Muitas das pessoas que lidam com as artes e as opiniões no Brasil tendem, mesmo sem querer, a ter um olhar excessivamente sociológico sobre as questões, quaisquer que sejam estas. Estética, ética e mesmo a lógica costumam ter valor só até onde possam provar ou corroborar uma agenda que deriva da visão que se tem da sociedade brasileira.
Dos livros aos esportes, tenho quase sempre a impressão de que o debate termina nas velhas oposições ideológicas, que generalizam sobre o que o País é e deveria ser. Até mesmo por baixo de argumentos dados em termos técnicos ou de narrativas baseadas em situações específicas, lá está ele: um discurso sobre a identidade nacional.
Veja no cinema da dita “retomada”, nos últimos 15 anos, a quantidade de filmes que falam de violência, periferia, sertão, etc. Sim, é natural que boa parte da ficção de um país aborde fraturas da realidade atual, mas o maior problema está no tom em que isso é feito. São filmes que misturam a pretensão de fazer sociologia com a superficialidade, com a incapacidade de ir além do registro dos costumes e das mazelas. É como se o cineasta tivesse um sentimento de culpa por pertencer à faixa abonada da sociedade – sendo publicitário ou filho de banqueiro – e precisasse redimi-la com a tentativa de chocar e comover o espectador.
Qualquer intimismo corre o risco de soar alienação “burguesa”. Não se tem ambivalência moral; não se pensa na forma senão como efeito. No mundo literário não é muito diferente. Afinal, estamos num país onde a hegemonia acadêmica dita que a ocupação central de Machado de Assis era criticar o capitalismo brasileiro, a “elite” pseudo liberal que, segundo eles, segue sendo exatamente a mesma há 500 anos. Do outro lado, temos críticos que são capazes de negar o valor criativo da poesia de João Cabral de Melo Neto porque ele se dizia comunista.
No meio ficam, ainda, criadores geniais como Guimarães Rosa, cuja obra continua a ser debatida ou como exaltação dos sertanejos ou como exercício de linguagem; para ambos os lados, é como se Diadorim e Riobaldo não fossem personagens ricos e complexos, mas emblemas de suas condições sociais.
Chamei isso outro de dia de “tropismo literário”, ao comentar o novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado. As declarações do autor não puderam ser mais claras, como a de que no Brasil ninguém é branco (leite), pois todos têm sangue negro e índio em suas linhagens. Suponhamos que seja verdade, se é que é possível definirem que momento uma raça começa e outra termina. Mas um povo se define por sua composição étnica? E será esse o único tema literário do Brasil?
No outro extremo, qualquer tentativa de realismo que não sustente as opiniões do crítico é classificada de regionalismo ou esquerdismo. Foi preciso um estrangeiro, Otto Maria Carpeaux, para perceber que a grandeza de Graciliano Ramos não estava meramente na descrição da miséria.
Há, por certo, versões mais sofisticadas dessa mania sociológica. Ela vem embalada na forma de teses definitivas sobre a essência nacional. Já li, por exemplo, que o traço distintivo da literatura brasileira seria o memorialismo. Ou então que a singeleza das artes visuais nacionais – com poucas exceções de densidade, como Iberê Camargo – seria sua vocação histórica, mais que uma secularidade formal. E há versões bem mais pedestres, como no futebol, que seria tradução da alegria e sensualidade superiores dos brasileiros. Ronaldinho era o gênio que dominava o futebol arte, o poeta do drible; já o outro Ronaldo era “objetivo”, “produto de marketing”, uma espécie de logomarca antipatriótica. Quem diria hoje...
Essa derrota da filosofia para a sociologia ou antropologia não é exclusiva de artistas, intelectuais e jornalistas. Ela faz parte da cultura brasileira no amplo sentido, em que o debate é trocado pelo desejo, a análise pelo sentimentalismo, o confronto pelo compadrio. Mais do que enxergar a realidade, o que se busca é adequá-la aos conceitos preexistentes, aos preconceitos de um país que se julga livre deles. Porque aí cada um se reassegura das posições que tomou, mesmo diante dos fatos. Tudo vira sociologia, e das mais pobres.
(OESP/10/5/2009)
(Ilustração: Di Cavalcanti)
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