quinta-feira, 29 de agosto de 2024

CANÇÕES, de António Botto

 


1.




Não. Beijemo-nos, apenas,

Nesta agonia da tarde.

Guarda -

Para outro momento.

Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde

E a convivência contigo

Modificou-me - sou outro. . .

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva

Dos teus cabelos, - És lindo!

A morte

Devia ser

Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas

Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,

- Que mais precisamos nós?



2.



Quem é que abraça o meu corpo

Na penumbra do meu leito?

Quem é que beija o meu rosto,

Quem é que morde o meu peito?

Quem é que fala da morte

Docemente ao meu ouvido?

- És tu, senhor dos meus olhos,

E sempre no meu sentido.

3.



Tenho a certeza

De que entre nós tudo acabou.

- Não há bem que sempre dure,

E o meu, bem pouco durou.

Não levantes os teus braços

Para de novo cingir

A minha carne de seda;

- Vou deixar-te, vou partir!

E se um dia te lembrares

Dos meus olhos cor de bronze

E do meu corpo franzino,

Acalma

A tua sensualidade

Bebendo vinho e cantando

Os versos que te mandei

Naquela tarde cinzenta!

Adeus!

Quem fica sofre, bem sei;

Mas sofre mais quem se ausenta!



4.

Pelos que andaram no amor

Amarrados ao desejo

De conquistar a verdade

Nos movimentos de um beijo;

Pelos que arderam na chama

Da ilusão de vencer

E ficaram nas ruínas

Do seu falhado heroísmo

Tentando ainda viver!,

Pela ambição que perturba

E arrasta os homens à Guerra

De resultados fatais!,

Pelas lágrimas serenas

Dos que não podem sorrir

E resignados, suicidam

Seus humaníssimos ais!

Pelo mistério subtil,

Imponderável, divino,

De um silêncio, de uma flor!,

Pela beleza que eu amo

E o meu olhar adivinha,

Por tudo que a vida encerra

E a morte sabe guardar,

- Bendito seja o destino

Que Deus tem para nos dar!



5.





Meu amor na despedida

Nem uma fala me deu;

Deitou os olhos ao chão

Ficou a chorar mais eu.

Demos as mãos na certeza

De que as dávamos amando;

Mas, ai!, aquela tristeza

Que há sempre neste "Até quando?,"

- Numa lágrima surgiu

E pela face correu. . .

Nada pudemos dizer,

Ficou a chorar mais eu.



6.

Se passares pelo adro

No dia do meu enterro,

Dize à terra que não coma

Os anéis do meu cabelo.

Já não digo que viesses

Cobrir de rosas meu rosto,

Ou que num choro dissesses

A qualquer do teu desgosto;

Nem te lembro que beijasses

Meu corpo delgado e belo,



Mas que sempre me guardasses

Os anéis do meu cabelo.

Não me peças mais canções

Porque a cantar vou sofrendo;

Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo.

Se a minha voz conseguisse

Dissuadir essa frieza

E a tua boca sorrisse !

Mas sóbria por natureza

Não a posso renovar

E o brilho vai-se perdendo...

- Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo.




(Ilustração: Paul Cadmus)

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

ALGUMA VEZ VOCÊ OUVIU O QUEIXUME DE UM MORTO?, de Juan Rulfo

 




— O que está acontecendo, dona Eduviges?

Ela balançou a cabeça como se despertasse de um sonho.

— É o cavalo de Miguel Páramo, galopando pelo caminho da Media Luna.

— Mas então, alguém mora em Media Luna?

— Não, lá não mora ninguém.

— E então?

— É só o cavalo, que vai e que vem. Eles eram inseparáveis. Corre por tudo que é canto, procurando por ele e volta sempre a esta hora. Talvez o coitado não aguente o remorso. Porque até os animais sabem quando cometem um crime, não é?

— Não entendo. Nem ouvi nenhum ruído de nenhum cavalo.

— Não?

— Não.

— Então é coisa do meu sexto sentido. Um dom que Deus me deu; ou talvez uma maldição. Só eu sei o que sofri por causa disso.

Guardou um longo silêncio e depois acrescentou:

— Tudo começou com Miguel Páramo. Só eu soube o que tinha acontecido com ele na noite em que morreu. Estava deitada quando ouvi seu cavalo regressar rumo à Media Luna. Achei estranho porque ele nunca voltava naquela hora. Somente na entrada da madrugada. Ia conversar com sua noiva num povoado chamado Contla, um tanto longe daqui. Saía cedo e demorava a voltar. Mas naquela noite não regressou... Está ouvindo agora? Claro que dá para ouvir. Está de regresso.

— Não ouço nada.

— Então é coisa minha. Bem, como eu estava dizendo, essa história de que ele não regressou é só um jeito de falar. O cavalo mal tinha acabado de passar, quando ouvi que batiam na minha janela. Vá saber se foi ilusão minha. Mas a verdade é que alguma coisa me obrigou a ir ver quem era. E era ele, Miguel Páramo. Não estranhei, pois houve um tempo em que passava a noite na minha casa dormindo comigo, até encontrar essa moça que sorveu seus miolos.

“— O que aconteceu? — perguntei a Miguel Páramo. — Levou um fora?

“— Não. Ela continua gostando de mim — ele me disse. – Acontece que não consegui encontrá-la. Não achei o povoado. Havia muita neblina ou fumaça ou sei lá o quê; mas o que sei é que Contla não existe. Fui além dela, pelos meus cálculos, e não encontrei nada. Vim contar isso a você, porque você me compreende. Se eu contasse aos outros de Comala iam dizer que fiquei louco, do jeito que sempre disseram que sou.

“— Não. Louco não, Miguel. Você deve estar é morto. Lembre-se que disseram a você que esse cavalo ainda iria matá-lo algum dia. Lembre-se, Miguel Páramo. Pode até ser que você tenha desandado a fazer loucuras, mas isso já é uma outra história.

“— Eu só saltei a cerca de pedra que ultimamente meu pai mandou botar. Fiz o Colorado saltar para não dar esse rodeio tão longo que é preciso fazer agora para encontrar o caminho. Sei que pulei e depois continuei correndo; mas, como eu digo, não havia nada além de fumaça e fumaça e fumaça.

“– Amanhã seu pai vai se contorcer de dor — eu disse. — Sinto por ele. Agora vá embora e descanse em paz, Miguel. Agradeço você ter vindo se despedir de mim.

“E fechei a janela.

“Antes que amanhecesse o peão da Media Luna veio me dizer:

“— O patrão dom Pedro suplica. O menino Miguel morreu. Ele suplica pela sua companhia.

“— Já estou sabendo — respondi. — Pediram a você que chorasse?

“— Sim, senhora, dom Fulgor me disse que dissesse isso chorando.

“— Está bem. Diga a dom Pedro que eu vou. Faz muito tempo que trouxeram Miguel?

“— Não faz nem meia hora. Se fosse antes, talvez ele tivesse se salvado. Ainda que, conforme disse o doutor que o apalpou, ele já estivesse frio fazia tempo. Ficamos sabendo porque o Colorado voltou sozinho e ficou tão inquieto que não deixou ninguém dormir. A senhora sabe como ele e o cavalo se gostavam, e estou a ponto de achar que o cavalo sofre mais até do que dom Pedro. Não comeu nem dormiu e só faz correr para lá e para cá. Como se soubesse, a senhora sabe? Como se se sentisse despedaçado e carcomido por dentro.

“— Não se esqueça de fechar a porta quando sair.

“E o moço da Media Luna foi embora.”

— Alguma vez você ouviu o queixume de um morto? — ela me perguntou.

— Não, dona Eduviges.

— Melhor para você.



(Pedro Páramo; tradução de Erik Nepomuceno)



(Ilustração: Diego Rivera - liberation of the peon, 1931)

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

DA SERRA DA ARÁBIDA, de Frei Agostinho da Cruz

 



Do meio desta Serra derramado

A saudosa vista nas salgadas

Águas, humildes, quando e quando inchadas,

Conforme a qual o vento vai soprando,



Estou comigo só considerando,

Donde foram parar cousas passadas,

E donde irão presentes mal fundadas,

Que pelo menos passos vão passando.



Oh, qual se representa nesta parte

Aquela derradeira hora da vida,

Tão devida, tão certa e tão incerta!?



Em quantas tristes partes se reparte,

Dentro nesta alma minha entristecida,

A dor, que tem tais extremos me desperta?





(Os Homens e os Livros” (séculos XVI e XVII), Lisboa, 1971)



(Ilustração: Convento da Arrábida - Setúbal, Portugal; foto da internet sem indicação de autoria)

terça-feira, 20 de agosto de 2024

AVISO POR CAUSA DA MORAL, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)[*]

 



Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. Sim — exactamente a exclamação que acaba de escapar ao leitor...

Ser novo é não ser velho. Ser velho é ter opiniões. Ser novo é não querer saber de opiniões para nada. Ser novo é deixar os outros ir em paz para o Diabo com as opiniões que têm, boas ou más — boas ou más, que a gente nunca sabe com quais é que vai para o Diabo.

Os moços da vida das escolas intrometem-se com os escritores que não passam pela mesma razão porque se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores.

Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte.

Mas quanto ao resto, calem-se. Calem-se o mais silenciosamente possível.

Porque há só duas maneiras de se ter razão. Uma é calar-se, que é a que convém aos novos. A outra é contradizer-se, mas só alguém de mais idade a pode cometer.

Tudo mais é uma grande maçada para quem está presente por acaso. E a sociedade em que nascemos é o lugar onde mais por acaso estamos presentes.



Europa , 1923.



[*] Manifesto assinado por Álvaro de Campos distribuído em folha solta pelas ruas de Lisboa - foi escrito em resposta à Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, organização de feição católica e conservadora, que, a propósito da reedição das Canções de António Botto, e mias proximamente, da Sodoma Divinizada de Raul Leal, desencadeou uma campanha "moralizadora" com apelos às autoridades para que exercessem, como efetivamente vieram a exercer, repressão sobre tal "literatura de sodoma". Significativo o modo como é datado - "Europa, 1923".



(Textos de Crítica e de Intervenção)



(Ilustração: escultura de Ralph Brown - La sposa)

sábado, 17 de agosto de 2024

LINHAGEM, de Adélia Prado

 





Minha árvore ginecológica

me transmitiu fidalguias,

gestos marmorizáveis:

meu pai, no dia do seu próprio casamento,

largou minha mãe sozinha e foi pro baile.

Minha mãe tinha um vestido só, mas

que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!

Meu avô paterno negociava com tomates verdes,

não deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,

até o fim de sua vida, os poros pretos de cinza:

‘Não me enterrem na Jaguara. Na Jaguara, não.’

Meu avô materno teve um pequeno armazém,

uma pedra no rim,

sentiu cólica e frio em demasia,

no cofre de pau guardava queijo e moedas.

Jamais pensaram em escrever um livro.

Todos extremamente pecadores, arrependidos

até a pública confissão de seus pecados

que um deles pronunciou como se fosse todos:

‘Todo homem erra. Não adianta dizer eu

porque eu. Todo homem erra.

Quem não errou vai errar.’

Esta sentença não lapidar, porque eivada

dos soluços próprios da hora em que foi chorada,

permaneceu inédita, até que eu,

cuja mãe e avós morreram cedo,

de parto, sem discursar,

a transmitisse a meus futuros,

enormemente admirada

de uma dor tão alta,

de uma dor tão funda,

de uma dor tão bela,

entre tomates verdes e carvão,

bolor de queijo e cólica.



(O coração disparado)



(Ilustração: Cândido Portinari, 1666)

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

SOBRE SER “BRANCO” E OUTRAS MENTIRAS, de James Baldwin

 



A crise de liderança na comunidade branca é notável – e aterrorizante – porque não existe, de fato, nenhuma comunidade branca.

Essa pode parecer uma afirmação de grande impacto – e é. Estou disposto a ser contestado. Também estou disposto a tentar explicar.

Meu quadro de referência é, claro, a América, ou aquela porção do continente norte-americano que chama a si mesma de América. E isso significa que estou falando essencialmente da visão europeia de mundo – ou mais precisamente, talvez, da visão europeia de universo. Trata-se de uma visão tão notável pelo que ela pretende incluir quanto pelo que ela implacavelmente diminui, destrói ou deixa totalmente de levar em conta.

Existe, por exemplo – pelo menos em princípio – uma comunidade irlandesa: aqui, ali, em qualquer lugar ou, mais precisamente, em Belfast, Dublin, Boston. Existe uma comunidade alemã: os dois lados de Berlim, a Baviera e Yorkville. Existe uma comunidade italiana: Roma, Nápoles, o Banco do Espírito Santo e a Muberry Street. E existe uma comunidade judaica que se estende de Jerusalém à Califórnia e a Nova York. Existem comunidades inglesas. Existem comunidades francesas. Existem consórcios suíços. Existem poloneses: em Varsóvia (onde eles gostariam de nos ter como amigos) e em Chicago (onde, por serem brancos, somos inimigos). Existem, aliás, restaurantes indianos e banhos turcos. Existe o submundo – os pobres (para não falar daqueles que pretendem enriquecer) estão sempre conosco –, mas isso não descreve uma comunidade. Antes testemunha de maneira aterradora o que aconteceu a todos que chegaram aqui pagando o preço da passagem. O preço era tornar-se “branco”. Ninguém era branco antes de vir para a América. Foram necessárias gerações e uma grande quantidade de coerção até que este se tornasse um país branco.

Foi provavelmente a comunidade judaica – ou mais rigorosamente, talvez, seus remanescentes – que na América pagou o mais alto e extraordinário preço para se tornar branca. Pois os judeus vieram para cá de países onde não eram brancos, e eles vieram para cá, em parte, porque não eram brancos; e incontestavelmente aos olhos do negro americano (e não apenas a seus olhos), os judeus americanos optaram por se tornarem brancos e é assim que eles operam. Foi irônico ouvir, por exemplo, o ex-primeiro ministro israelense Menachem Begin declarar há algum tempo que “o povo judeu se curva apenas a Deus” quando se sabe que o Estado de Israel é sustentado por um cheque em branco de Washington. Mesmo sem acompanhar as implicações desse mútuo ato de fé, as pessoas estão, contudo, cientes de que a presença negra, aqui, dificilmente pode ter a esperança – pelo menos por enquanto – de deter a carnificina na África do Sul.

E há uma razão para isso.

A América tornou-se branca – as pessoas que, como elas dizem, “colonizaram” o país, tornaram-se brancas – por conta da necessidade de negar a presença negra e justificar a subjugação dos negros. Nenhuma comunidade pode se basear em tal princípio – ou, em outras palavras, nenhuma comunidade pode ser estabelecida sobre uma mentira tão genocida. Homens brancos – da Noruega, por exemplo, onde eram noruegueses – tornaram-se brancos: abatendo o gado, envenenando os poços, incendiando as casas, massacrando os nativos americanos, estuprando mulheres negras.

Essa erosão moral tornou praticamente impossível para aqueles que se consideram brancos neste país terem qualquer autoridade moral – privada ou publicamente. A numerosa multidão deles se senta, atordoada, diante de seus televisores, engolindo o lixo que eles sabem ser lixo e – em um esforço profundo e inconsciente para justificar esse torpor que esconde um pânico profundo e amargo, presta muita atenção nos esportes: mesmo sabendo que o jogador de futebol (o Filho da República, seus filhos!) é apenas outro ponto do esquema para ganhar dinheiro. Eles estão aliviados ou amargurados pela presença do garoto negro no time. Eu não sei se eles se lembram de quanto tempo e esforço foram empenhados em mantê-lo longe dali. Sei que eles não ousam ter qualquer noção do preço que os negros (mães e pais) pagaram e pagam. Eles não querem saber o significado, ou encarar a vergonha, do que eles obrigaram – de onde tiraram a necessidade de serem brancos – Joe Louis ou Jackie Robinson ou Cassius Clay (aka Muhammad Ali) a pagar. Mas sei que eles próprios não gostariam de tê-lo pago.

Nunca houve um movimento de trabalhadores neste país, o que está provado pela ausência negra nos sindicatos ditos de pai-para-filho. Há, talvez, alguns crioulos na janela; mas negros não têm poder nos sindicatos.

Assim a comunidade branca, como meio de manter-se branca, elege o que ela imagina ser seus representantes políticos. Nenhuma nação do mundo, incluindo a Inglaterra, é representada por um panteão tão impressionante e implacavelmente medíocre. Não citarei nomes – deixo isso a vocês.

Mas essa covardia, essa necessidade de justificar uma identidade totalmente falsa e de justificar o que deve ser chamado de uma história genocida, fez com que todos vivessem agora nas mãos das pessoas mais ignorantes e poderosas que o mundo já viu: e como eles conseguiram isso?

Ao decidir que eles eram brancos. Ao optarem pela segurança em vez da vida. Ao persuadirem-se de que a vida de uma criança negra não significava nada se comparada à vida de uma criança branca. Ao abandonarem seus filhos às coisas que os homens brancos poderiam comprar. Informando seus filhos de que mulheres negras, homens negros e crianças negras não tinham a integridade humana a que os que chamam a si mesmos de brancos estavam obrigados a respeitar. E nessa depreciação e definição dos negros, eles degradaram e difamaram a si mesmos.

E levaram a humanidade ao limite do esquecimento: por pensarem que são brancos. Por pensarem que são brancos, eles não ousam enfrentar a devastação e a mentira de sua história. Por pensarem que são brancos, eles não podem se deixar atormentar pela suspeita de que todos os homens são irmãos. Por pensarem que são brancos, eles estão procurando, ou bombardeando, populações estáveis, nativos alegres e mão-de-obra barata. Por pensarem que são brancos, eles acreditam, do modo como nenhuma criança acredita, no sonho da segurança. Por pensarem que são brancos, por mais vociferantes que possam ser e por mais numerosos que sejam, eles estão tão sem palavras quanto a mulher de Ló – olhando para trás, transformados em uma coluna de sal.

Contudo! – Uma vez que ser branco é, em todo caso, uma escolha moral (pois não existem pessoas brancas), essa crise de liderança não é nada de novo para aqueles de nós cuja identidade foi forjada ou marcada como negra. Nós – que não éramos negros antes de chegarmos aqui, que fomos definidos como negros pelo tráfico de escravos – pagamos pela crise de liderança na comunidade branca há muito tempo, e temos de modo ressonante, mesmo quando enfrentamos o pior de nós mesmos, sobrevivido e triunfado sobre ela. Se não tivéssemos sobrevivido e triunfado, não haveria um único negro americano vivo.

E o fato de ainda estarmos aqui – mesmo em sofrimento, escuridão, perigo, definidos sem cessar por aqueles que não ousam definir, ou mesmo confrontar, a si mesmos – é a chave para a crise da liderança branca. O passado nos informa de vários tipos de pessoas – criminosos, aventureiros e santos, para não falar, é claro, de papas – mas é a condição negra, e apenas ela, que nos informa sobre as pessoas brancas. É um paradoxo terrível, mas aqueles que acreditavam poder controlar e definir os negros se despojaram do poder de controlar e definir a si mesmos.



(Revista Essence, 1984; tradução de Pedro Davoglio)



(Ilustração: Zygmunt Zaradkiewicz)

domingo, 11 de agosto de 2024

POEMA DA GARE DO ASTAPOVO, de Mário Quintana

 

 




O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos

E foi morrer na gare de Astapovo!

Com certeza sentou-se a um velho banco,

Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso

Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,

Contra uma parede nua…

Sentou-se… e sorriu amargamente

Pensando que

Em toda a sua vida

Apenas restava de seu a Glória,

Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas

Coloridas

Nas mãos esclerosadas de um caduco!

E então a Morte,

Ao vê-lo sozinho àquela hora

Na estação deserta,

Julgou que ele estivesse ali à sua espera,

Quando apenas sentara para descansar um pouco!

A Morte chegou na sua antiga locomotiva

(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)

Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,

E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…

Ele fugiu de casa…

Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…

Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!





(Ilustração: Corpo de Tolstoi sendo transportado da estação de Astapovo, 1910)

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O MEU AMIGO, de Carla Kinzo

 



Costumam virar os olhos quando eu digo que é meu amigo. Talvez eu mesmo vire os olhos quando digo, é meu amigo. É quase involuntário. Talvez soe estranha a frase quando formulada, acho que invariavelmente o volume da minha voz se altera depois do pronome possessivo, meu. Amigo. Ah, a pessoa do outro lado responde, às vezes é um Ah, é?, tentando não demonstrar, no ah, no é, a dúvida, a hesitação, o espanto, ah. Às vezes a confusão continua em frases constrangidas, nossa, mas vocês são tão diferentes, não imaginava, é que você é uma pessoa boa. Não sou. Mas somos mesmo diferentes, ele e eu, e o que temos em comum basta. Faz mais de trinta anos que ele vem. Começou com o tabaco, uma vez por semana. Depois, quando não era mais apenas o tabaco, passou a ser a seda do cigarro, o filtro. Tornou-se hábito o café. Ele se senta lá fora, três vezes por semana há mais de trinta anos, sempre na mesinha encostada à porta de vidro; eu venho, passo o pano sobre a mesa, não preciso mais perguntar, nem ele me pedir. Trago o expresso, a água com gás que ele raramente toma; nunca deixo de trazer, sou justo. Seu estômago não é feito para a água, mas para o café — forte, quente, curto. Também não recebe bem os docinhos, que testei há quinze anos ao lado da xícara, no pires. Voltavam sempre, intactos, às vezes amolecidos pelo calor da porcelana. Desisti, tirei-os de todos os cafés. Seu estômago vem dando a medida exata da tabacaria nesses anos, me conteve da tentação dos excessos depois que milhares de cafés se espalharam pelo bairro com seus cardápios cheios de combinações; os bolinhos, os pãezinhos, os quatro tipos de açúcar. Sou grato a seu estômago. E faz uns vinte anos que começamos a conversar. Deve ter tido algo a ver com o fato das nossas vistas começarem a envelhecer; a minha, cada vez mais míope, acabava se detendo em sua mesa, desistindo da rua; a dele, cada vez mais cansada, tinha que se levantar muitas vezes do papel para olhar em volta. “Pessoas que depressa produzem provas exteriores de amizade entre si querem ser amigos, mas não podem sê-lo logo”, diz aquele filósofo, “é preciso primeiro que se tornem dignos de amizade e se possa reconhecer neles essa mesma dignidade”, acho que é grego, “o desejo de amizade nasce depressa, mas a amizade não.” Não sei se quis ser amigo dele, o fato é que nossas vistas se cruzaram. Foi assim que passei a saber, antes de serem publicadas, das críticas que ele escrevia aos livros recém-lançados, quase sempre violentas; curioso, passei a ler alguns desses livros. Por causa dele, passei a ler mais e sempre. Nem sempre concordava com o que ele escrevia — como a maioria dos meus clientes, aliás, que vêm aqui há quase o mesmo tempo que ele. Alguns deles, são os escritores destes livros. Não posso deixar de admirar a maneira como ele sempre reagiu às provocações daqueles que o reconheciam escrevendo na mesa, os dedos grossos manchados de tabaco, inconfundível, os dentes manchados de café. “Dizem que tentou escrever um romance”, “que não tem as cordas vocais”, “que matou a mulher”, “que tem um cromossomo X a mais” etc., etc., etc. Ouvi de tudo; ele ouviu de tudo. Acho que o teor do que escrevia era mesmo pesado; acho que as pessoas eram até que comedidas quando o viam escrevendo na mesa, “olha aí o vampiro de Dusseldorf”, mas ele era meu amigo. Não podia deixar de admirar o modo como ele apenas levantava a vista dos óculos pendidos sobre o nariz adunco e voltava a escrever. Impassível. Passei a ser assim também, não me deixava afetar. Não sei como você aguenta esse sujeito; é que ele é meu amigo; ah… é? Se a pessoa ficava decepcionada demais, eu dispensava que me pagasse, não sei, o cafezinho. Se tentava disfarçar sua decepção, eu enfiava uma bala de hortelã no troco, dava uma batidinha no dorso de sua mão e, fechando o olho direito, quase que piscando, não precisava nem dizer, “deixa”. Deixa o homem, é um solitário. E era mesmo. Ou devia ser, claro. O homem é meu amigo, mas não falamos as coisas, não é preciso. Ele vem, compra o tabaco, não precisa me dizer a marca, não sorri, se senta, eu lhe sirvo o café, nossos olhares se cruzam, ele fala do livro que anda resenhando, “uma bela porcaria”, me estende o volume, “fica”, tá feita a minha noite. Quando o autor vem comprar tabaco, tomar café, ou espiar meu amigo, digo que li seu livro. Contente, ele volta; tudo isso fez um bem enorme para os negócios. E gostou? Gostei. Eu gostava quase sempre. Ler me faz bem para a cabeça, principalmente depois que fiquei viúvo. Há vinte anos que minha biblioteca aumenta, nunca mais me senti só depois de fechar a tabacaria, voltar para casa. Tão vazia a casa desde que perdi minha mulher, dezoito anos atrás; nem foi preciso dizer isso a meu amigo. Ele entendeu. E começou a me dar os livros de presente. “É uma droga, toma, lê se tem coragem”. Sempre tenho.



(Ilustração: Richard Diebenkorn - still life with book)

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

JUNTO À ÁGUA, de Manuel António Pina

 


Os homens temem as longas viagens,

os ladrões da estrada, as hospedarias,

e temem morrer em frios leitos

e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam

de regresso a casa, às veredas da infância,

ao velho portão em ruínas, à poeira

das primeiras, das únicas lágrimas.

 

Quantas vezes em

desolados quartos de hotel

esperei em vão que me batesses à porta,

voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

 

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,

sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,

e no meio das multidões dos aeroportos.

Agora só quero dormir um sono sem olhos

 

e sem escuridão, sob um telhado por fim.

À minha volta estilhaça-se

o meu rosto em infinitos espelhos

e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

 

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Anoitece em todas as cidades do mundo,

acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos

onde o meu coração, falando, vagueia.

 

(Um Sítio Onde Pousar A Cabeça)

 

(Ilustração: Gustave Caillebotte - dans un café, 1880)

 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A SÍNTESE ANARQUISTA, de Sébastien Faure

 


Na França, como na maior parte dos países, distinguem-se três grandes correntes anarquistas que podem ser designadas da seguinte forma:

- o anarco-sindicalismo,

- o comunismo libertário,

- o anarco-individualismo.

Era natural e fatal que, chegado a um certo desenvolvimento, uma ideia tão ampla como o anarquismo conduzisse a essa tripla manifestação de vida.

Um movimento filosófico e social, ou seja, de ideia e de ação, que propõe fazer tabula rasa de todas as instituições autoritárias, deveria necessariamente dar lugar a essas distinções que determinam obrigatoriamente a variedade de situações, de meios e de temperamentos, a diversidade de fontes da qual bebem as inumeráveis formações individuais e a prodigiosa multiplicidade de acontecimentos.

Anarco-sindicalismo, comunismo libertário e anarco-individualismo; estas três correntes existem e nada nem ninguém pode impedi-las. Cada uma delas representa uma força que não é possível nem desejável derrubar. Para convencer-se disso, basta situar-se no próprio coração do gigante esforço para terminar de arruinar o princípio da autoridade. Assim é possível ter consciência do papel indispensável que, no combate a ser travado, desempenha cada uma dessas três correntes.

Agora tenho três questões a apresentar: A primeira vai dos anarco-sindicalistas aos comunistas libertários e aos anarcoindividualistas. A segunda vai dos comunistas libertários aos anarco-sindicalistas e aos anarco-individualistas. A terceira vai dos anarco-individualistas aos anarco-sindicalistas e aos comunistas libertários.

Eis aqui a primeira. “Considerado como movimento social e ação popular, o anarquismo, quando perante a hora em que, inevitavelmente, defrontará com o mundo capitalista e autoritário a investida decisiva que expressamos com estas palavras – Revolução Social – poderá prescindir da participação das massas que, no terreno do trabalho, as organizações sindicais agrupam em seu seio?”

Creio que seria uma loucura esperar a vitória sem a participação na revolta libertadora – participação ativa, eficaz, extraordinária e persistente – dessas massas trabalhadoras, mais interessadas do que ninguém na transformação social.

Não digo nem penso que, sabendo da necessária colaboração, no período de fermentação e de ação revolucionárias, as forças sindicalistas e as forças anarquistas, umas e outras, deverão unir-se a partir de agora, associar-se, confundir-se, formar um todo homogêneo e compacto. Mas penso e digo como meu velho amigo Malatesta:

“Os anarquistas devem reconhecer a utilidade e a importância do movimento sindical, devem favorecer seu desenvolvimento e fazer dele uma das alavancas de sua ação, fazendo todo o possível para que este movimento, em cooperação com outras forças progressistas existentes, conduza a uma revolução social que leve à supressão das classes, à liberdade total, à igualdade, à paz e à solidariedade entre todos os seres humanos. Mas seria uma grande e funesta ilusão crer, como muitos o fazem, que o movimento operário chegará por si mesmo, como consequência de sua própria natureza, a uma revolução deste tipo. Ao contrário: em todos os movimentos fundados sobre interesses materiais e imediatos (e um grande movimento operário não pode ser estabelecido sobre outros fundamentos) se lhes falta o fermento, o impulso, o trabalho acertado de homens de ideias que combatem e se sacrificam por um ideal futuro, se lhes falta tudo isso, os movimentos tenderão fatalmente a adaptar-se às circunstâncias, fomentar o espírito conservador e o medo das transformações naqueles que buscam melhorar suas condições, terminando, muitas vezes, por criar novas classes privilegiadas e servindo para sustentar e consolidar o sistema que deveriam derrubar.

Daí a necessidade urgente de organizações propriamente anarquistas que, tanto de dentro quanto de fora dos sindicatos, lutem pela realização total do anarquismo e tratem de esterilizar todos os germes da corrupção e da reação.”[1]

Não se trata de ligar organicamente o movimento anarquista ao movimento sindicalista; não é questão de atuar, tanto dentro como fora dos sindicatos, em favor da realização total do ideal anarquista.

E eu pergunto aos comunistas libertários e aos anarco-individualistas: que razões de princípio ou de fato, razões essenciais, podem opor a um anarco-sindicalismo assim concebido e praticado? Esta é a segunda questão.

“Inimigo irredutível da exploração do homem pelo homem, gerada pelo regime capitalista, e da dominação do homem pelo homem, propiciada pelo Estado, pode o anarquismo conceber a supressão efetiva e total da primeira sem a supressão do regime capitalista e o estabelecimento da propriedade coletiva (o comunismo libertário) dos meios de produção, de transporte e de troca? E pode conceber a abolição total da segunda sem a abolição definitiva do Estado e de todas as instituições que dele se desprendem?”

E pergunto aos anarco-sindicalistas e aos anarco-individualistas: quais são as razões de princípio ou de fato, razões fundamentais, que podem opor a um comunismo libertário assim concebido e praticado? Esta é a terceira questão.

“O anarquismo – por ser, de um lado, a expressão maior e mais pura da reação do indivíduo contra a opressão política, econômica e moral que fazem pesar sobre ele todas as instituições autoritárias e, por outro, a afirmação mais firme e precisa do direito de todo indivíduo ao seu desenvolvimento integral pela satisfação de suas necessidades em todos os sentidos – pode conceber a realização efetiva e total desta reação e desta afirmação por um meio melhor que o de uma cultura individual criada dentro do possível no seio de uma transformação social, quebrando todas as engrenagens da repressão?”

E eu pergunto aos anarco-sindicalistas e aos comunistas libertários: quais são as razões de princípio ou de fato, razões fundamentais, que podem opor a um anarcoindividualismo assim concebido e praticado? Essas três correntes estão chamadas a se combinar

De tudo o que precede e, especialmente, das três questões anteriores, resulta que:

1. Essas três correntes – anarco-sindicalismo, comunismo libertário e anarcoindividualismo – correntes distintas, mas não contraditórias, não têm nada que as faça irreconciliáveis, nada que as faça oporem-se substancialmente, nada que proclame sua incompatibilidade, nada que as impeça de viver entendendo-se bem, de combinarem-se para uma propaganda e uma ação comuns.

2. A existência dessas três correntes não somente não poderia, de nenhuma maneira nem em nenhum grau, prejudicar o anarquismo – movimento filosófico e social concebido, como convém, em todo seu esplendor – mas, além disso, pode, e logicamente deve contribuir com a força do conjunto do anarquismo.

3. Cada uma dessas correntes tem seu lugar assinalado, seu papel, sua missão no seio do movimento social amplo e profundo que, sob o nome de “anarquismo”, tem por objeto a instauração de um meio social que assegure a todos e a cada um o máximo de bem-estar e de liberdade.

4. Nessas condições, o anarquismo pode assemelhar-se ao que, em química, se chama elemento composto, ou seja, um corpo formado pela combinação de vários elementos. Esse elemento composto está constituído pela combinação desses três elementos: o anarcosindicalismo, o comunismo libertário e o anarco-individualismo. Sua fórmula química poderia ser AS.2, CL.2, AI.2. Conforme os acontecimentos, os meios, as múltiplas fontes de que se nutrem as correntes que compõem o anarquismo, a dose desses três elementos variará. Analisando-os, a experimentação revela essas doses; na síntese, o elemento composto se aprimora. A fórmula pode alcançar proporções variáveis; local, regional, nacional ou internacionalmente. Mas sempre esses três elementos – anarco-sindicalista, comunista libertário e anarco-individualista – estão feitos para combinarem-se e constituir o que eu chamo de “síntese anarquista”.

Como é possível que a existência dessas três correntes tenha debilitado o movimento anarquista?

Com minha demonstração chegando a este ponto, deve-se perguntar como pode ser que, nestes últimos anos, sobretudo e especialmente na França, a existência desses três elementos anarquistas, longe de ter fortalecido o movimento libertário, tenha resultado em seu enfraquecimento.

E este problema, apresentado em termos claros, tem que ser estudado e resolvido de maneira igualmente límpida. A resposta é fácil, mas exige da parte de todos grande lealdade.

Eu digo que não é a existência desses três elementos – anarco-sindicalismo, comunismo libertário e anarco-individualismo – que tem causado a debilidade ou, mais exatamente, o enfraquecimento relativo do pensamento e da ação anarquistas, mas unicamente a posição que uns e outros têm tomado em relação aos demais: posição de guerra aberta, encarniçada, implacável.

Cada fração, no curso desses nefastos enfrentamentos, tem empregado a mesma má vontade. Cada uma planejando deturpar as teses das outras duas, para ridicularizar suas afirmações e negações, para exagerar ou atenuar as linhas essenciais até fazer delas uma caricatura odiosa. Cada tendência tem dirigido contra as outras as manobras mais pérfidas e tem se servido das armas mais mortíferas.

Se a falta de um acordo entre elas – ao menos se tivessem guerreado com menos raiva umas contra as outras – se a atividade empregada em lutar tivesse sido destinada a batalhar, ainda que separadas, contra o inimigo comum, o movimento anarquista deste país teria adquirido, com a ajuda das circunstâncias, uma amplitude considerável, uma força surpreendente.

Mas a guerra intestina, de tendência contra tendência, muitas vezes inclusive de caráter pessoal, tem envenenado tudo, tem corrompido, viciado, esterilizado; inclusive as campanhas, que deveriam ter agrupado em torno de nossos ideais os corações e consciências desprovidos de liberdade e de justiça que são, principalmente nos meios populares, muito menos raros do que se desejaria.

Cada corrente tem cuspido, babado e vomitado em suas correntes vizinhas, com a finalidade de sujá-las e fazer crer que a única limpa é a sua.

E ante esse lamentável espetáculo de divisões e atuações odiosas – que suscitavam de uma parte a outra nossos grupos – tanto uns como outros se vêm se esvaziando do melhor de seu conteúdo e suas forças têm se esgotado umas contra outras ao invés de unirem-se na batalha a ser travada contra o inimigo comum: o princípio da autoridade. Essa é a única verdade.

O mal é grande: pode e deve ser só passageiro, e o remédio está a nosso alcance. Quem tiver lido as linhas precedentes atentamente, e sem tomar partido, adivinhará sem esforço: o remédio consiste em imbuir-se da ideia da síntese anarquista e aplicá-la o quanto antes e o melhor possível.

De que sofre o movimento anarquista? Da guerra que travam entre si os três elementos que o compõem. Se por sua origem, caráter, métodos de propaganda, organização e ação, estes elementos se veem condenados a enfrentar-se, a solução que proponho não serve para nada; seria inaplicável; seria inoperante; esqueçamos de empregá-la e busquemos outra.

Se, pelo contrário, a oposição não existe e, com mais razão, se os elementos – anarcosindicalista, comunista libertário e anarco-individualista – estão feitos para combinarem-se e formar uma espécie de síntese anarquista, teremos de tentar sua realização, não amanhã, mas hoje.

Não descobri nem proponho nada novo: Luigi Fabbri e outros companheiros russos (Volin, Flechin, Mollie Steimer) com quem tenho conversado muito estes dias, me confirmaram que essa tentativa de realização foi levada a cabo na Itália, no seio da União Anarquista Italiana, e na Ucrânia, no seio da Nabat, e que essas duas tentativas deram os melhores resultados, que somente foram interrompidas pelo triunfo do fascismo na Itália e a vitória do bolchevismo na Ucrânia.

Na França existem, como um pouco por todas as partes, numerosos grupos que já aplicaram e aplicam correntemente os fundamentos da síntese anarquista (não vou citar nenhum para não esquecer de ninguém), grupos em que os anarco-sindicalistas, comunistas libertários e anarco-individualistas trabalham em harmonia, e estes grupos não são os menos numerosos nem os menos ativos.

Estes fatos (e poderia citar outros) demonstram que a aplicação da síntese é possível. Não digo nem penso que isso possa ser feito sem lentidão nem dificuldades. Como tudo que é novo, esbarrará na incompreensão, na resistência e inclusive na hostilidade. Se tivermos que nos manter impassíveis, nos manteremos; se tivermos que resistir às críticas e às más intenções, resistiremos. Estamos conscientes que a solução está aí e estamos seguros que, cedo ou tarde, os anarquistas a enxergarão. Por isso, não nos deixaremos desanimar.

O que, em circunstâncias memoráveis, se fez na Itália, na Espanha ou na Ucrânia, o que foi feito em várias localidades da França, poderá fazer-se e, sob o estímulo dos acontecimentos, se fará em todo o país.

(1928)



Nota do revisor:

1. Ajustei este trecho de acordo com o original de Malatesta, publicado na compilação “Los Anarquistas y los Movimientos Obreros” apresentada em: Vernon Richards. Malatesta: Pensamiento y Acción Revolucionarios. Buenos Aires: Anarres, 2007. O trecho citado é um excerto publicado originalmente em Il Risveglio, 1–15 de outubro de 1927.



(Tradução de Victor Calejon; revisão de Felipe Corrêa)



(Ilustração: Carlo Carrà - Funeral of the Anarchist Galli - 1910-11)