sexta-feira, 11 de novembro de 2016
ORAÇÃO AOS MOÇOS, de Rui Barbosa
[...]
Estou-vos abrindo o livro da
minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta
versão rigorosa de uma das suas páginas, com que mais me consolo, recebei-a, ao
menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos, quando não como o
testamento de uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem,
mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor, e o adorou com
sinceridade.
Desde que o tempo começou,
lento lento, a me decantar o espírito do sedimento das paixões, com que o verdor
dos anos e o amargor das lutas o enturbavam, entrando eu a considerar com
filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto esta necessita da
contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das
provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a perceber
vivamente que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus
inimigos e desfortunas. Por mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte
e as maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que nos façam ainda
maior bem. Ai de nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as
vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse a colaboração providencial
da fortuna adversa e dos nossos desafetos. Ninguém mete em conta o serviço
contínuo, de que lhes está em obrigação.
Diríeis, até, que,
mandando-nos amar aos nossos inimigos, em boa parte nos quis o divino
legislador entremostrar o muito de que eles nos são credores. A caridade com os
que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é, em bem larga escala, senão
pago dos benefícios, que, mal a seu grado, mas muito deveras, eles nos
granjeiam.
Destarte, não equivocaremos
a aparência com a realidade, se, nos dissabores que malquerentes e malfazentes
nos propinam, discernirmos a quota de lucro, com que eles, não levando em tal o
sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela minha parte, o melhor do que
sou, bem assim o melhor do que me acontece, frequentemente acaba o tempo
convencendo-me de que não me vem das doçuras da fortuna propícia, ou da
verdadeira amizade, senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos
malévolos e às contradições da sorte madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o
veto dos meus adversários, sistemático e pertinaz, me não houvesse poupado aos
tremendos riscos dessas alturas, "alturas de Satanás", como as de que
fala o Apocalipse, em que tantos se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem
tendo exalçar o voto dos meus amigos? Amigos e inimigos estão, amiúde, em
posições trocadas. Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o
bem, e nos trazem o mal.
Não poucas vezes, pois,
razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a malevolência dos opositores.
Estes nos salvam, quando aqueles nos extraviam. De sorte que, no perdoar aos
inimigos, muita vez não vai somente caridade cristã, senão também justiça
ordinária e reconhecimento humano. E, ainda quando, aos olhos do mundo, como
aos do nosso juízo descaminhado, tenham logrado a nossa desgraça, bem pode ser
que, aos olhos da filosofia, aos da crença e aos da verdade suprema, não nos
hajam contribuído senão para a felicidade.
Este, senhores, será um
saber vulgar, um saber rasteiro, um saber só de experiência feito.
Não é o saber da ciência,
que se libra acima das nuvens, e alteia o voo soberbo, além das regiões siderais,
até aos páramos indevassáveis do infinito. Mas, ainda assim, este saber fácil
mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida em versos imortais; quanto mais
a nós outros, "bichos da terra tão pequenos", a ninharia de ocupar
divagações, como estas, de um dia, folhas de árvore morta, que, talvez, não
vinguem ao de amanhã.
Da ciência estamos aqui numa
catedral. Não cabia em um velho catecúmeno vir ensinar a religião aos seus
bispos e pontífices, nem aos que agora nela recebem as ordens do seu sacerdócio.
E hoje é féria, ensejo para tréguas ao trabalho ordinário, quase dia santo.
Labutastes, a semana toda, o vosso curso de cinco anos, com teorias, hipóteses
e sistemas, com princípios, teses e demonstrações, com leis, códigos e
jurisprudências, com expositores, intérpretes e escolas. Chegou o momento de
vos assentardes, mão por mão, com os vossos sentimentos, de vos pordes à fala
com a vossa consciência, de praticardes familiarmente com os vossos afetos,
esperanças e propósitos.
[...]
Estudante sou. Nada mais.
Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber
estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei
se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e
madrugadas. Muitas lendas se têm inventado, por aí, sobre excessos da minha
vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em
abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados n’água fria. Contos de
imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorri a ele como a estimulante
cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do
sono.
Ao que devo, sim, o mais dos
frutos do meu trabalho, a relativa exabundância de sua fertilidade, a parte
produtiva e durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda, assim
que entrei ao colégio, alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume, e daí
avante o observei, sem cessar, toda a vida. Eduquei nele o meu cérebro, a ponto
de espertar exatamente à hora, que comigo mesmo assentava, ao dormir. Sucedia,
muito amiúde, encetar eu a minha solitária banca de estudo à uma ou às duas da
antemanhã. Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito; e eu fazia apenas
que lhe obedecia, tornando, logo após, àquelas amadas lucubrações, as de que me
lembro com saudade mais deleitosa e entranhável.
Tenho, ainda hoje, convicção
de que nessa observância persistente está o segredo feliz, não só das minhas
primeiras vitórias no trabalho, mas de quantas vantagens alcancei jamais levar
aos meus concorrentes, em todo o andar dos anos, até à velhice. Muito há que já
não subtraio tanto às horas da cama, para acrescentar às do estudo. Mas o
sistema ainda perdura, bem que largamente cerceado nas antigas imoderações. Até
agora, nunca o sol deu comigo deitado e, ainda hoje, um dos meus raros e
modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente.
Mas, senhores, os que
madrugam no ler, convém madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o
refletir. O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas,
principalmente, nas ideias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos,
mediante a transmutação, por que passam, no espírito que os assimila. Um
sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições
digeridas.
Já se vê quanto vai do saber
aparente ao saber real. O saber de aparência crê e ostenta saber tudo. O saber
de realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai apreendendo,
como do que elabora.
Haveis de conhecer, como eu conheço,
países, onde quanto menos ciência se apurar, mais sábios florescem. Há, sim,
dessas regiões por este mundo além. Um homem (nessas terras de promissão) que
nunca se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma, tido e havido é por corrente
e moente no que quer que seja; porque assim o aclamam as trombetas da política,
do elogio mútuo, ou dos corrilhos pessoais, e o povo subscreve a néscia
atoarda. Financeiro, administrador, estadista, Chefe de Estado, ou qualquer
outro lugar de ingente situação e assustadoras responsabilidades, é, a pedir de
boca, o que se diz mão de pronto desempenho, fórmula viva a quaisquer
dificuldades, chave de todos os enigmas.
[...]
Ponho exemplo, senhores.
Nada se leva em menos conta, na judicatura, a uma boa-fé de ofício que o vezo
de tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se cansam debalde em o punir.
Mas a geral habitualidade e a conivência geral o entretêm, inocentam e
universalizam. Destarte se incrementa e desmanda ele em proporções
incalculáveis, chegando as causas a contar a idade por lustros, ou décadas, em
vez de anos.
Mas justiça atrasada não é
justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas
mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no
patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a
lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante
de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas
mãos jaz a sorte do litígio pendente.
Nas sejais, pois, desses
magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as almas do purgatório, ou
arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato.
Não vos pareçais com esses
outros juízes, que, com tabuleta de escrupulosos, imaginam em risco a sua boa
fama, se não evitarem o contato dos pleiteantes, recebendo-os com má sombra, em
lugar de os ouvir a todos com desprevenção, doçura e serenidade.
Não imiteis os que, em se
lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si mesmos põem suspeições rebuscadas,
para esquivar responsabilidades, que seria do seu dever arrostar sem quebra de
ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos.
Não sigais os que argumentam
com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os
acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse
o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a
presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e
reconhecido o delito.
Não acompanheis os que, no
pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu
com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os
acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei processual,
em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai
acusação ainda inverificada.
Não estejais com os que
agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados.
Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente
obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais.
Não julgueis por
considerações de pessoas, ou pelas do valor das quantias litigadas, negando as
somas, que se pleiteiam, em razão da sua grandeza, ou escolhendo, entre as
partes na lide, segundo a situação social delas, seu poderio, opulência e
conspicuidade. Porque quanto mais armados estão de tais armas os poderosos,
mais inclinados é de recear que sejam à extorsão contra os menos ajudados da
fortuna; e, por outro lado, quanto maiores são os valores demandados e maior,
portanto, a lesão arguida, mais grave iniquidade será negar a reparação, que se
demanda.
Não vos mistureis com os
togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à
Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de "fazendeiros".
Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma
lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.
Antes, se admissível fosse
aí qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário; pois essas entidades
são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que
exercem as perseguições, administrativas, políticas e policiais, as que,
demitindo funcionários indemissíveis, rasgando contratos solenes, consumando lesões
de toda a ordem (por não serem os perpetradores de tais atentados os que os
pagam), acumulam, continuamente, sobre o tesouro público terríveis
responsabilidades.
(Discurso na Faculdade de
Direito de São Paulo, 1920)
(Ilustração: Rui-Barbosa; foto)
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