quinta-feira, 25 de junho de 2009

OS BEBÊS DO COSMOS, de Salvador Nogueira







Muitas pessoas vivem dizendo por aí que o Universo conspira contra elas. Não dê ouvidos; é puro espírito persecutório, e a ciência pode provar. Todas as evidências coletadas até hoje dão conta de que o Universo de fato está metido em alguma estranha conspiração, mas para nos favorecer. Na verdade, a impressão que se tem, do lado de dentro do cosmos e 13,7 bilhões de anos após seu surgimento, é que ele foi "regulado" exatamente para nós. Por quê? Esse talvez seja o maior desafio intelectual enfrentado pela espécie humana.

Resumidamente, o mistério é o seguinte: toda a dinâmica do cosmos – sua expansão, a formação de estrelas, o surgimento de planetas ao redor dessas estrelas, a criação de elementos químicos simples e complexos, e assim por diante – depende de um conjunto de parâmetros. "Apenas seis números", como disse o astrônomo britânico Martin Rees, no título de seu livro sobre o assunto.

Um deles, por exemplo, é a intensidade da força gravitacional. Outro é a massa dos prótons, partículas de carga positiva que ditam as propriedades dos átomos, tijolos de que são feitas todas as coisas no Universo. Ou o número de Planck, que designa as menores medidas significativas para qualquer coisa que exista. E por aí vai. Hoje, ninguém sabe por que essas coisas todas estão reguladas do jeito que estão. Mas o mais surpreendente é que se qualquer uma dessas medidas fosse só um pouquinho diferente, para mais ou para menos, ninguém estaria aqui para perguntar.

A força da gravidade, por exemplo. Fosse só um pouco mais forte, só permitiria a existência de estrelas de vida efêmera, que queimariam seu combustível todo rapidamente e explodiriam em pouco tempo, sem dar chance ao surgimento de formas de vida. Fosse ainda mais intensa, talvez tivesse impedido de cara a expansão do Universo jovem, fazendo-o implodir antes que alguma coisa mais interessante pudesse acontecer. Fosse mais fraca, e as estrelas jamais se formariam. Enfim, qualquer mexida parece necessariamente ser para pior. O mesmo, de uma forma geral, acontece com todos os outros parâmetros que configuram o cosmos em que vivemos. É um grande mistério, que evoca todo tipo de explicação.

Há uma esperança de que, quando alguém conseguir juntar toda a física numa única teoria, conciliando seus dois grandes pilares (a mecânica quântica, que explica o mundo do muito pequeno, e a relatividade, que explica o mundo do muito grande), essas propriedades possam emergir naturalmente das equações. Mas diminui a cada dia o número de cientistas que acreditam nesse "milagre". É mais provável a essa altura que tenhamos de viver com o fato de que, de uma gama infindável de universos possíveis, o nosso tenha simplesmente escolhido ser bonzinho conosco.

Claro, essa é uma imagem que parece quase implorar pela existência de um "Criador", uma entidade consciente responsável pela "regulagem" do Universo, de modo a torná-lo propício à nossa existência. (E eu não tenho nada contra quem considere o problema solucionado assim.). Mas evocar uma explicação desse tipo vai contra os princípios científicos, pois significa admitir que não há uma razão lógica, natural ou mesmo passível de verificação experimental. Pressupõe que temos de aceitar que nosso cosmos é como é, tão benevolente conosco por projeto, e é isso. Em outras palavras, nenhum cientista vai comprar a ideia sem antes esgotar todas as opções.

Nesse sentido, uma alternativa que já é popular entre os físicos teóricos há algumas décadas é tentar diluir toda essa benevolência cósmica. Ou seja, supor que o nosso Universo, o nosso Big Bang, seja apenas um, de infindos que acontecem num "multiverso". Se infinitos novos universos estão surgindo o tempo todo, de forma aleatória, haverá muitos em péssima sintonia, que logo implodirão de volta a seu estágio primordial ou em que nada digno de nota acontecerá em zilhões de anos, mas uns poucos serão bons a ponto de gerar criaturas como nós. Daí nasce o chamado princípio antrópico – a noção de que podemos nos colocar no topo da hierarquia neste Universo. Afinal, ao menos por aqui o cosmos calhou de ser especialmente "sintonizado" para nós. De acordo com muitos cientistas, essa é uma saída suficientemente honrosa, e vários físicos de renome, como Stephen Hawking e Martin Rees, têm sido vistos por aí defendendo o princípio antrópico.Mas há quem considere essa solução estética e filosoficamente insatisfatória, para não dizer pouco passível de comprovação experimental. Em resumo, não muito científica. Talvez a resposta para explicar a configuração do Universo seja outra. E se ele puder ter bebês?

Em essência, essa é a teoria de Lee Smolin, físico norte-americano que trabalha no Perimeter Institute, em Ontário, Canadá. Ele propõe que o Universo na verdade não esteja configurado para favorecer o surgimento de formas de vida como nós, mas sim para produzir o maior número de buracos negros possível. O interior de cada buraco negro, por sua vez, abrigaria um novo universo, novinho em folha. Ou seja, quanto mais buracos negros um universo fosse capaz de fabricar, mais "filhos" ele teria, passando adiante essa característica para seus "descendentes". Pois é, você já deve estar pegando o espírito da coisa: é Charles Darwin aplicado à evolução dos universos. Não é à toa que Smolin chama sua teoria de "seleção cosmológica natural".

Pode parecer maluco, mas talvez valha a pena lembrar que o nosso Universo, no momento do chamado Big Bang, estava comprimido num ponto muito denso e muito pequeno (infinitamente compactado, se levarmos a teoria da relatividade ao pé da letra), e essa é exatamente a descrição de um buraco negro, uma estrela que implodiu de forma tão radical a ponto de caber num espaço extremamente contido. A gravidade ali fica tão intensa que nem mesmo a luz consegue escapar de lá. É como se a força gravitacional na verdade enrolasse aquele pequeno pedaço do cosmos em torno de si mesmo, arrancando-o do espaço e do tempo em que vivemos. Quer melhor lugar para criar um universo inteiro longe das nossas vistas?

A ideia de Smolin é que o primeiro universo da história do "multiverso" fosse um daqueles desengonçados e desregulados aleatórios, incapaz de produzir estrelas e de implosão rápida. Sua implosão (como a de um buraco negro) daria origem a outro universo, com uma regulagem só um pouco diferente, talvez um pouco melhor. Ao longo de muitas "gerações", finalmente surgiria um universo capaz de produzir estrelas. Apenas algumas delas teriam massa suficiente para, ao fim de suas vidas, virarem buracos negros, mas isso já daria um grande impulso à prole desse primeiro universo capaz de ter muitos filhos. E o processo continuaria, melhorando cada vez mais a capacidade de gerar universos pródigos em descendentes. Para Smolin, nosso Universo estaria bem adiante nesse processo evolutivo, com uma capacidade imensa de produzir buracos negros.

O efeito é que, com o tempo, os universos capazes de ter muitos filhos predominariam no "multiverso", criando uma configuração que, do ponto de vista de uma distribuição aleatória, seria muito improvável. Ou seja, por esse raciocínio, passa a ser muito mais provável que universos como o nosso (feitos na verdade para produzir buracos negros, não pessoas) sejam criados. Dispensa-se um Criador e também o princípio antrópico, numa tacada só.

Muito bonito, mas como provar? Smolin tem algumas sugestões. Primeiro, ele faz predições teóricas a partir de sua teoria, que outros cientistas poderão tentar desafiar usando apenas papel e caneta. Por exemplo, se ele estiver correto, ninguém conseguirá manipular os parâmetros do Universo de forma a criar um cosmos hipotético que seja muito mais prolífico em buracos negros que o atual.

O físico americano também sugere esforços de observação astronômica para apoiar sua hipótese. Por exemplo, pela seleção cosmológica natural, entre duas teorias diferentes existentes hoje sobre as condições pelas quais se formam buracos negros, a que exige a menor massa inicial (e portanto permite maior surgimento de buracos) deve ser a verdadeira. Se alguém achar uma estrela morta com mais massa do que esse valor mínimo e que, ainda assim, escapou ao destino de virar um buraco negro, Smolin promete jogar sua teoria na privada e puxar a descarga.

Finalmente, ele diz que os observatórios de ondas gravitacionais – há vários em construção ao redor do mundo, e o maior deles já está em operação, composto por duas instalações nos Estados Unidos – poderão no futuro detectar o eco gravitacional do próprio Big Bang, que conteria alguma informação sobre o que ocorreu antes do surgimento do nosso Universo, se é que houve algo antes. Essas informações talvez possam corroborar ou derrubar a seleção cosmológica natural.

Seja qual for a resposta correta, é certo que devemos comemorar, por duas razões. Uma, porque, seja qual for o motivo, somos bem-vindos a este Universo. Outra, porque temos um bem precioso – a razão – que nos permite especular sobre tudo isso. Considerando que os seres humanos são feitos dos mesmos átomos que um dia foram fabricados no coração das estrelas, não podemos evitar a conclusão de que nossa existência e nossas especulações não são nada mais que o próprio Universo fazendo uma tremenda força para entender a si próprio. A ausência de respostas definitivas dificilmente estraga a beleza dessa constatação.




(Folha Online, 29.9.2005)




(Ilustração: Bill Feigenbaum - bed, bath and beyond infinite)




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