Se das águas que correm do chamado Rio,
armazenam pedras, semáforos, blitz, informações estagnadas,
coito interrompido, por outro lado,
palavras líquidas
me encharcam de marés, correntezas,
rodovias desimpedidas, gozo de frases fluindo em direção
às que transbordam do submerso, com suas sirenes,
indetidas. Rio, lago, lagoa, baía... tantos nomes... tantos
janeiros... na língua que falo, tudo é um só movimento de
águas e trânsitos,
o primeiro tempo inundando o último segundo,
o murmúrio do mundo no discurso,
a suja rasura da dúvida e da pergunta,
na língua que falo, fala o percurso do primeiro susto, o
sussurro da comunhão de tudo o que é raso com o fundo.
Trago a nudez de nervos na língua de mil sons agenciados. E
o que a língua não fala, falam os braços, pernas, buzinas,
ondas, engrenagens... Não tenho leis, dizem,
nem religião ou trabalho, dizem
que, por isso, sou estranho,
sim, sou estranho, abro palavras pelas ruas, ao lado de
buracos, pelas farmácias, ao lado de remédios, pelos bancos,
ao lado de cofres, pela vida,
ao lado de vantagens, sim, sou estranho,
recolho do mundo uns tiros de espanto,
balas ferindo para fazer viver.
Uma certa inquietude me conforma com esta estranheza,
uma inquietude áspera, de instintos
entrelaçados ao pensamento, de começos coexistindo por
todos os cantos,
de errância permissiva de gerações, de construir o que,
para ser habitado, tem de ser logo abandonado.
(A vida é assim)
(Ilustração: Saturno Buttò)
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