sexta-feira, 24 de outubro de 2025

LÍNGUA, de Caetano Veloso



a Violeta Gervaiseau (*)


Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões

Gosto de ser e de estar

E quero me dedicar a criar confusões de prosódia

E uma profusão de paródias

Que encurtem dores

E furtem cores como camaleões

Gosto do Pessoa na pessoa

Da rosa no Rosa

E sei que a poesia está para a prosa

Assim como o amor está para a amizade

E quem há de negar que esta lhe é superior?

E quem há de negar que esta lhe é superior?

E deixa os Portugais morrerem à míngua

"Minha pátria é minha língua"

Fala Mangueira! Fala!



Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer

O que pode esta língua?



Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas

E o falso inglês relax dos surfistas

Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas

Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmen Miranda

E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate

E - xeque-mate! - explique-nos Luanda

Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo

Sejamos o lobo do lobo do homem

Lobo do lobo do lobo do homem



Adoro nomes

Nomes em ã

De coisas como rã e ímã

Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã

Nomes de nomes

Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé

e Maria da Fé



Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer

O que pode esta língua?



Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção

Está provado que só é possível filosofar em alemão

Blitz quer dizer corisco

Hollywood que dizer Azevedo

E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

A língua é minha pátria

E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero fátria

Poesia concreta, prosa caótica

Ótica futura

Samba-rap, chic-left com banana



(- Será que ele está no Pão de Açúcar?

- Tá craude brô

- Você e tu

- Lhe amo

- Qué queu te faço, nêgo?

- Bote ligeiro!

- Ma’ de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!

- Ó, Tavinho, põe esta camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!

- I like to spend some time in Mozambique

- Arigatô, arigatô!)



Nós canto-falamos como quem inveja negros

Que sofrem horrores no Gueto do Harlem

Livros, discos, vídeos à mancheia

E deixe que digam, que pensem, que falem





(*) Maria Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau (Araripe, Ceará, 5/5/1926 - Rio de Janeiro, 17/6/2008)



(Ilustração: Yasmin Schlupmann - A loucura da língua, 2023)



Nenhum comentário:

Postar um comentário