segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

DANDO O TROCO, de Howard Jacobson







Finkler fez por onde.
Foi essa a conclusão de Tyler Finkler à época e também de Julian Treslove. Sam ia ter o troco.
O argumento de Tyler Finkler era mais forte. O marido estava trepando com outras mulheres. Ou se não estivesse trepando com outras mulheres, poderia muito bem estar trepando com outras mulheres, dado o volume de atenção que dispensava a ela.
Para Treslove, simplesmente Finkler teria o troco por ser finkler. Mas Treslove também achava que uma mulher tão bonita quanto Tyler não devia ter de sofrer.
Tyler Finkler. A falecida Tyler Finkler. Lembrando-se dela enquanto tomava um segundo café, Treslove soltou um suspiro profundo.
- Sam está envolvido num projeto que lhe demanda muito - justificara para Tyler, então. - É um sujeito ambicioso. Foi um garoto ambicioso.
- Meu marido foi um garoto!
Treslove sorrira sem jeito. Finkler não havia sido, com efeito, propriamente um garoto, mas não lhe pareceu correto dizer isso à esposa enfurecida de Finkler.
Os dois estavam deitados na cama de Treslove naquele subúrbio que ele insistia em chamar de Hampstead. Não deveriam estar deitados na cama de Treslove em subúrbio algum. Ambos sabiam disso. Mas Finkler fizera por onde.
Tyler não ligara para Treslove a princípio para indagar se podia aparecer para assistir ao primeiro programa da nova série do marido na TV de Treslove.
- Claro - respondeu Treslove -, mas você não assistir com Sam?
- Samuel está assistindo ao programa com a equipe, codinome amante.
Tyler era a única pessoa que ainda chamava Sam de Samuel. Dava-lhe poder sobre o marido, o poder de alguém que conhecera uma pessoa importante antes que ela se tornasse uma pessoa importante. Às vezes, ela ia mais longe e o chamava de Shmuelly para recordá-lo de suas origens, sempre que ele parecia correr o risco de esquecê-las.
- Oh - disse Treslove.
- E o pior é que ela nem é a porra da diretora. Não passa de assistente de produção.
- Ah - disse Treslove, imaginando se Tyler estaria assistindo ao programa com Sam, caso Sam, de forma mais convencional, estivesse trepando com a diretora. Nunca se sabe exatamente onde se pisa quando se trata de finklers, homens ou mulheres, e de questões que giram em torno de humilhação e prestígio. Os não finklers pensam que todas as infidelidades são iguais, mas, por experiência, Treslove sabia que os finklers são capazes de fazer concessões se o terceiro por acaso for alguém importante. O príncipe Philip, Bill Clinton, até o papa. Treslove esperava não estar estereotipando ninguém pensando assim.
- Você vai trazer as crianças? - indagou Treslove.
- As crianças? As crianças estão estudando fora. Logo vão entrar na faculdade. Ao menos finja algum interesse, Julian.
- Não sou chegado a filhos - explicou ele. - Nem aos meus.
- Bom, você não precisa se preocupar. Não vamos fazer filho nenhum. Meu corpo já passou dessa fase.
- Oh - disse Treslove.
Foi a primeira pista de que e a mulher do seu amigo não veriam muita televisão naquela noite.
- Ah - disse ele para si mesmo, debaixo do chuveiro, como se fosse a vítima do que quer que estivesse para acontecer, em lugar de um parceiro ativo na coisa toda. Mas nunca houve a mais remota possibilidade de que pudesse ser capaz de resistir a Tyler, por mais que ela o estivesse usando apenas para se vingar do marido.
Embora Tyler não fosse o tipo de mulher por quem normalmente se apaixonasse, ele se apaixonara por ela mesmo assim na primeira vez que Sam a apresentou como esposa. Não via o amigo havia algum tempo e não sabia  que ele estava namorando firme, muito menos que se casara. Mas esse um hábito de Finkler: erguer a barra da própria vida um tiquinho, tão somente o bastante para fazer Treslove se sentir intrigado e excluído, e depois baixá-la outra vez.
A recém-casada sra. Finkler não era de fato bonita, mas era como se fosse, morena e angulosa, com feições nas quais um homem descuidado poderá se cortar e olhos impiedosamente sarcásticos. Embora houvesse pouca carne a lhe cobrir os ossos, de alguma forma ela conseguia sugerir ocasiões voluptuosas. Sempre que Treslove a encontrava, Tyler estava vestida como se fosse a um banquete oficial, onde comeria pouco, falaria com segurança, dançaria com graça com quantos pares precisasse dançar e atrairia olhares admiradores de todos os presentes. Era o tipo de mulher da qual um homem de sucesso precisa. Competente, sociável, altivamente elegante - desde que esse homem não a esquecesse por causa do sucesso. A palavra úmida vinha à mente de Treslove quando ele pensava em Tyler Finkler. O que o surpreendia, já que sua superfície era árida. Mas Treslove imaginava como ela seria por baixo da superfície, quando penetrasse seu sombrio mistério feminino. Ela habitava algum lugar onde ele jamais estaria e onde ele provavelmente não deveria sequer pensar em estar. Era a eterna mulher finkler. Daí jamais ter existido para Treslove a mais remota possibilidade de recusar a oferta quando a recebeu. Ele precisava descobrir como seria penetrar o mistério feminino sombrio e úmido de uma finkleresa.
Os dois ligaram a televisão, mas não assistiram a um único segmento do programa de Sam.
- Que grande mentiroso - disse ela, despindo um vestido que poderia ser usado para assistir à condecoração do marido como cavaleiro. - Cadê aquela filosofia todo quando não sirvo o jantar dele na hora certa? Cadê aquela filosofia toda quando deveria estar com o pau dentro das calças por aí?
Treslove nada disse. Era estranho estar diante da cara do amigo na tela da TV ao mesmo tempo que segurava a mulher do amigo nos braços. Não que Tyler estivesse de fato em seus braços. Tyler gostava que fizessem amor a distância, como se não estivesse de fato acontecendo. Boa parte do tempo, ela nem olhou para Treslove, trabalhando em seu pênis com a mão atrás das costas, como se abotoasse um sutiã complicado ou lutasse com um vidro difícil de abrir, enquanto comentava o marido, matraqueando incessantemente. Preferia a luz acesa e não via qualquer virtude sensual no silêncio. Apenas quando a penetrou - rapidamente, porque ela lhe disse que não lhe agradavam intercursos longos - Treslove conseguiu de fato encontrar a sombria e cálida umidade finkleresa que antecipara. E ela superou toda e qualquer expectativa.
Deitado de costas, sentiu as lágrimas brotarem em seus olhos. E disse a ela que a amava.
- Não seja ridículo - rebateu Tyler. - Você nem sequer me conhece. Era com Sam que você estava transando.
Ele se sentou na cama.
- Definitivamente não.
- Não me importo. Por mim, tudo bem. A gente pode até repetir. E, se você se excita por trepar com seu amigo, trepar ou lhe passar a perna, não há por que tergiversar, por mim tudo bem.
Treslove se apoiou no cotovelo para fitá-la, mas novamente ela lhe dera as costas. Ele estendeu a mão para lhe acariciar os cabelos.
- Não faça isso - objetou Tyler.
- O que você não entende é que esta é a minha primeira vez.
- A primeira vez que você transa? - Na verdade, ela não parecia muito surpresa.
- A primeira vez... - Soava insosso agora que ele traduzia em palavras. - A primeira vez... você sabe...
- A primeira vez que você sacaneia Samuel? Eu não me preocuparia com isso. Ele não pensaria duas vezes em fazer o mesmo com você. Provavelmente, até já fez. Ele encara o fato como droit de philosophe. Por ser um pensador, acha que tem o direito de foder quem bem quiser.
- Eu não quis dizer isso. Eu quis dizer que você a minha primeira...
Dava para perceber que sua hesitação começava a irritá-la. A cama congelou ao redor dela.
- Primeira o quê? Desembuche. Mulher casada? Mãe? Esposa de um apresentador de TV? Mulher sem diploma?
- Você não tem diploma?
- Primeira o quê, Julian?
Ele engoliu a palavra duas ou três vezes, mas precisava ouvi-la da própria boca. Dizer era quase tão doce em sua perversão quanto fazer.
- Judia - conseguiu finalmente falar. - Judiiiiia - repetiu, demorando-se para terminar, deixando as sílabas esquentarem em seus lábios.
Ela se virou como se pela primeira vez precisasse ver como ele era, os lhos brilhando com zombaria.
- Judia? Você acha mesmo que sou uma judia?
- E não é?
- Essa é a pergunta mais gentil que você poderia me fazer. Mas de onde você tirou a ideia de que eu seja o produto genuíno?
Treslove não conseguiu pensar em algo para dizer, havia tanta coisa.
- Tudo - foi o que, afinal, achou como resposta. Lembrou-se de ter ido a um bar mitzvah de algum dos filhos de Finkler, mas, como não tinha certeza de qual deles, permaneceu calado a esse respeito.
- Bom, o seu tudo é nada - disse ela.
Ele estava amargamente desconcertado. Tyler não nascera judia? Então o que era aquela sombria umidade na qual penetrara?
Ela fez beicinho para ele (e isso por acaso não era tipicamente judeu?).
- Você acha, honestamente, que Samuel se casaria com uma judia?
- Bom, não pensei que não casasse.
- Então, você conhece muito pouco o meu marido. É atrás das gentias que ele corre. Sempre correu. Você devia saber disso. Ele transou com judias. Nasceu judeu. Elas não podem rejeitá-lo. Então, por que perder tempo com elas? Ele teria se casado comigo na igreja se eu pedisse. Ficou ligeiramente furioso comigo porque não pedi.
- Então, por que você não pediu?
Ela riu. Um ruído rouco de uma garganta seca.
- Porque sou uma outra versão dele, só isso. Cada um de nós queria conquistar o universo do outro. Ele queria que as goyim o amassem. Eu queria ser amada pelos judeus. E gostava da ideia de ter filhos judeus. Achava que eles se sairiam melhor na escola. E, cara, não que se saíram mesmo?
(Ela se orgulhava deles - isso também não era tipicamente judeu?).
Treslove estava perplexo.
- Pode-se ter filhos judeus sem ser judia?
- Não aos olhos dos ortodoxos. Não é fácil, de todo jeito. Mas nós fizemos um casamento liberal. Até precisei me converter para isso. Durante dois anos eu investi, aprendi como administrar um lar judeu, como ser uma mãe judia. Me pergunte qualquer coisa que queira saber sobre judaísmo que eu respondo. Como preparar uma galinha kosher, como acender as velas do shabbes, o que fazer em um mikva. Você quer que lhe diga como uma boa judia sabe que sua menstruação acabou? Conheço mais a cultura judaica do que todas as judias echt de Hampstead juntas.
Treslove se abstraiu, mentalmente juntando todas as judias não judias de Hampstead, mas o que perguntou foi:
- O que é um mikva?
- Um banho ritual. A gente vai lá para se purificar para o nosso marido judeu, que morre se encostar numa gota de sangue da gente.
- Sam quis que você fizesse isso?
- Samuel não, eu quis. Samuel não estava nem aí. Achava uma barbárie essa preocupação com o sangue menstrual, do qual, a bem da verdade, ele gosta um bocado, o tarado. Fui ao mikva por mim mesma. Achei calmante. Sou a parte judia do casal, mesmo tendo nascido católica. Sou a princesa judia sobre a qual se lê nos contos de fada, só que não sou judia. A ironia é que...
- Ele trepa com as shiksas?
- Óbvio demais. Ainda sou uma shiksa para ele. Se ele quiser o proibido, pode tê-lo em casa. A ironia é que ele trepa com as judias. Esse cocô da Ronit Kravitz, a assistente de produção. Eu não me espantaria se ele a convertesse.
- Acho que você tinha dito que ela já é judia.
- Convertê-la ao cristianismo, seu pateta.
Treslove calou-se. Havia tanta coisa que ele não entendia. E tanta coisa para deixá-lo nervoso. Sentiu que haviam lhe dado um prêmio que há muito almejava, mas apenas para tirá-lo dele antes que sequer encontrasse um lugar para exibi-lo. Tyler Finkler não era uma finkler! Consequentemente, o profundo, úmido e sombrio mistério de uma mulher finkler continuava, estritamente falando - e esse era um conceito estrito, afinal -, desconhecido para ele.
Ela começou a se vestir.
- Espero não ter decepcionado você - disse Tyler.
- Me decepcionado? Imagine. Você vem ver o segundo programa aqui?
- Reflita a respeito.
- O que há para refletir?
- Ah, você sabe... - respondeu ela.
Tyler não o beijou ao sair.
Mas voltou-se da porta, para fitá-lo.
- Um sábio conselho: não deixem que peguem você falando "judiiiiia" - avisou, imitando a forma lânguida como ele pronunciara a palavra. - Elas não gostam.



(A Questão Finkler, tradução  de Regina Lyra)




(Ilustração: Angel Zárraga - la femme et le pantin)



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