domingo, 22 de fevereiro de 2015

A EXTRAORDINÁRIA AVENTURA VIVIDA POR VLADIMIR MAIAKOVSKI NO VERÃO NA DATCHA[1], de Maiakovski









(Púchkino, monte Akula, datcha de Rumiántzev, a 27 verstas[2] pela estrada de ferro de Iaroslávl)


A tarde ardia com cem sóis.

O verão rolava em julho.

O calor se enrolava

no ar e nos lençóis

da datcha onde eu estava.

Na colina de Púchkino, corcunda,

o monte Akula,

e ao pé do monte

a aldeia enruga

a casa dos telhados.

E atrás da aldeia,

um buraco

e no buraco, todo dia,

o mesmo ato:

o sol descia

lento e exato.

E de manhã

outra vez

por toda a parte

lá estava o sol

escarlate.

Dia após dia

isto

começou a irritar-me

terrivelmente.

Um dia me enfureço a tal ponto

que, de pavor, tudo empalidece.

E grito ao sol, de pronto:

“Desce!

Chega de vadiar nessa fornalha!”

E grito ao sol:

“Parasita!

Você, aí, a flanar pelos ares,

e eu, aqui, cheio de tinta,

com a cara nos cartazes!”

E grito ao sol:

“Espere!

Ouça, topete de ouro,

e se em lugar

desse ocaso

de paxá

você baixar em casa

para um chá?”

Que mosca me mordeu!

É o meu fim!

Para mim

sem perder tempo

o sol

alargando os raios-passos

avança pelo campo.

Não quero mostrar medo.

Recuo para o quarto.

Seus olhos brilham no jardim.

Avançam mais.

Pelas janelas,

pelas portas,

pelas frestas,

a massa

solar vem abaixo

e invade a minha casa.

Recobrando o fôlego,

me diz o sol com voz de baixo:

“Pela primeira vez recolho o fogo,

desde que o mundo foi criado.

Você me chamou?

Apanhe o chá,

pegue a compota, poeta!”

Lágrimas na ponta dos olhos

- o calor me fazia desvairar -

eu lhe mostro

o samovar:

“Pois bem,

sente-se, astro!”

Quem me mandou berrar ao sol

insolências sem conta?

Contrafeito

me sento numa ponta

do banco e espero a conta

com um frio no peito.

Mas uma estranha claridade

fluía sobre o quarto

e esquecendo os cuidados

começo

pouco a pouco

a palestrar com o astro.

Falo

disso e daquilo,

como me cansa a Rosta[3],

etc.

E o sol:

“Está certo,

mas não se desgoste,

não pinte as coisas tão pretas.

E eu? Você pensa

que brilhar

é fácil?

Prove, pra ver!

Mas quando se começa

é preciso prosseguir

e a gente vai e brilha pra valer!”

Conversamos até a noite

ou até o que, antes, eram trevas.

Como falar, ali, de sombras?

Ficamos íntimos,

os dois.

Logo,

com desassombro,

estou batendo no seu ombro.

E o sol, por fim:

“Somos amigos

pra sempre, eu de você,

você de mim.

Vamos poeta,

cantar,

luzir

no lixo cinza do universo.

Eu verterei o meu sol

e você o seu

com seus versos.”

O muro das sombras,

prisão das trevas,

desaba sob o obus

dos nossos sóis de duas bocas.

Confusão de poesia e luz,

chamas por toda a parte.

Se o sol se cansa

e a noite lenta

quer ir pra cama,

marmota sonolenta,

eu, de repente,

inflamo a minha flama

e o dia fulge novamente.

Brilhar pra sempre,

brilhar como um farol,

brilhar com brilho eterno,

gente é pra brilhar,

que tudo mais vá pro inferno,

este é o meu slogan

e o do sol.






(Maiakóvski; tradução de Augusto de Campos)





Notas:


1. Datcha – casa de veraneio.

2. Versta – medida itinerária equivalente a 1,067m.

3. Rosta – A Agência Telegráfica Russa, para a qual Maiakovski executou cartazes satíricos de notícias – as “janelas” Rosta -, de 1919 a 1922.)




(Ilustração: Natalia Gontcharova - os pescadores, 1909)



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