terça-feira, 16 de junho de 2009

O SOBRADO, de Autran Dourado






O senhor querendo saber, primeiro veja:

Ali naquela casa de muitas janelas de bandeiras coloridas vivia Rosalina. Casa de gente de casta, segundo eles antigamente. Ainda conserva a imponência e o porte senhorial, o ar solarengo que o tempo de todo não comeu. As cores das janelas e da porta estão lavadas de velhas, o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra mesmo as pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida; vidros quebrados nas vidraças, resultado do ataque da meninada nos dias de reinação, quando vinham provocar Rosalina (não de propósito e ruindade, mais sem-que-fazer de menino), escondida detrás das cortinas e reposteiros; nos peitoris das sacadas de ferro rendilhado formando flores estilizadas, setas, volutas, esses e gregas, faltam muitas das pinhas de cristal facetado cor de vinho que arrematavam nas cantoneiras a leveza daqueles balcões.

O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração – imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas conduto, o olhar é que importa. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mais além do além, no fundo do tempo. Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando, chegue até ao tempo do coronel Honório – João Capistrano Honório Cota, de nome e conhecimento geral da gente, homem cumpridor, de quem o senhor tanto quer saber, de quem já conhece a fama, de ouvido – de quem se falará mais adiante, nas terras dele, ou melhor, do pai – Lucas Procópio Honório Cota, homem de quem a gente se lembra por ouvir dizer, de passado escondido e muito tenebroso, coisas contadas em horas mortas, esfumado, já lenda-já história, lembranças se azulando, paulista de torna-viagem das Minas, de longes sertões, quando o ouro secou para a desgraça geral, as grupiaras emudeceram; e eles tiveram de voltar, esquecidos das pedras e do outro, das sonhadas riquezas impossíveis, criadores de gado, potentados, esbanjadores ou unhas-de-fome – conforme a experiência tida ou a natureza, fazendeiros agora, lúbricos, negreiros, incestuosos, demarcadores, ladrilhando com seus filhos e escravos este chão deserto, navegadores de montes e montanhas, políticos e sonegadores, e vieram plantando fazendas, cercando currais, montando pousos e vendas, semeando cidades no grande país das Gerais, buscando as terras boas de plantio, as terras roxas e de outras cores em que o sangue e as lágrimas entram como corantes – nas datas de que, por doação e todos os mais requisitos da lei, se ergueu a Igreja do Carmo e se fez o Largo.

Um recuo no tempo, pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.

A casa fica no Largo do Carmo, onde se plantou a igreja. A Igreja do Carmo foi a primeira construção de pedra e alvenaria da cidade. Depois é que Lucas Procópio mandou construir a sua casa (na época apenas a parte de baixo), tentando fazer parelha com a igreja. Uma igreja em que se procurou no risco e na fachada seguir a experiência que os homens trouxeram das igrejas de Outro Preto e São João del-Rei: só que mais pobre, sem a riqueza dos frontões de pedra em que o barroco brinca as suas volutas vadias; mesmo assim imponente, toda branca, com seus cunhais e marcos de pedra, porta almofadada, as duas janelas-de-púlpito ladeando em cima o vão da porta, as cornijas trabalhadas em curvas leves, a torre solitária nascendo na cumeeira do telhado de duas-águas. Da torre pode se ver, em vôo de pássaro, o casario que cresceu para trás da Igreja do Carmo soberana, sobranceira, dominando de frente toda a cidade. /Da torre pode se ver a lisura vazia do largo de terra batida, onde às vezes se formam redemoinhos coriscantes de poeira, o cruzeiro no meio da praça, as ruas que dali partem, os muros brancos do cemitério, as voçorocas de goelas vermelhas na beira da estrada que deixa a cidade.


(...)


Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, não com aqueles olhos embaciados, aquela neutralidade morna. Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.

No tempo de Lucas Procópio a casa era de um só pavimento, ao jeito dele; pesada amarrada ao chão, com as suas quatro janelas, no meio a porta grossa, rústica, alta. Como o coronel Honório Cota, seu filho, acrescentou a fortuna do pai. Aumentou-lhe a fazenda, mudou-lhe o nome para Fazenda da Pedra Menina – homem sem a rudeza do pai, mais civilizado, vamos dizer assim, cuidando muito da sua aparência, do seu porte de senhor, do seu orgulho – assim fez ele com a casa; assobradou-a, pôs todo gosto no segundo pavimento. Se as vergas das janelas de baixo eram retas pesadas, denunciando talvez o caráter duro, agreste, soturno, do velho Lucas Procópio, as das janelas de cima, sobrepostas nos vãos de baixo, eram adoçadas por uma leve curva, coroadas e enriquecidas de cornijas delicadas que acompanhavam a ondulação das vergas.

Quando o mestre que o coronel Honório Cota mandou buscar de muito longe, só para remodelar a sua casa, disse quem sabe não é melhor a gente trocar as vergas das janelas de baixo, a gente dá a mesma curva que o senhor quer dar nas de cima, já vi muitas assim em Ouro Preto e São João, ele trancou a cara. Ora, já se viu, mudar, pensou. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. E como o homem ficasse meio atarantado sem entender direito aquela argamassa estranha de gente e casa, vindo de outras bandas, o coronel puxou fundo um pigarro e desse o senhor não entende do seu ofício? Pois faça como lhe digo, assunte, bota a cabeça pra funcionar e cuide do risco. Se ficar bom eu aprovo. O homem quis dizer alguma coisa, pondera, falar sobre os usos, mas o coronel foi perempto. E olhe, moço, disse ele, eu não quero um sobrado que fique assim feito uma casa em riba da outra. Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos pra sempre. O mestre viu aquele olho rútilo, parado, viu que o coronel já não falava mais com ele mas para alguém muito longe ou para as bandas do ninguém. Picou a mula, se foi para o seu serviço.

O mestre conversou com a gente da cidade, especulou, quis saber como era mesmo o velho Lucas Procópio Honório Cota. É pra compor a fachada, dizia explicadinho na sua voz aflautada, com medo de irem contar a seu coronel Honório Cota que ele andava bisbilhotando a vida do falecido senhor pai dele, o famoso Lucas Procópio Honório Cota.

Coisa de pouca monta ficou sabendo, a não ser as brumosas histórias de um homem antigo que fazia justiça sozinho, que se metia com os seus escravos por aqueles matos, devassando, negociando, trapaceando, negaceando, povoando, alargando os seus domínios, potentado, senhor rei absoluto. Aquela dureza não ajudava no risco. Melhor mesmo deixar as vergas como estavam. Quem sabe ele não concorda em botar uma cornija encimando a porta, pra dar mais nobreza. Ah, disto ele vai gostar. A porta eu ponho uma de duas folhas, bem trabalhada, almofadas pra de grandes, ele não querer ficar com aquela caindo aos pedaços, mais semelhando porta de curral, salvo seja, ainda bem que ele não está me ouvindo. Ele não quer derrubar é as vergas.

Eu e ele juntos pra sempre, foi repetindo o mestre na sua toada enquanto cuidava do risco.

Ao contrário do que suspeitou o coronel Honório, o mestre entendia do ofício. Fez crescer do chão feito uma árvore a casa acachapada, deu-lhe leveza e vida. O mestre ruminou, procurava difundir num só todo (compôs volumes cúbicos, buscou uma clara simetria nos vãos da fachada, deu-lhe vôo e leveza) aquelas duas figuras – o brumoso Lucas Procópio e aquele ali, o coronel João Capistrano Honório Cota.

O sobrado ficou pronto. À primeira vista ninguém diz – o senhor mesmo sós agora repara, depois que eu falei – que aquela casa nasceu de outra casa. Mas se atentar bem pode ver numa só casa, numa só pessoa, os traços de duas pessoas distintas: Lucas Procópio e João Capistrano Honório Cota. Eu ele juntos pra sempre, dizia a toada do mestre, a caminho de sua terra.

O senhor repara como ficou a porta, de duas folhas, as ricas almofadas. Não ficou mesmo melhor? Veja como combina com as janelas de cima e não deixa de combinar também com as janelas de baixo, mais pesadonas. O mestre amarrou o risco, não tem linha dominante, nas como tudo vem dar na porta. Que capricho do mestre, com sua vozinha aflautada, ninguém diria, tinha muita força.

Vejo que o senhor não está muito interessado no sobrado, digo como casa. Não carece de mentir, estou mirando na sua pessoa, nos seus olhos. Toda vez que falo em gente, os seus olhos arregalam, só faltam minar água. Já sei, quer saber tudo por inteiro, de vez. Quer saber as histórias, a história, a gente vê logo. Quer saber de Lucas Procópio, de João Capistrano Honório Cota, de Rosalina. De tudo que aconteceu. O senhor talvez esteja querendo sair por aí, deixar o guia seu criado de lado, bisbilhotar feito fez o mestre no risco do sobrado, pra compor uma história. Já ouviu falar de Quiquina, talvez esteja querendo sair catando ela por aí, ver o que ela diz. É baixo, ela nunca quis dizer, ela não diz. Mesmo ela dizendo, nos seus modos lá dela, o senhor não ia entender, é muito custoso a gente entender Quiquina, já era antes, depois do que aconteceu.

O senhor diz que gosta de antigualhas. Não sei, a gente diz uma coisa e pensa outra. Diz que gosta apenas por delicadeza, talvez não. Talvez nem me acompanhe. Ah, gosta mesmo, de verdade? Então me siga, paga a pena, o sobrado é antigo de velho. Veja o sobrado, que garantia, achinesado, piramidal, volumoso, as bocas encarreiradas das telhas. Olhe só como os remates abrandam o volume do telhado, parece até coisa do Oriente, feito se diz; como empina – o telhado – na cumeeira e as quinas das beiradas, para continuar voando. Mas olhe como ele não pesa em cima da casa, como parece pousado de leve. Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo dório que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagine; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história.

E agora chega, não? Estou vendo que o senhor quer é gente. Paciência, só um pouco mais, um gostinho só. Volte ao começo, às janelas coloridas. Os vidros das bandeiras nas janelas de cima, azul-garrafa e roxo, em formato de margarida. O roxo é o mesmo das pinhas de cristal. Que capricho! Não fazem mais disto hoje-em-dia. Que exagero de antigamente!

O senhor querendo, pode voltar para o seu olho de naturalista, que só o já, o agora: o olho não se move, como o barroco se move. Tem razão, a casa está mesmo carecendo de reparo, de pintura, de restauração, como se diz. Até capim está dando em cima do telhado, e quando em dia de chuva, é um pipocar de goteiras sem fim.

(E então, silêncio, Rosalina vai chegar na janela.)



(Ópera dos mortos)



(Ilustração: Praça Dr. Jorge, na cidade de Lavras, MG - década de 1930)






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