quarta-feira, 5 de novembro de 2014

INFÂNCIA, de Paulo Mendes Campos



   






Há muito, arquiteturas corrompidas,

Frustrados amarelos e o carmim

De altas flores à noite se inclinaram

Sobre o peixe cego de um jardim.

Velavam o luar da madrugada

Os panos do varal dependurados;

Usávamos mordaças de metal

Mas os lábios se abriam se beijados.

Coados em noturna claridade,

Na copa, os utensílios da cozinha

Falavam duas vidas diferentes,

Separando da vossa a vida minha.

Meu pai tinha um cavalo e um chicote;

No quintal dava pedra e tangerina;

A noite devolvia o caçador

Com a perna de pau , a carabina.

Doou-me a pedra um dia o seu suplício.

A carapaça dos besouros era dura

Como a vida — contradição poética —

Quando os assassinava por ternura.

Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,

O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.

Só depois surge a sua infância-texto,

Explicação das aves que o comem.

Só depois antes aparece ao homem.

A morte é antes, feroz lembrança

Do que aconteceu, e nada mais

Aconteceu; o resto é esperança.

O que comigo se passou e passa

É pena que ninguém nunca o explique:

Caminhos de mim para mim, silvados,

Sarçais em que se perde o verde Henrique.

Há comigo, sem dúvida, a aurora,

Alba sanguínea, menstruada aurora,

Marchetada de musgo umedecido,

Fauna e flora, flor e hora, passiflora,




Espaço afeito a meu cansaço, fonte,

Fonte, consoladora dos aflitos,

Rainha do céu, torre de marfim,

Vinho dos bêbados, altar do mito.

Certeza nenhuma tive muitos anos ,

Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,

Senão de que das trevas correria

O sangue fresco de uma aurora nova.

Reparte-nos o sol em fantasias

Mas à noite é a alma arrebatada.

A madrugada une corpo e alma

Como o amante unido à sua amada .




O melhor texto li naquele tempo,

Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,

No azul do azul lavado pela chuva,

No grito das grutas, na luz do aquário,

No claro-azul desenho das ramagens,

Nas hortaliças do quintal molhado

( Onde também floria a rosa brava )

No topázio do gato, no be-bop

Do pato, na romã banal, na trava

Do caju, no batuque do gambá,

No sol-com-chuva, já quando a manhã

Ia lavar a boca no riacho.

Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,

Quando pode ser onde, onde é quando.




A besta era serena e atendia

Pelo suave nome de Suzana.

Em nossa mão à tarde ela comia

O sal e a palha da ternura humana.

O cavalo Joaquim era vermelho

Com duas rosas brancas no abdômen;

À noite o vi comer um girassol;

Era um cavalo estranho feito um homem.

Tínhamos pombas que traziam tardes

Meigas quando voltavam aos pombais;

Voaram para a morte as pombas frágeis

E as tardes não voltaram nunca mais.

Sorria à toa quando o horizonte

Estrangulava o grito do socó

Que procurava a fêmea na campina.

Que vida a minha vida! E ria só.




Que âncora poderosa carregamos

Em nossa noite cega atribulada!

Que força do destino tem a carne

Feita de estrelas turvas e de nada!

Sou restos de um menino que passou.

Sou rastos erradios num caminho

Que não segue, nem volta, que circunda

A escuridão como os braços de um moinho.




(Ilustração: F. Morgan - colin-maillard)






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