimento. Isto lhe posso assegurar.
- Estou muito contente com o que há - protestou com sinceridade Cirino.
E, de fato, pelo modo por que começou a comer, repetindo amiudadas vezes dos pratos, deu evidentes mostras de que falava inteira verdade.
- Maria - disse Pereira para a escrava que se fora colocar a alguma distância da mesa com os braços cruzados - traz agora mel e café com doce.
Vieram a sobremesa e a xícara de café que completaram a refeição.
- Ah! - exclamou Cirino com patente satisfação estirando os braços - fiquei que nem um ovo. O feijão estava de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que me deu este bom agasalho.
- Amém! - respondeu Pereira.
(Inocência, cap. IV, 1872.)
(Ilustração: Ludwig Valenta; casa de caboclo)
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