domingo, 2 de novembro de 2014
ADÁGIO NEGRO, de Carlos Tavares
Para
Marilda
(...)
Pois de tudo fica um pouco.
Fica
um pouco de teu queixo
no
queixo de tua filha.
De
teu áspero silêncio
um
pouco ficou, um pouco
nos
muros zangados,
nas
folhas, mudas, que sobem.
Ficou
um pouco de tudo
no
pires de porcelana,
dragão
partido, flor branca,
ficou
um pouco
de
ruga na vossa testa,
retrato.
(...)
E de tudo fica um pouco.
Oh
abre os vidros de loção
e
abafa
o
insuportável mau cheiro da memória.
Carlos
Drummond de Andrade
Na brancura espessa da
manhã o sol imprime suas ondas de luz nas paredes do meu quarto e me reduz a um
peixe perdido no aquário da existência. Já não sinto as lanças da solidão no
meu corpo, nado em direção ao meu nicho de nuvens, toco as bolhas de ar que
brindam meus pulmões com a fumaça encardida dos cigarros que fumei enquanto
lutava contra a insônia. A impressão de que a terra parou, de que as pessoas
não existem, eu não existo, que tudo é ilusão, golpe de vista, torpor, delírio,
maquinações do sonho e do inconsciente me persegue há semanas; e eu já não sei
se vale a pena erguer-me dos lençóis, se alguém sentirá a minha falta se eu
resolver ficar aqui deitado, infinitamente. O problema é que não sinto mais
nada - nem amor, nem desamor, nem alegria, nem tristeza; não faz tanto tempo
que estou assim, exposto às formigas que procuram invadir o meu leito, aos
maribondos que penetram o quarto pelas janelas, aos gafanhotos que montam
guarda sobre os móveis, às baratas que rastejam pelos meus braços, aos morcegos
que insistem na volúpia do sangue, às ratazanas que recusam o veneno e partem
para o ataque, trucidam borboletas e minhocas - meu quarto virou um delírio, um
circo, uma arena de pesadelos!
A única vantagem dos
lençóis, das cortinas cerradas, da companhia dos bichos é que o mundo duro e
rígido continua girando lá fora e eu padeço de tudo aqui dentro sem incomodar
ninguém, sequer o zelador, que antes era obrigado a subir três andares para
cobrar o condomínio; mas ele desistiu, afinal o prédio será demolido em breve,
sua estrutura está condenada e certamente desabarei junto com ele. Serei parte
desses futuros escombros, pedras, poeira, caliça e ferragens, meu coração
soterrado, meus olhos triturados, a ossada na argamassa ressequida da
destruição, o barulho dos guindastes erguendo do chão essa carcaça sem brilho,
campanário de pequenos pecados que saí distribuindo pelas estradas dia após
dia, quem sabe escape ao menos a memória de uma época em que ainda podia me
fazer presente na vida, aquele antigo corpo da juventude que o tempo derruiu,
minhas tristes ruínas, o fim tão almejado que se aproxima.
Além do porteiro, o
telefone toca duas ou três vezes por dia, depois para, eu nunca atendo, acabo
puxando a tomada, apago as luzes, fico na penumbra como pássaro assustado no
fio, cabelos desalinhados, ralos, a calva aos poucos deixando reluzir o que
resta do meu crânio, esse brilho fosco de cada dia, meus olhos que nada
enxergam além do reflexo pálido e céreo do meu rosto no espelho. Depois resolvo
tomar um banho, mas a água foi cortada, as torneiras pingam o barro molhado e a
ferrugem das encanações condenadas, afinal apenas eu, um escriturário que trabalha
meio período no andar de cima, e o zelador, habitamos essa espelunca que em
breve tombará em meio ao quarteirão mais desolado do bairro.
Resolvo ficar de frente
para o espelho e noto que ganhei uma nova cicatriz, no centro do queixo; tenho
mais duas na face esquerda, três na direita, cinco na testa, mas as raízes
delas residem no tronco interior do meu corpo, florescem apenas as marcas que
deverão repousar para sempre em cada lado do meu rosto, embaixo, acima das
mandíbulas gastas que trituram apenas o ar que ainda respiro. Às vezes costumo
passar de duas a três horas diante do espelho e não queiram saber os detalhes
que descubro, dentro e fora dos globos oculares, nas estrias do branco dos
olhos e nas fímbrias azuladas que imagino ver no cristalino estragado pelas
queimaduras do sol, resultado das semanas que passei antes de me enfurnar,
deitado sob o sol perto de uma estrada que a nada leva, apenas uma estrada que
consegui trilhar sem medo, desarmado dos perigos, exposto ao vento e à chuva,
simplesmente porque achava ser aquela uma das experiências de solidão mais
ousadas que alguém poderia intentar. Caminhar, andar, caminhar, correr, passo a
passo em direção ao nada, simplesmente ao nada que se alonga diante de meus
olhos dentro e fora da estrada porque sei que sua intersecção é o meu próprio
corpo em ruínas, a boca sem dentes, as mãos cobertas de feridas, as pernas
cansadas, o tórax arfante, os ombros caídos, o olhar ensombreado e tristonho.
Observei no espelho que as rugas despontam, reduzem o meu semblante ao pardo
trêmulo e ondeante das máscaras funerárias, a testa engelhada, o nariz
entortado, as orelhas amarrotadas como pequenos abanos de palha, o pescoço
flácido e as aranhas vasculares instaladas nas teias das artérias que ainda
pulsam, bombeiam um pouco de de ar, de sangue, de vida.
O tempo que passei
contemplando esses estragos fora o suficiente para imaginar que está na hora de
colher as pedras, arrumar a casa, podar as primaveras que se enramam nos
parapeitos das janelas, recortar as rosas das jardineiras, encaixotar os
livros, arrumar as malas, rever as palavras, redesenhar a sede da memória e do
amor, revolver as florestas de cal onde me escondi do mundo, catar os sinos que
anunciam a demolição, retirar as cercas de dentro do peito, reflorir as
varandas que se fecham ao meu redor e quase me asfixiam, reentoar as distâncias
entre o que fui e o que hoje sou, curvar-me aos gerânios, beijar a terra dos
finados, sacudir as cinzas do terno e apertar as gravatas, modelar os olhos, o
nariz, a boca que já não ri, o cenho de cera que emurchece, moldar as mãos e o
beijo, lapidar a falta que não se faz quando se decide recuar e sumir,
reconhecer o terreno das desilusões, o pântano, as arapucas do cotidiano,
apertar os cravos dessa coleira de agonia, destronar as fúrias que me espreitam
no sonho e no sono, remontar os púlpitos dos anjos, rever as preces para nada
desfiadas, desancar a realidade, sorrir para o delírio, ter a coragem do
devaneio e da treva, da solidão dos ratos, devolver a prata das ruínas, recitar
o silêncio das madrugadas, retrilhar as palavras na luta contra as traças,
repintar o jardim, rebrotar as cores dessa paixão, cobrir-me de lírios e
violetas que se despregam dos caules esturricados, devolver as auroras aos
pássaros que aprisiono, reavivar as noites com os meus próprios sussurros,
torcer as barras dessa angústia, é hora de dobrar as esquinas, desaparecer na
textura das sombras, repor na penumbra o éter do soluço, é hora de encerrar a
caminhada, lustrar o espanto, fechar os laços nas vigas, abotoar a camisa, os
punhos, os sapatos, recolher as armas, partir, singrar, sumir, voar.
(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol)
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