sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O BIRÔ DE ASSASSINATOS DE JACK LONDON, de Alberto Manguel



Filho de um astrólogo itinerante que abandonou a família nas docas de São Francisco, Jack London cresceu aprendendo a roubar, beber e boxear, trabalhou como marujo, empregado de lavanderia, carvoeiro, ladrão de ostras e minerador fracassado em Klondike, antes de descobrir a literatura por meio da Seaside Library, uma série de narrativas populares em que, segundo ele, “com exceção dos vilões e das aventureiras, todos os homens e mulheres tinham bons pensamentos, falavam em linguajar nobre e faziam proezas gloriosas”. London logo começou a escrever e fez tanto sucesso que acabou ganhando mais dinheiro na imprensa capitalista que tanto desprezava do que qualquer autor contemporâneo. Dizia que aprendera a contar histórias quando vagava sem vintém pelos Estados Unidos, quando conseguir comida quente ou ser expulso de uma soleira dependia do tom que adotava “no exato instante em que a dona da casa abria a porta”. Aos vinte anos, leu o Manifesto comunista e decidiu se filiar ao Partido Socialista, do qual se desligou em 1916 “por causa da falta de luz e ardor, pela falta de ênfase na luta de classes”. Poucos meses depois, na noite de 21 de novembro de 1916, Jack London decidiu se matar na luxuosa mansão californiana que comprara com seus crescentes direitos autorais. Pensando que assim apressaria o fim, tomou doses letais de várias drogas. O efeito foi contrário: as drogas se anularam parcialmente, e London agonizou por mais de 24 horas. Tinha quarenta anos de idade.

Entre os escritos inacabados de London encontrava-se o manuscrito de um romance, acompanhado de notas sobre seu possível desfecho. O romance tinha o título esplêndido de The Assassination Bureau, Ltd., um mecanismo social antibárbaro que só podia ser detido pela morte de seu criador. O criador, no caso, é um certo Ivan Dragomiloff, que fundara uma sociedade secreta de assassinatos por encomenda e a bom preço. Mas os bárbaros, isto é, as vítimas potenciais não são qualquer pessoa de que um cliente por acaso não gostasse. Sempre que um nome é designado para aniquilação, Dragomiloff conduz uma investigação sobre o caráter e o comportamento do alvo. Dragomiloff só ordena a ação quando o assassinato lhe parece “socialmente justificável”. O bárbaro só será bárbaro se Dragomiloff assim o julgar.

O Birô de Assassinatos é uma máquina perfeitamente azeitada. Depois de encomendar o assassinato e pagar o preço à vista, o cliente deve esperar até que os subordinados de Dragomiloff levem ao mestre provas de má conduta da possível vítima. A vítima pode ser um brutal chefe de polícia, um empresário artístico sem compaixão, um banqueiro ganancioso, um patrão desonesto, uma grande dame aristocrática: em todos os casos, é preciso comprovar, sem sombra de dúvida, que a pessoa é nociva à sociedade. Se a evidência é insuficiente ou se a vítima morre por acidente, o dinheiro é devolvido ao cliente, com um desconto de 10% para cobrir gastos administrativos. Porém, se Dragomiloff julga que a morte é merecida, não há como voltar atrás. “Uma ordem dada”, explica ele mesmo, “vale por uma ordem cumprida. Não podemos tocar os negócios de outra maneira. O senhor sabe, temos nossas regras.”

É quando acontece algo de inesperado. Numa tentativa de desmantelar o birô, um rapaz ousado encomenda um serviço singular. Encontra-se com Dragomiloff, paga o preço estipulado para o assassinato de uma figura pública anônima mas muito importante, cujo nome ele só revela depois de Dragomiloff aceitar a encomenda (sob a condição, está claro, de que a pessoa em questão seja de fato culpada): o próprio Dragomiloff. Como o Birô nunca volta atrás sobre a palavra dada, Dragomiloff aceita a encomenda de sua própria morte. A máquina que inventou é tão eficiente que o seu propósito declarado — a eliminação por encomenda de figuras socialmente indesejáveis — tem primazia sobre a vida de seu próprio criador.

Por mais que se ressinta aqui e ali do “linguajar nobre” da Seaside Library, o conto de Jack London, escrito há mais de um século, soa curiosamente contemporâneo. Não pela ideia de um birô destinado a livrar a sociedade de suas ervas daninhas (que faz pensar na “listinha” de indesejáveis do Grão-Carrasco no Mikado, de Gilbert e Sullivan), mas por causa da ideia de que um mecanismo social pode chegar a tal grau de perfeição fanática, que só possa ser destruído com a destruição de seus próprios criadores. Sob risco de levar a comparação longe demais, creio que o Birô de Assassinatos teve algumas reencarnações modernas. Acredito que, em nossa própria época, permitimos a constituição de engrenagens sociais tremendas que, como o Birô, são multinacionais e anônimas, mas cujo propósito não é purificar a sociedade por meio do assassinato (sem dúvida, uma empresa condenável), mas garantir a um punhado de indivíduos (entre os quais muitas vítimas de Dragomiloff) o maior ganho financeiro possível, pouco importa a que custo social e sob a proteção de uma cortina de fumaça de incontáveis acionistas anônimos. Indiferentes a consequências, essas engrenagens invadem todas as áreas da atividade humana, sempre em busca de ganho monetário, mesmo ao preço de vidas humanas ou, melhor, da vida de todos, uma vez que, ao fim e ao cabo, nem mesmo os ricos e os poderosos sobreviverão à pilhagem do planeta.

Talvez com alguma ingenuidade, London tentou penetrar verbalmente o universo dos Dragomiloff. “Conheci homens”, declarava ele, “que invocavam o nome do Príncipe da Paz em suas diatribes contra a guerra e que entregavam rifles [a seus guardas particulares] para abater trabalhadores em greve. Conheci homens que se tomavam de indignação diante da brutalidade das lutas por dinheiro e que ao mesmo tempo eram cúmplices na adulteração de alimentos que todo ano matavam mais bebês que o sanguinário Herodes. Conversei em hotéis, clubes, lares, trens e vapores com capitães da indústria e fiquei perplexo ao notar como eram pouco viajados no reino do intelecto. Ao mesmo tempo, percebi como seu intelecto era hipertrofiado no sentido dos negócios. E descobri ainda que, quando se tratava de negócios, sua moral não ia além de zero. Este senhor, tão refinado e aristocrático, era testa-de-ferro e joguete de companhias que secretamente roubavam viúvas e órfãos. Este outro, colecionador de livros raros e patrono das letras, subornava o chefão carrancudo e hirsuto de um órgão municipal. Este editor, que publicava anúncios de remédios e não tinha a coragem de publicar a verdade a respeito, me chamou de canalha demagogo porque eu lhe disse que sua economia política era antiquada e que sua biologia era contemporânea de Plínio, o Velho.” Com algumas alterações de estilo e alguns exemplos atualizados, a diatribe de London vale hoje como valia em 1905. Seu Dragomiloff concebeu um mecanismo social de assassinatos por encomenda contra pagamento à vista; nós criamos máquinas econômicas de fazer dinheiro sem parar, sem nos importar com o custo em vidas. Ambas acabarão por fracassar, porque estão condenadas, por sua própria perfeição, a destruir seus criadores.

O mundo melhor e mais feliz por que London ansiava, numa sociedade que ainda não passara por duas guerras mundiais, jamais chegou a existir. Mas nossas histórias continuam à procura, seja descrevendo o pior dos mundos, seja tentando conceber o melhor dos mundos possíveis, oferecendo-nos cenários que brotam da tensão entre esses dois extremos. Para cada leitura de dom Quixote como um louco à solta numa sociedade bem ordenada, haverá outras que veem nele o justiceiro mais racional num mundo ao mesmo tempo absurdo e injusto.

A linguagem dá voz aos narradores que tentam nos dizer quem somos; a linguagem constrói com palavras a realidade e seus habitantes, dentro e fora dos muros da sociedade; a linguagem providencia histórias que contam mentiras e histórias que dizem a verdade. A linguagem evolui conosco, torna-se débil ou poderosa conosco, sobrevive ou morre conosco. Os mecanismos econômicos que construímos precisam da linguagem para apelar a seus consumidores, ainda que apenas num nível prático e dogmático, evitando de caso pensado a investigação e a indagação literárias. A infinita sequência de leituras de Gilgamesh e Dom Quixote descortina possibilidades de sentido em incontáveis domínios — identidade pessoal, relação com o poder, deveres e responsabilidades sociais, equilíbrio das ações — que podem, em dada altura, nos levar a questionar o poder e exigir o fim da injustiça. Para manter o funcionamento dos mecanismos sociais, os poderosos muitas vezes tentam coibir e controlar essa multiplicidade de leituras: simplesmente proibindo um livro ou, com mais sutileza, impondo um vocabulário restrito ou distorcido, “embotando a linguagem”, como disse certa vez Günter Grass. Essa censura (porque afinal trata-se de censura) ocorre de várias maneiras, das mais dramáticas às mais encobertas. Pode-se banir toda uma língua, pode-se subverter certos vocabulários, pode-se distorcer ou esvaziar o sentido de uma palavra, pode-se canalizar a linguagem para modelos literários viciados ou limitá-la a usos dogmáticos no reino da política, do comércio, da moda e, é claro, da religião. Em todos esses casos, o objetivo em vista consiste em impedir que se contem e se leiam histórias verdadeiras.



(A cidade das palavras – A história que contamos para saber quem somos; tradução de Samuel Titan Jr.)



(Ilustração: René Magritte - l'assassin menacé)

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