quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A MORADORA DO QUINHENTOS E TRÊS, de Beatriz Abuchaim









Ela era miúda, clara e parecia exausta. Não era uma preguiça de se arrastar entre uma tarefa e outra, e sim a expressão do esgotamento de alguém que tem sempre um problema urgente a resolver. Os traços delicados se desfiguravam com as sobrancelhas erguidas. A própria existência das coisas tinha para ela uma gravidade aguda. Segurava as juntas dos dedos umas contra as outras. A voz lhe escapava ansiosa, formando parábolas de sons, altos e baixos, baixos e altos. As mãos permaneciam contraídas, repousadas por sobre o vestido comprido. Só poderia se chamar Marieta. Parecia uma senhora, mesmo sendo um pouco mais jovem do que eu. Ela tinha uns trinta e cinco anos, no máximo quarenta. A gravidez evidente, a pele lisa ao redor dos olhos e o cabelo loiro, sem fios brancos nem tintura destoavam dos suspiros abortados, dos móveis cor de mogno e das feições endurecidas.

A sala de sua casa evocava o consultório de um dentista, antes da consulta. Todos os objetos estavam livres de bactérias. Imaginei-a despendendo uma tarde inteira para decidir a posição da réplica de “As meninas”, do Renoir. Uma vez ali, o quadro permaneceria imóvel, condenado ao encaixe perfeito do prego e a ausência de pó. Havia duas almofadas por sofá e uma por poltrona, fazendo um contraponto de cores: almofada verde no sofá marrom, almofada bege na poltrona verde. Os guardanapos de crochê esticados nas mesas. Ainda se confeccionam peças desse tipo, lembrei. Toalhas feitas à mão existiam para mim apenas nas tardes da infância, sustentando a compoteira com a ambrosia da vovó. Na casa de Marieta, os copos brilhavam, dentro da cristaleira, em filas regulares. Um exército sem camuflagem.

Fui convidada a sentar. Tive receio de estragar alguma coisa. Fiquei constrangida com minha própria figura: as pernas longas, o jeans desbotado, as unhas por fazer, o leve odor de nicotina. Me senti acomodada em uma mesa para crianças de pré-escola. Eu era imensa para estar ali. Tenho uma sensação de desconforto quando converso com uma pessoa que fala de modo correto o português, usando todos os erres e esses, conjugando com naturalidade os verbos, jamais se permitindo errar uma concordância. Cada frase proferida com essa minha língua de todos os dias parece uma ofensa. Frente a Marieta, mesmo o meu gesto mais educado seria falta de tato. Ela me observava bem de perto, não lhe escapava nada.

Cruzei as botas de bico fino, joguei os cabelos mechados para trás e deixei que ela me julgasse. Nada falei. Escutei as suas tentativas de conter a cólera. Marieta é o tipo da mulher que fica irritada com sua própria fúria. Me diverti vendo suas faces ruborizadas ao comentar sobre os ruídos no sábado à noite. Suas mãos se descruzaram e massagearam a cervical. Ela afirmava que aquela não era a minha primeira “festinha”. Marieta estava certa de que eu entenderia sua reclamação. Dali a alguns meses, o nascimento do bebê. Ela apenas desejava que eu cumprisse o regulamento do condomínio. Nem quisera falar com o síndico para não me deixar desconfortável. Será que ela não percebia que nada poderia ser mais impróprio do que aquele convite para visitá-la, feito a olhos baixos no elevador?

Morava há cinco anos em cima de Marieta e as duas únicas festas que dera foram catalogadas por ela. Me sabia inocente de suas acusações de má vizinhança. Fiquei lembrando das noites com o Afonso. Ela teria escutado nossas carências após duas ou três garrafas de vinho? Marieta com seu maridinho, que penteia os cabelos para trás com gel em excesso e diz “pois não” ao abrir a porta do prédio para mim, incomodados com as farras do piso superior, do apartamento daquela mulher meio solteira, meio atriz, meio deprimida, que sempre esquece de pegar o jornal de domingo.

Separadas por alguns metros de concreto, vivíamos em estados de matéria distintos, eu tão líquida, ela tão sólida. Eu escorria pelas paredes de seu apartamento. Nada de festas, eu disse, mesmo não sabendo se cumpriria a promessa. Já na porta, pronta para voltar ao meu mar revolto, passei a mão na barriga de Marieta. Perguntei o nome do bebê. Por um instante ela descansou. O rosto se descontraiu, ganhou as feições de alguém que chega em casa ao final do dia e tira os sapatos. Me senti composta da mesma água que ela. Meus dedos firmaram junto ao seu ventre. “Getúlio”, ela me disse. Nome de velho, eu pensei, ao me despedir.





(Ilustração: Leonor Fini)



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